Andressa, atenta, não ousou interrompê-lo.

— ... Ela era um pouco mais velha e depois daquele dia, minha vida mudou para sempre.

Ao dizer as últimas palavras, se calou; o olhar agora mais vago e distante, como se hipnotizado por uma correnteza de nostalgia, ecos e ondas que apenas ele poderia compreender. Isso fez com que apenas coçasse a pulga de curiosidade na cuca de sua companheira, cinquenta anos mais nova, que não se conteve:

— E o senhor se importaria de me contar, seu Balthazar?

— É uma longa história. Tão antiga quanto este velho, mas tão fresca quanto uma amoreira carregada de frutos que explodem e pintam os lábios de uma criança curiosa. — Sorriu, com sua deliciosa analogia — Quer perder seu tempo me ouvindo?

— Pois me parece que eu estaria ganhando tempo te ouvindo, seu Baltazar. Mas antes, preciso dar seu remédio, está bem?

Levantou-se de um pulo, animada com a ideia. Preparou um copo de água sobre um pires de fundo jade; ao lado, um pouco próximo a saliência da borda, os dois comprimidos azuis repousavam. Voltou-se para ele e, com ternura, alcançou o objeto comportando a água ao homem, encerrando um ritual bem conhecido. Ambos sabiam o quão imprescindível eram aqueles fármacos para o tratamento de controle de seu mal de Parkinson, recém descoberto.

Andressa servia aos residentes do local há cerca de cinco anos e, em nenhum dia sequer esqueceu-se de vibrar pela saúde de cada um, pois ali, para além dos parâmetros e ditames profissionais, sentia-se como uma neta, como uma filha, tendo perdido o avô para um câncer agressivo e morando distante dos pais. E era exatamente nisso que ela sempre pensava ao observar aquele homem tomando os comprimidos, um de cada vez. Seu coração aquecia-se genuinamente.

Algum tempo depois, pegou o copo já vazio, depositando-o sobre a cômoda e sentando-se novamente na poltrona.

— Quando o senhor se cansar, faremos uma pausa e retomaremos no dia seguinte, está bem? — Sorriu.

Ele assentiu, se recostando na poltrona. Lançou mais uma olhadela naquele céu melancólico de fim de tarde. Respirou fundo, fechou os olhos como se meditasse por um breve período e soltou um longo e saudoso suspiro, olhando-a, agora focado:

— Você sabe por que gosto tanto de olhar pela janela, senhorita Andressa?

— Porque dá para o jardim?

Ele assentiu, sorrindo.

— Tudo que eu disser, faz parte do meu passado e como bem sabes, minha memória já não é a mesma ou posso até inventar alguns episódios, por conta da velhice.

— O senhor não é tão velho assim e sei que sua memória é muito boa, seu Balthazar.

— Minha querida... És uma ótima enfermeira, viu? Mas assim eu fico mimado feito um adolescente! — Riu da piada, sendo seguido por ela.

Continuou pigarreando e recomposto:

— Esteja preparada para ouvir o que eu vou lhe contar, sem a obrigação de acreditar. Estamos certos? — Riu.

Ela apenas sorriu, se acomodando melhor, para ouvir o que ele tinha para dizer.

— Foi há muitos anos atrás. Onde as pessoas se cumprimentavam na rua e as crianças podiam brincar livremente. — Suspirou. — Tudo começou num sábado, quando estávamos indo para a festa de aniversário. Eu usava meu melhor sapato lustrado e minha mãe fez questão de usar suas luvas de renda.

— Devia ser lindo morar naquela época. As mulheres se vestiam lindamente.

— Sim, de fato. Minha mãe sempre foi muito vaidosa. Mesmo sendo dona de casa, estava sempre com o cabelo preso numa presilha de madrepérolas do lado dos cabelos negros. Ela falava que era herança de família para quem perguntasse e eu achava minha mãe a mulher mais elegante do mundo! — Suspirou, ajeitando os óculos.

LILI: JUNTOS ATÉ DEPOIS DO FIMWhere stories live. Discover now