23 O HARAS (parte 1)

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POUCAS VEZES NA VIDA LUCAS SE LEMBRAVA DE TER ACORDADO TÃO SERENO. Havia, sim, uma sensação de estranheza, gosto salobro na boca após aquele encontro no sonho. Não tinha recordações do pai e agora sua mente moldara um rosto para o seu passado. Se era de fato ele, ou apenas uma suposição, era difícil saber. Miridéia destruíra todas as fotos do homem. Mesmo assim, algo dentro dele lhe dizia que aquele era o seu progenitor.

E teria que lidar com isso ao invés de fugir.

Levantou-se e olhou para o relógio. Ainda eram 5h da manhã, mas, conhecendo a professora Déa, era preferível chegar uma hora adiantado a correr o risco de ficar para trás. No passeio do ano anterior, para um parque aquático em São José de Ribamar, ela deixou Cléver para trás só por ele ter chegado um minuto atrasado. Aquele dia sem o rei-sol, Lucas se recordava, fora muito agradável.

"Um dia brilhante!", sorriu ao terminar de escovar os dentes.

Saiu do quarto e foi para a cozinha tomar café-da-manhã e preparar sanduíches para o passeio. Domingas dissera que levaria uma boa quantidade de frutas e de bolo, porém, sabendo como Evandro parecia ter um buraco no lugar do estômago, Lucas preferiu se garantir e levar bastante comida. Ainda mais ao lembrar que a mãe de Vandro tinha viajado e ele iria até à escola de ônibus, o que aumentaria o nível de fome do amigo.

Suspirou felicidade. Enquanto cozinhava, sentia que aquele, novamente, seria um dia brilhante. Sorriu. Haras, amigos, natureza, comida boa, bastante espaço para ficar longe dos problemáticos da escola, nada podia estragar aquele dia.

"Muito menos um sonho", enfatizou.

Lucas terminou de preparar tudo e voltou para o quarto. Arrumou as últimas coisas na mochila, escovou os dentes uma última vez e saiu. Pensou em bater na porta do quarto da tia para avisar que estava de saída, mas parou antes que desse o primeiro toque.

Pela fresta da porta, viu que Miridéia andava de um lado para o outro enquanto falava com alguém. Parecia irritada. A todo o momento dizia "não, não" e insistia com "acabou aqui". Sem entender nada e pensando se tratar de um romance tórrido passando por problemas, Lucas se afastou o mais silenciosamente possível, pegou as coisas na cozinha e saiu de casa.

Na calçada, abriu os braços junto aos tímidos raios de sol daquela hora e sorriu para o céu.

"Um dia brilhante!", repetiu. E seguiu adiante.

***

VIAJAR DE ÔNIBUS COM A TURMA DA ESCOLA TEM UM SABOR ESPECIAL. Há toda uma sensação de liberdade, ficar longe dos pais e dos responsáveis, experimentar aquele clima de aventura ao lado de outras pessoas que estão na mesma vibração. Para melhorar a experiência, até Cléver estava ameno, perdido em pensamentos enquanto observava a paisagem. Uma das meninas da turma dele tagarelava no assento ao lado, mas o monarca permaneceu com a atenção distante. Lucas agradeceu por isso.

Foi uma hora e vinte minutos de placidez e cochilos.

Quando chegaram ao haras, como Lucas previu, os grupos se separaram, mas sob forte ameaça. A professora Déa instruiu os funcionários da escola que acompanhavam as turmas a ficarem de olhos atentos aos espertinhos.

— É tolerância zero, estejam avisados e avisadas — ameaçou enquanto lutava para retirar uma sacola do bagageiro. — O primeiro ou a primeira que tentar fazer graça, ou tiver rompantes românticos, volta pra São Luís com uma suspensão na cabeça.

Quando a professora se afastou, Otávio pareceu irritado.

— Não sei por que ela falou isso olhando pra mim.

— Será que é por que pegaram cê e a Merillan comendo um a cara do outro atrás da quadra? Hum, acho que talvez seja por isso.

— Evandro, eu só não te bato porque isso seria transfobia.

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaWhere stories live. Discover now