Calçado

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O garoto se olhava no espelho. Tinha um rosto feliz e o corpo saudável. Era um grande espelho, em um pequeno quarto, bastante iluminado pelo sol que intensamente invadia o espaço pela janela bem lá no alto. Do lado esquerdo do menino, de cinco ou seis anos, havia uma cama humilde, embora impecavelmente arrumada, de lençol sem ondas. As paredes eram brancas, o que facilitava a iluminação natural, que, aos olhos da criança, fazia tudo parecer um paraíso. Obviamente, a felicidade genuína do menino não era causada pelo sol. Talvez fosse noite, mas os olhos do garoto turvos de alegria, faziam com que tudo se iluminasse.

Por falar em olhos, bastaria notar para onde ele olhava para saber o que tornava aquele dia tão especial. Balançando os pés, para lá e para cá, o garoto escrutinava cada lado de seu novo par de mocassim San Marino. Há muito, aquele era o maior desejo do menino, ter sapatos como os de seu pai. Imaginava-se grande, importante, de voz firme, como o outro, que tanto admirava. Seu pai. E só seu. Não havia outro melhor, onde quer que fosse, em casas grandes ou pequenas.

Sem a adequada noção de tempo, típica das crianças, o menino não se importava com os vários minutos que se passaram, enquanto admirava o primeiro passo para se tornar como seu pai. Imaginava, naquela hora, que ainda faltavam alguns apetrechos para ser tão admirável quanto o homem. Precisava de uma calça jeans clara, camisas sociais largas e gastas pelo dia a dia de trabalho, além do que era mais incrível, um bipe, ou pager, como chamavam. Não importava para que servia aquele treco que apitava, bastava ser e ter, como o pai.

Aqueles instantes felizes, em que fantasiava com as pessoas que o ovacionavam, ao sair na rua com seu mocassim, fora interrompido. Era sua tia carrancuda. Antes de entrar, ela já anunciava, irritantemente, sua chegada, chamando pelo nome do menino, de longe. - Você tá aí?! Todo mundo está te procurando! - falou em tom de bronca - Não ouve os outros te chamando, não?! - sem dar tempo de qualquer resposta, continuou - Eu vou sair daqui a pouco. Dá licença do meu quarto, que preciso trocar de roupa!

A irmã de seu pai não o achou lindo, nem comentou sobre os sapatos. Apesar de chateado, o menino não estava surpreso, afinal, sua tia sempre carregava um amargor incurável. Em sua teoria, reforçada pelas conversas de adultos que sempre escutava, a mulher precisava de um namorado, ou de um marido, como falavam. Entre toda a família, era a única que não se casara, que não festejava e estava sempre a postos para xingar qualquer comportamento inadequado. Mas para xingar seu pai, não! Seu pai estava bem mais alto, em qualquer hierarquia, pensava.

Saindo do quarto, o garoto continuava a imaginar a reação de todas as pessoas, quando o vissem com o San Marino nos pés. Ao atravessar a porta da casa, dando para o quintal, o sol nem parecia tudo aquilo. Já era fim de tarde, e tudo estava tingido de laranja saturado. Certamente, ninguém estava mais feliz que ele, naquele lugar. A família estava reunida do lado de fora, sua avó, seus pais, um casal de tios e seu primo, mais novo, mas não muito. - Você estava lá dentro esse tempo todo? - Algum dos adultos perguntou. Antes que pudesse responder, olhou para os pés do primo. Ele também tinha um mocassim, novo, lindo, mas nunca admitiria. Olhou para os pés de seu pai. O mesmo calçado, mas um pouco mais velho. Depois, olhou para seus pés. Estava descalço. Não houve mais conversas naquele dia.

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