uma convocação

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— Jorge, sou do departamento das seleções da AFA (Associação do Futebol Argentino), estou ligando porque
temos interesse em convocar seu filho, Leonardo.
— O nome do meu filho é Lionel. Até que enfim o
convocaram, porque ele só quer jogar pela Argentina.
O começo de uma história é sempre impreciso e subjetivo. Até pode existir um conjunto de inícios, um ponto de partida fragmentado. Pode se estabelecer em diferentes momentos, desde aquela ligação com resposta positiva até esta proposta rejeitada:
— Escuta, Leo. O treinador da seleção juvenil vai vir falar
com você. Você sabe que aqui na Espanha temos a categoria Sub-16. Adianto que você deva estar ciente e possa se
preparar. Logicamente a decisão é sua.
O começo também pode ser um procedimento meramente buro-
crático:
— Amanhã tem um amistoso, jogo da Sub-20 da Argentina contra o Paraguai, e você vai dirigir; será no campo do Argentinos Juniors. Leva as planilhas da FIFA, porque temos que homologar o jogo. Fique de olho em um baixinho que vai entrar no segundo tempo e preste atenção porque ele precisa ser inscrito.
No dia seguinte, traz a planilha, como sempre, para o Colégio
de Árbitros. Depois nós a encaminhamos por fax à Zurich.
Ou talvez seja uma indicação que o protagonista ouviria várias vezes, não como sugestão, mas como reclamação:
— Pode jogar como no Barcelona.
Diferentemente do que se poderia ouvir em incontáveis conversas de botecos, Lionel Messi representa o produto típico da Argentina. De época. É mais um dos tantos que, no começo do século, tiveram que mudar de lugar, de costumes e de amizades para desenvolver-se profissionalmente. Messi deixou a Argentina em setembro do ano de 2000, aos 13 anos de idade, antes de que milhares de conterrâneos seus pegassem o caminho do aeroporto da cidade de Ezeiza como saída da crescente crise econômica do país. Lógico que ele tinha outro alvo, mas deixar a própria terra pode chegar a qualquer um.
Já nesse momento aconteceram fatos mais conhecidos. A surpresa que causou nos testes realizados no Barcelona. A assinatura de algo parecido com um contrato feito em um guardanapo. O retorno a Rosário, sua cidade natal na Argentina, para esperar a ligação com a aprovação final. A convocação. A viagem definitiva com seus pais, seus dois irmãos e sua irmã, no dia 1º. de fevereiro de 2001. Seu choro durante todo o percurso. A falta de adaptação da irmã e consequentemente a separação de uma parte da família. Além disso, os desejos contínuos de ser reconhecido em sua terra natal.
Enquanto Messi subia nas categorias de base do Barcelona, na Argentina era completamente desconhecido. Não tinha conseguido participar de nenhum torneio nacional enquanto jogava no Newell’s Old Boys,1 por esse motivo o que se falava sobre ele se restringia a essa cidade. Na Espanha, logicamente, já chamava a atenção. Seu representante Fabián Soldini, que fez parte de sua primeira viagem à Espanha, conta: “Leo prometeu não tomar Coca-Cola, sua grande tentação, até que fosse convocado pelos juvenis da Argentina”. Mas o relacionamento não fluía de forma natural, quase como um prenúncio das dificuldades que ele enfrentaria durante sua trajetória com a seleção. Alguém deveria forçar esse contato.
Soldini mostrou uma edição de vídeo com suas jogadas a Claudio Vivas que, nesse momento, era assistente do Marcelo Bielsa na seleção principal. Naquele tempo, a apresentação não poderia ser obtida de outra maneira, a não ser através de um vídeo mostrando seu potencial. Com certeza, estes eram “os vídeos que enviava da Espanha para que me conhecessem”, segundo relatou Messi em junho de 2019 no programa de TV TyC Sports. Soldini se lembra bem:
Marquei um encontro com Vivas no bar Paso Sport, na Avenida Carlos Pellegrini e Paraguai, em Rosário. Como o Barça participava nas categorias de base em nível regional, a desconfiança que sempre vinha à tona era a de que ele fazia tudo aquilo que mostravam no vídeo pela falta de qualidade de seus rivais.
