UMBELINO UDES

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ESPEROU DURANTE MUITO TEMPO. Quando via algum cliente subir, espiava. Ao constatar não ser sua presa, fundia-se à escuridão do corredor. Dali, viu nobres deputados que deixavam suas esposas em casa e vinham ter reuniões; fazendeiros ilustres, descendentes da mais alva brancura europeia, que se perdiam nos suores das pretas; mercadores em busca de outros sabores de carne. A mãe entrou com um rapazola em um quarto do terceiro andar, mais um daqueles levados pelo pai para "virar macho".

Apenas na boca da madrugada que seu esperado espécime de macho apareceu.

Umbelino Udes entrou no xirizal com seu jeito sereno, senhor de dignidades. Romera interrompeu tudo o que fazia para recepcionar seu ilustre. Falaram por um tempo, ali mesmo no meio do saguão, e ela logo pegou-lhe o chapéu e a casaca. Quando Romera saiu de cena, Benedita deixou o cinzeiro cair. O objeto mergulhou os três andares, largando as cinzas como um dente-de-leão joga suas sementes, e caiu aos pés do homem.

Ou era para ser assim.

Num reflexo, Umbelino aparou o cinzeiro assim que o objeto entrou no seu campo de visão. Verificou o latão voador, deu um passo à frente e olhou para o alto. A testa franziu ao ver a preta que o observava.

Girou o objeto nas mãos, sorriu enigma e começou a subir as escadas.
***

ERA COMO SE SENTISSE O CHEIRO DELE ANTES MESMO DE VÊ-LO DIANTE DE SI. Benedita umedeceu os lábios, ajustou o busto postiço, verificou a agulha. Teve medo da mãe aparecer ou que Romera decidisse procurar pelo gerente da fábrica. Porém, nada aconteceu e ele logo estava frente a frente com ela, tão perto como antigamente, o bafo etílico como perfume.

— Bom de vim aqui é que sempre tem rapariga nova, bonita. — Benedita emulou timidez no sorriso, baixou a cabeça. — Qual a sua graça?

— Benedita, Seu Udes...

— Ora, mas deixe de vergonha, minha moça — aproximou-se e passou um braço pela cintura dela. — Aqui não precisa ficar encabulada.

— Aqui no meio do corredor?

— E onde mais? — Abraçou-a e afundou o nariz na dobra do seu pescoço. — Tem um lugar melhor?

Benedita passou as mãos pelas costas dele, explorando o já conhecido. Sorriu.

— Se o senhor quiser, eu tenho sim...

Ele beijou sua pele, sorveu seu cheiro, tateou pelo rosto da preta, sedento. Contudo, quando uma réstia de luz passou pela face dela, Umbelino parou, perplexo.

— Engraçado... — comentou. — Tu me lembras alguém...

— Mesmo? Quem?

— Um pretinho que trabalha lá da fábrica...

— Qual o nome?

— Eu sei lá! Vou ficar guardando nome de funcionário? Mas... — Franziu a testa ao admirar pedaços do rosto de sua presa. — É, tu pareces ele mesmo. Diferente, mas igual, entendes? E... E ele me lembra um outro alguém. Tu também me recordas esse outro...

O coração de Benedita deu um solavanco. Umedeceu os lábios e tratou de interromper o fluxo de conexões.

— Ah, Seu Udes, o senhor sabe como é: nós é tudo assim mesmo, farinha do mesmo saco. Viu um preto, viu todos. — E sorriu malemolência.

Umbelino ainda captou aqueles traços, mas os brios de macho eram mais urgentes do que suas suspeitas. Encostou o volume da calça na coxa dela e voltou a beijar sua pele. Tão inebriado estava que seus lábios não perceberam os nós e seus dedos ignoraram a sujeira trazida pela maquiagem pesada.

Benedita tornou a sorrir e conduziu-o para a última porta do corredor. Ali, o banheiro do quarto andar se vangloriava por ter uma banheira grande e uma janela de proporções semelhantes, deixando à vista o rio Bacanga, cujas águas corriam junto às paredes do casarão.
***

BENEDITA EMPURROU O HOMEM PARA DENTRO DA BANHEIRA E TRANCOU A PORTA. O clique metálico pareceu um gatilho que fez os botões da calça de Umbelino se abrirem, empurrados pela sofreguidão masculina.

— Vem cá, caboclinha, vem!

Benedita se fez de tímida. Virou-se de costas e tirou o vestido, ficando apenas com o sutiã e a anágua. Notou o ambiente esfriar quando Umbelino viu as marcas nas costas dela.

— O que... O que aconteceu contigo?

— Longa história, Seu Udes. O senhor quer que eu mostre?

— Mo-Mostre? O quê?

— Meu segredinho...

O entumecimento do membro de Umbelino murchou. Benedita abriu a torneira e lavou o rosto. O homem boquiabriu-se quando a água escorreu toda a maquiagem da mulher e deixou ver, através do espelho, aquela face cheia de costuras, como se o rosto fosse feito com pedaços de retalhos.

— Minha Nossa Senhora... — arfou.

Benedita se virou de frente para ele. O olho esquerdo não parecia mais tão alinhado com o outro, uma das narinas estava carcomida. A boca tinha um esgar permanente.

— O senhor lembra de mim, Seu Udes? — Mudo, o homem negou. — Ah, mas que falha a minha, não é? Como ia lembrar com esse rosto?

Agachou-se, enfiou a mão por entre o vestido caído e puxou algo. Umbelino fez menção de argumentar ao reconhecer aquele como um dos agulhões de prata da fábrica. Porém, quando cogitou se levantar da banheira, Benedita enfiou a ponta da agulha em um dos nós, ali na altura do queixo.

Houve o som de algo se desprendendo.

E ela gemeu.

— Ai, Seu Umbelino! — e enfiou em outro nó. E em mais outro e outros. — Ai, Seu Umbelino! Ai, ai, mais fundo! Isso... Hum...

Um naco de pele se desprendeu. Umbelino gritou um grito mudo ao ver a mulher puxar pedaços do próprio rosto como se descolasse papel. Quando Benedita enfiou a agulha em um nó no couro cabeludo e puxou o cabelo, Umbelino se urinou todo.

A face avermelhada, ensanguentada, pedaços faltosos de carne, arreganhou os dentes para ele. Tirou o resto das roupas, deixando os seios postiços caírem e desamarrando o pênis, que logo enrijeceu.

Pegou o membro e balançou.

— Oi, Seu Udes. Há quanto tempo. Lembra de nós agora?

Umbelino lembrou.

*** 

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