— E foi ai que você não atirou primeiro...

— Isso, exatamente. Meu dedo estava no gatilho e a luz da lua iluminou entre as árvores o rosto daquele menino. Era negro e magro como um bambu, vestia roupas sujas e rasgadas, segurava uma AK47 com as duas mãos e tinha aquele olhar. Aquele olhar de quem tinha perdido tudo. Durante o um segundo que encarei aquele menino tudo que eu pude pensar é que alguém tinha roubado sua vida, sua infância. Provavelmente seus pais estavam mortos e agora ele era usado como soldado, era menor, mais fácil de se esconder e comia menos. Era o tipo de soldado perfeito para eles, para quem não tinha coração.

— O que aconteceu? – Charles estava intrigado.

— Não consegui atirar, não pude. Como eu poderia matar uma criança? Claro que ele não pensou assim, soltou uma rajada de balas antes de desaparecer nas árvores novamente. Três balas me acertaram, uma na perna – Mark bateu com a mão na sua coxa. – Uma no ombro e uma no peito – ele desabotoou o primeiro botão de sua camisa para que as cicatrizes ficassem a amostra. – Passou a um centímetro do coração, enquanto estava ali no chão, deitado e queimando de dor, a única coisa que eu consegui pensar foi: Quantos pais de crianças como aquela eu havia matado. Será que não erámos nós mesmos que estávamos condenando o futuro daquelas crianças? Fui mandado para casa, ganhei uma medalha inútil e três cicatrizes que vão ficar comigo para sempre. Mas de uma coisa eu sei, medalha nenhuma vai fazer valer todo o sofrimento que eu causei.

— Isso deve ter sido difícil.

— Difícil foi depois, voltei para minha mulher. Ela já até pensava que eu estava morto, eu passava cada noite no Iraque olhando as estrelas e sonhando em estar em casa, dormir em uma cama de verdade do lado da minha mulher. Dois meses depois que eu voltei minha mulher se jogou com o carro de uma ponte. Descobriram que ela carregava um bebê no ventre, não era meu e ela não conseguiu conviver com a culpa, eu fico pensando o quão diferente seria se ela ainda estivesse aqui, eu perdoaria ela, sabe?

— Meu pêsames.

— A nós dois então – Mark ergueu a cerveja e fez um gesto de brinde no ar.

— A sua mulher, meu pai e todos os amores perdido – disse Charles.

— A morte é algo que chega a ser engraçado. Nós nunca realmente estamos prontos para lidar com ela. É uma coisa que sempre nos pega de surpresa como um tsunami e nos deixa arrasados e destruídos, tanto por dentro quanto por fora. Tudo que sobra é a saudade e a dor, dor essa que nunca passa de verdade. Dizem que o tempo cura tudo, bobagem. O tempo só nos abre espaço para novas feridas e acabamos por não ter tempo para pensar nas antigas, viver, amigo, é comer suicídio diariamente.

— Essa conversa está tomando um rumo muito deprimente – comentou. – Meu pai dizia que todos nós nascemos com um buraco no peito. Ao longo da vida vamos enchendo esse buraco com coisas que nos fazem bem. Tem gente que coloca drogas, cigarros e bebida nesse buraco, outros enchem ele de trabalho. Os espertos deixam esse buraco vazio para que não possam nunca perder o que está dentro dele, e os bobos enchem esse buraco de amor. O fato é que você pode ter perdido o que preenchia o vazio do seu peito, mas existem outras maneiras de preenche-lo. Sei que nada vai substitui-la, mas se você pensar nas coisas que te fazem bem, talvez você possa compensar um pouco esse vazio triste com algo de bom.

— Talvez seu pai esteja certo – Mark bebeu um pouco de cerveja. – Ou talvez ele fosse só um bêbado como eu –esboçandou um sorriso triste.

— Charles – Disse Isaac. – Seu primeiro dia foi ótimo, tá tudo calmo por aqui, se quiser ir pra casa tudo bem.

— Ah claro, obrigado – Olhou no relógio, meio dia e dez.

— Até amanhã, obrigado por ouvir minhas lamentações – disse Mark.

As Pontes InvisíveisOnde histórias criam vida. Descubra agora