Logo depois, Vivas recebeu outro vídeo em VHS, em uma situação curiosa. Enquanto descansava no quarto do hotel Princesa Sofia, em Barcelona, durante uma turnê de visitas aos jogadores da seleção antes que ela fizesse 4x1 no Japão, em um amistoso de junho de 2003, apresentou-se a ele na recepção do hotel um homem trazendo material sobre Lionel Messi. A memória e seus deslizes produzem lacunas que constroem relatos desencontrados. Aquele homem, que ficou marcado na história, se apresentou supostamente com o nome de Jorge, o que deixou no ar a ideia de que possivelmente tivesse sido Jorge Messi, pai de Lionel. Mas a memória, em sua percepção mais detalhada, trata de pôr ordem na história.
Uma foto ajuda Vivas que, enfim, pode reconhecer o homem em questão. A suposição se desvanece: aquela pessoa não se chamava pelo nome de Jorge, e sim Horácio. Era Horácio Gaggioli e se tratava de um agente de futebol de Rosário que trabalhava com Josep Minguella, ambos representantes de jogadores ligados ao Barcelona. Tanto Gaggioli como Minguella tinham assinado aquele pré-contrato, por assim dizer, naquele guardanapo.
Vivas mostrou o vídeo a Marcelo Bielsa, e Bielsa pediu para que ele mostrasse o vídeo na velocidade normal.
— Marcelo, o vídeo não está acelerado. Está em
velocidade normal. Ele joga assim.
Messi, então, havia completado 16 anos de idade. Contava com um gol de vantagem que garantia a participação no Sub-17 da Finlândia, o qual poderia saldar a conta pendente de José Pékerman e Hugo Tocalli, então treinadores dos juvenis. Ao voltar para a Argentina, Vivas passou o material a Tocalli, treinador das seleções de base, que ficou perplexo assim como Bielsa: “Assisti ao vídeo, quatro, cinco jogadas foi o suficiente. Fiquei surpreso com a velocidade com que fazia tudo, não o convoquei porque não dava tempo. Em dez dias, partíamos para a Finlândia”.
Omar Souto, antigo empregado da AFA, agregou:
Nos deram um vídeo que parecia um comercial de televisão, fazia maravilhas. Hugo perguntou a alguns dos que moravam na Espanha se tinham ouvido falar dele: a Pékerman e a Eduardo Urtasún, diretor esportivo e preparador físico do time espanhol Leganés, e a Juan Pablo Sorín, que, nesse momento, jogava no Villarreal. E não tinham a mínima noção de quem se tratava.
Tocalli dá detalhes:
José não sabia quem ele era. Então, comentei com Javier Saviola, que estava no Barcelona, e ele me disse que tinha ouvido alguns comentários a respeito de um argentino, mas nunca o tinha visto.
O único integrante daquela seleção Sub-17 que o conhecia era o lateral esquerdo Lautaro Formica:
Eu pertenço à categoria de 1986, Leo é da de 1987. Nós dois viemos do Newell’s Old Boys. Quando jogávamos no juvenil, para nós era uma alegria vê-lo. Dois moleques detonavam: o Billy Rodas, que era da nossa categoria, e ele, na categoria inferior. Rodas fazia parte daquela seleção, mas teve uma lesão; nesse
momento pensei que chamariam o Leo, mas convocaram o
Fernando Gago.
O destino pregaria uma peça, pois Argentina e Espanha se enfrentariam nas semifinais dessa Copa do Mundo. A vitória ficou com os europeus e contou com a atuação de destaque de Cesc Fàbregas, companheiro de Messi no Barcelona. As duas seleções compartilhavam o mesmo hotel em Helsinque, Finlândia. Na noite seguinte, após o jogo, Tocalli recebeu um informante inesperado:
Foi o cozinheiro: “Escuta, Tocalli. Se você tivesse esse moleque do Barça, com certeza seria campeão”, disse-me. Eu dei meia-volta para onde estavam sentados todos os espanhóis, incluindo José Maria Villar, presidente da Federação Espanhola de Futebol. “Não será o Messi, né?”, perguntei. Todos me responderam em uníssono: sim. Juro que naquela noite não consegui pegar no sono; eu morreria se eles roubassem o nosso craque.
