A AGULHA E O CINZEIRO

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O ALARME DA FÁBRICA CORREU PELA RUA SÃO PANTALEÃO MAIS RÁPIDO QUE OS FUNCIONÁRIOS. Benedita e Dona Mildrede saíram junto à massa, um arremedo de similaridade. Uma preta muito mais alta que um homem e outra tão pequena que mal lhe alcançava as coxas eram um conjunto que se destacava em qualquer horizonte.

São Luís anoitecia com o céu costurado com linhas rubras. A natureza parecia prever alguma coisa. Lado a lado, as duas mulheres desceram a ladeira. Lavadeiras passavam com trouxas de roupas, carros vomitavam seu fumaceiro, os acendedores de lampiões subiam escadas para darem à luz. Tudo pululava o frenesi da noite de sábado.

A dupla atravessou a avenida rumo às margens do Rio Bacanga. Os casarões ali há tempos tinham perdido o esplendor do século anterior. Naquela parte, então, vestiam-se de limo e abandono. Pararam diante de um deles, um cheiro adocicado misturado à umidade.

— Manda lembrança pra tua mãe, viu?

— Entra um pouco — Benedita insistiu.

Dona Mildrede olhou para as janelas escancaradas no terceiro piso. Estremeceu.

— Entro nada. Só de morar perto do xirizal já fico mal falada. Imagina entrar...

— Hum, e quem ia querer uma coisinha dessa? — Benedita brincou e sorriu para a senhora. Porém, logo serenou. — Hoje faz um ano que tô na fábrica.

— É, eu tava lembrando mesmo. E um ano tranquilo, Benedito. Tu sabes. — A outra não respondeu, cabeça abaixada como se de repente estivesse interessada nas dobras da sua camisa. - Promete uma coisa?

— O quê?

— A partir de hoje tu vais seguir tua estrada, largar Seu Udes de mão; viver tua vida. Promete.

A mulher olhou para a outra, uma carranca de tensão no rosto.

— Ele me olha estranho...

— Que olha o quê, Benedito?! Deixa de coisa! Eu já não te disse que é impossível? - Benedita assentiu. Dona Mildrede olhou para uma cicatriz entre a testa e o couro cabeludo. — Fiz um bom trabalho. E já faz tanto tempo que os pontos até sumiram. Não sumiram?

— Somem com a maquiagem.

— Quase perfeito. Tirando esse aí. Tu acha que ele vai perceber coisa de mulher? Ainda mais tu que se veste de homem?

— Não...

— Pois é. Tu vais é entrar aí e esquecer dessa história. Promete?

Benedita assentiu e agachou-se para abraçar a amiga. Esperou Dona Mildrede desaparecer na esquina com seu passo capenga. Então, apalpou a roupa na altura do ventre.

De dentro das dobras, puxou uma agulha surrupiada da fábrica.
***

O PISO DE CARNAÚBA ESTAVA ENCERADO. As cortinas eram sopradas pela brisa morna do anoitecer enquanto os primeiros clientes chegavam. Romera corria de um lado para o outro ralhando com as meninas, ajustando copos no balcão do bar.

— Ele vem hoje, não é? — Debruçada na balaustrada do quarto andar, Benedita perguntou à mãe. A senhora se aprontava para mais uma noite no bordel. — Por isso esse faniquito todo?

Raimunda parou de alisar um vinco no vestido e virou-se para a porta do quarto. Dali, podia ver as costas da filha, apenas. Naquela noite de coincidências, Benedita estava interessada por demais na agenda de atividades do lugar. Pegou a piteira e o cinzeiro de latão e juntou-se à garota. Soltou uma baforada e admirou a fumaça ser tragada pelo esquecimento.

— Ele sempre vem. Tu sabes disso. Por que esse interesse agora?

— Ele tem me olhado estranho...

— E quem não olharia? — Benedita se virou para a mãe, desespero junto ao semblante fechado. — E não é pelo que tu estás pensando. Homem é igual bicho no cio, Benedita: quer enfiar o pau em qualquer buraco.

— Não sou "qualquer buraco"! - ofendeu-se.

— Eu sei - nova baforada. — Por isso mesmo que te botei pra trabalhar na fábrica, não aqui com Romera.

— É. Mas me jogou pra perto dele.

Raimunda errou o cinzeiro e observou as cinzas caírem rumo ao saguão. Lá embaixo, um senhor de três arrobas, terno caro, passava a mão em uma menina com idade para ser sua neta.

— Foi o que apareceu. E tu queria continuar lá no interior, é isso? Morando com o bosta fedida do teu pai? Aqui ninguém te conhece, Benedita.

— Mas a história sobre o menino que apanhou de Umbelino ainda corre...

— Boatos — soltou a fumaça para o alto. — Lendas. São Luís é cheia delas. A tua é só mais uma. E tu já viste gente branca diferenciar história de preto? Pra eles, somos tudo farinha do mesmo saco.

Romera parou, olhou para cima e chamou Raimunda.

— Tenho que ir. Tu já sabes o de sempre...

— Ficar no quarto, trancada, e procurar dormir — repetiu a cantilena. — Eu sei.

— É. Eu espero que saiba mesmo.

Benedita olhou a mãe descer as escadas rumo aos prazeres da noite. Há um ano acostumara-se a isso. Porém, naquela noite, não sumiria feito a fumaça dos cigarros.

Pegou o cinzeiro.

Naquela noite, Benedita queria ser vista.
***

BENEDITAOnde as histórias ganham vida. Descobre agora