O “moleque”, com certeza, já havia dito não para a possibilidade de vestir a camisa espanhola. Vicente del Bosque, que poderia tê-lo dirigido na seleção principal, descreve Leo sem o ter conhecido:
Eu o cumprimentei algumas vezes, mas não cheguei a ter muita proxi                                                                                                                     midade. Sei que continua sendo um desses moleques que ficam doidinhos para jogar, na praça, na rua, ou onde quer que seja. Não perdeu sua essência, é feliz jogando futebol. Quem dera existissem muitos Messis neste futebol tão profissionalizado. Ele mantém o estilo de quem joga pelada na rua.
De Madri, Del Bosque concordou em dar uma entrevista, ainda que ele não fosse o responsável pela decisão. Os treinadores das seleções de base foram os que tentaram incluir aquele promissor argentino. Logicamente, ele conhecia os trâmites para se tornar parte da equipe. E sempre entendeu por que Messi rejeitara as convocações:
Eu achei normal desde o começo. É verdade que chegou muito novo na Espanha, mas seu sentimento era esperar para representar seu país. Na Federação, com Ginés Meléndez à frente, fizeram de tudo para tê-lo.
Meléndez era o treinador da seleção espanhola Sub-16. Imaginava o futuro:
Nossos olheiros em Barcelona nos contaram sobre ele quando tinha 14 anos. Fazia parte de uma grande geração do clube, que já contava com alguns: Piqué, Cesc Fàbregas, Toni Calvo, Riera,
Valiente. Faltava somente ele, que era fantástico. Tínhamos certeza de que seria o jogador que é hoje, só precisávamos ter paciência e esperar que não se lesionasse. Seu treinador, Álex García, insistia para que jogasse na minha equipe.
García tinha dirigido Messi nos cadetes, quando tinha entre 14 e 15 anos de idade. “Fazia o que continua fazendo hoje”, conta. “Eu disse a Ginés: ‘Temos um menino no Barça... Nunca vi nada igual’. Em todo caso, avisei a ele que acreditava que a resposta seria não: ‘Sabe de onde vem’ ”, intuiu.
Meléndez foi ao ataque mesmo assim. García confessa que nem conseguiram insistir: “Foi apenas um bate-papo com Ginés. Acabou ali mesmo; Leo não mudaria de opinião”. E descarta uma das principais lendas: “Nãoooo! De forma alguma lhe oferecemos dinheiro! As decisões do coração não têm preço”.
A Copa do Mundo Sub-17 na Finlândia aconteceu no mês de agosto de 2003; entre novembro e dezembro houve a Copa do Mundo Sub-20 nos Emirados Árabes Unidos. Parecia que os espanhóis tinham mais vontade de que Messi jogasse com ele do que os próprios argentinos. Souto continua explicando:
Sempre estávamos junto com os espanhóis. Durante a Copa do Mundo Sub-20 nos Emirados Árabes, saímos para caminhar com o delegado do clube Valencia e ele perguntou a Tocalli por que não tínhamos levado aquele garoto, que era melhor que todos os que tínhamos ali. Ao voltar para o hotel, Hugo não parava de se recriminar: “Como sou idiota! E ninguém me ajuda! Como fiquei sabendo pelos outros?”.
Já havia muitos indícios. Suficientes para ativar o plano.
Em 30 de março de 2004, no estádio Monumental, em Buenos Aires, antes do 1x0 da seleção argentina contra o Equador pelas eliminatórias da próxima Copa do Mundo, ocorreu a seguinte conversa entre Tocalli e Julio Humberto Grondona:

— Há um jogador fenomenal na Espanha. Temos que
pagar a passagem e trazê-lo para jogar.
— Villar me falou. O que você quer fazer?
— Dois amistosos. Fazemos que ele jogue e assim o blindamos.
— Pode organizar. Depois eu me encarrego dos trâmites na FIFA.
Naquela época, bastava um jogo oficial em uma das seleções juvenis para que o futebolista não pudesse mais atuar pela seleção principal de outro país. O problema era que esse jogador em particular não era uma tarefa simples: ninguém na AFA tinha contato com ele. Ninguém o tinha visto.
Tocalli deu uma ordem a Omar Souto: “Encontre o Leo Messi”. Eram tempos em que tudo era feito artesanalmente; o caminho foi longo, mas valeu a pena. Teve o sabor das grandes conquistas. Souto relembra a cronologia:
Saí do complexo Ezeiza2 e fui a uma cabine telefônica do bairro de Monte Grande que fica próximo dali. Pedi uma lista telefônica da cidade de Rosário, porque a única coisa que sabíamos é que ele era dessa cidade. Arranquei a página em que estavam os números dos Messis, fiz uma ligação da cabine para a minha casa para justificar que estava usando a cabine telefônica e voltei para o complexo Ezeiza com páginas                                          
na mão para tentar encontrá-lo. A primeira pessoa mais próxima que achei foi a avó do Leo, que me repassou o contato do tio, que me passou o contato do pai. Liguei para o pai, me apresentei e disse-lhe que desejávamos contar com o filho dele; com um detalhe, errei seu nome: sempre pensei que Leo fosse diminutivo de Leonardo.
Não era comum que a AFA pagasse uma passagem para que um juvenil viesse do exterior. A desculpa seriam dois jogos, um contra o Paraguai em Buenos Aires, na terça-feira dia 29 de junho, e o outro contra o Uruguai, na cidade de Colônia, no Uruguai, quatro dias depois. Messi se juntou a seus companheiros na sexta-feira, dia 25, um dia depois de completar seu 17o aniversário; viajou até Rosário para passar o fim de semana com a família e retornou na segunda-feira dia 28.
Tocalli nos avisou que tínhamos que participar de dois jogos pelo Leo. Na realidade, hoje é Leo para todos, mas naquele tempo sabíamos muito pouco sobre ele. A primeira impressão nos treinamentos é de que ele tinha a bola grudada no pé — lembra Pablo Zabaleta, um dos que estreitaram laços de amizade com Leo ao longo dos anos.
Estava assustado nos primeiros treinos”, afirma Souto. “Sabíamos que alguém do Barcelona seria incluído no grupo, mas nada além disso”, acrescenta Pablo Alvarado, integrante da equipe. “Eu me lembro que, durante um treino, ele fez um drible em mim, uma caneta de calcanhar que nunca tinha visto”, acrescenta Federico Almerares, que, como centroavante, conseguiu ver de perto.
Luis Segura, então presidente do clube Argentinos Juniors e próximo do núcleo da AFA reconhece: “Não podíamos falar nada nesse momento, mas a única intenção do amistoso era garantir que o Messi ficasse. Veja que ninguém imaginava o que seria esse menino”. Os adversários já tinham sido convidados, e a certificação de jogo oficial da FIFA já era um fato; o cenário não seria problema:
Assim que o Julio (Grondona, presidente da AFA) iniciou a conversa, propus jogar em nosso campo. Tínhamos reinaugurado fazia pouco tempo. Para o clube se tornou uma ocasião épica: foi o primeiro jogo da história em que uma seleção argentina disputaria no bairro da Paternal, entre as ruas Agustín García e Boyaca.Em 26 de dezembro de 2003 foi organizado algo parecido com um jogo de uma seleção juvenil no mesmo estádio do Argentinos Juniors: o Sub-20 tinha enfrentado um combinado de personalidades históricas do clube na reinauguração do estádio. Não seria o último evento desses tempos. Em 10 de agosto de 2004, ano do centenário do clube, um amistoso contra o River Plate serviu para batizar o estádio com o nome de Diego Armando Maradona, quarenta e dois dias antes que estreasse aquele que carregaria o peso desse nome.
A partida entre a Argentina e o Paraguai contou com alguns ingredientes. Os ingressos populares custavam 5 pesos; as cadeiras numeradas, 10. As estimativas de público presente oscilavam entre 200 e 500 espectadores, não mais que isso. As arquibancadas da rua Boyaca estavam vazias; via-se apenas, aproveitando que estavam frente às câmeras, bandeiras com os dizeres: “Força Kirchner, fora FMI”. Era junho de 2004: a história que nunca termina.
“Passamos um frio lascado naquela noite”, é a primeira lembrança de Souto. O compromisso não era muito convidativo: era um dia de semana normal, noite de inverno com previsão de chuva. E, para piorar, poderia ser visto ao vivo pela televisão. Os jornalistas da transmissão sabiam que o jogo poderia ter uma atração a mais.
Nós descobrimos alguns dias antes que tínhamos que fazer a transmissão. Sabíamos que vinha um garoto que todos comentavam ser um fenômeno. Mas, se alguém se lembra daquele jogo hoje, é simplesmente por causa do que viria depois — conta o jornalista Héctor Gallo, que naquela noite estava há alguns metros do campo.
Antes do começo do jogo, fez comentários a respeito dos titulares, e depois disse:
No banco de reservas tem um jogador que fará sua estreia. Vai jogar alguns minutos no segundo tempo. Lionel Messi, um garoto de Rosário que, aos 12 anos, foi levado para o Barcelona, para fazer a pré-temporada com a equipe catalã e que, aos 17 anos, tem uma cláusula de rescisão contratual, de, escute bem, 15 milhões de euros.
Os jogadores paraguaios também ficaram sabendo dessa partida bem  em cima da hora. O goleiro titular era Antony Silva, que uma década e meia depois faria parte do elenco do Huracán, time de Parque Patrícios, em Buenos Aires, Argentina:
Foi tudo inesperado. Montaram o nosso time na maior pressa; alguns de nós nem pertencíamos mais a essa categoria, porque tínhamos participado da Copa do Mundo Sub-20 anterior. Sabíamos que havia um garoto que tinha a possibilidade de jogar pela Espanha e que supostamente era um fenômeno. E, sim, já nesse dia foi um fenômeno.
A mesma reação teve o juiz do jogo, Gabriel Brazenas: “Fui chamado um dia antes e me explicaram qual era o motivo do jogo. Sorte que tinha aquelas famosas planilhas da FIFA na minha casa. Se tem algo de que me arrependo é de não ter tirado uma foto”.
Mario Quinteros, fotógrafo do jornal Clarín, contou ao jornalista Andrés Eliceche, da revista Anfibia, que chegou ao estádio com uma missão clara: “Não importa o jogo, o que importa é o Messi”. Os fotógrafos normalmente não têm problemas em enfrentar situações que para outras pessoas gerariam certo desconforto. “Quem é esse tal de Messi?”, perguntou Quinteros perto do banco de reservas. “Sou eu”, respondeu aquele que era o motivo do jogo.
A foto nunca foi publicada. No jornal Clarín daquele 30 de junho, não havia espaço para nenhuma imagem no canto inferior destinado a uma matéria sobre o jogo. No dia anterior, para ver o anúncio do jogo era preciso ter uma lupa: dedicaram somente quatro linhas, junto à data de um jogo que determinava quem subiria para a terceira divisão e as incorporações do clube Los Andes.3
A seleção reunia muitas promessas que seriam realidade e outras que sofreriam com as incertezas no mundo do futebol. Nereo Champagne seria goleiro do San Lorenzo de Almagro, em Buenos Aires, depois de ser transferido em 2012 do Olimpo de Bahía Blanca, interior de Buenos Aires, para o clube Leganés, da Espanha. Pablo Zabaleta jogou na Copa do Mundo de 2014 e depois atuou por doze anos no futebol da Inglaterra. Ezequiel Garay apenas completou 13 jogos no Newell’s e 15 temporadas na elite do futebol europeu. Ricardo Villalba, que, nesse momento, estava nas bases do River                                          
Plate, passaria a maior parte de sua carreira no futebol da segundona. Lautaro Formica, que tinha conhecido Messi no infantil do Newell’s, passaria pelo futebol grego e, em 2019, para a segundona com o clube Estudiantes de Río Cuarto (de Córdoba, Argentina). Juan Manuel Torres, que tinha estreado aos 17 anos no Racing, de Avellaneda, jogou seus últimos anos em diferentes locais: no clube Chaco for Ever, de Chaco, em 2016 e no clube Aktobe, do Cazaquistão, em 2017. Renée Lima, elegante meio-campista canhoto, não achou seu espaço no River Plate; em sua peregrinação internacional no ano de 2016, passou pelo clube Murciélagos, de Sinaloa, México. Matías Abelairas superou os 100 jogos no River Plate e jogou em campeonatos na Escócia, na Romênia e no Chipre. Pablo Barrientos já havia estreado no San Lorenzo de Almagro,
de Buenos Aires, clube ao qual retornou outras duas vezes. Ezequiel Lavezzi, que se tornaria um dos amigos de Messi e que chegaria a ser titular na seleção principal na Copa do Mundo de 2014, foi negociado pelo Clube Estudiantes, de Buenos Aires, e transferido para o Genoa, da Itália. Pablo Vitti, depois de mostrar um bom futebol no Rosário Central, passou por uma dúzia de clubes em dez anos.
No banco de reservas, ao lado de Messi, estavam outros seis jogadores que tiveram diferentes finais no futuro. José Luis García, canhoto muito criativo que não chegou a mostrar todo o seu potencial no San Lorenzo de Almagro, mas que demostrou sua qualidade quando foi campeão no ano de 2011 com o clube Almirante Brown, de Buenos Aires. Federico Almerares, atacante raçudo que não se destacou no River Plate, mas fez carreira no futebol suíço. Franco Miranda, lateral esquerdo, que pararia na Suécia antes de passar por sete clubes argentinos. Pedro Joaquín Galván, meio-campista que, nesse momento, pertencia ao Gimnasia e Esgrima de La Plata, jogaria mais de uma década em times de Israel. Pablo Alvarado, campeão duas vezes com o San Lorenzo de Almagro. Por fim, o goleiro reserva Emiliano Molina, protagonista do fato mais doloroso que se pode lembrar daquela geração: um ano depois, logo depois de ser uma das figuras principais do Independente de Avellaneda em um jogo dos reservas contra o River Plate,                                          
perdeu a vida em um acidente automobilístico.
Lucas Biglia, que nesse momento fora transferido do Argentinos Juniors para o Independente de Avellaneda, era um dos mais visados da equipe. Não jogou exatamente por isso:
Assisti ao jogo pela televisão. Tocalli tinha aproveitado o amistoso para convocar novos jogadores, como também para conhecer esse fenômeno. Tínhamos referências da época do Sub-17, e, por meio de Lautaro Formica, que, maravilhado, repetia: “Você vai ver do que é capaz de fazer com a bola”.
Os jovens argentinos marcaram uma clara diferença diante dos rivais paraguaios naquela fria noite no bairro La Paternal. Sem Messi, a diferença futebolística era notória desde o começo do jogo. Aos 5 minutos, Barrientos converteu o primeiro gol da lavada que seria um 8x0 tão evidente como esperado. A fragilidade da defesa do Paraguai era notória em cada ataque. Barrientos, a grande estrela antes que Tocalli mexesse com o banco de reservas, deu o passe para o segundo gol ao Lavezzi, aos 15 minutos, e marcou o terceiro aos 30. De pênalti, Garay fez o seu aos 34 do primeiro tempo. Messi assistia do banco; ao lado dele de Pablo Alvarado, que recorda: “Não me lembro de ele falar alguma coisa, nem sequer nos treinamentos ”.
Quando acabou o primeiro tempo, eu pedi a Salorio (Gerardo, preparador físico) para fazê-lo aquecer em campo alguns minutos e ir ao vestiário antes que voltássemos para o segundo tempo. Terminei de falar com os jogadores e não sabia aonde ele tinha ido. Dei uma volta e o vi sentado atrás de mim, quieto — relembra bem Tocalli da cena.
Lembra também do que lhe pediu: “Pode jogar como no Barcelona. Entre como você se sentir mais à vontade”.
Ainda que em muitas crônicas esportivas tenha sido escrito que Leo entrou no minuto 67, na verdade esse foi o momento da substituição de Almerares por Zabaleta. Messi tinha entrado no início do segundo tempo. Vestia a camisa número 17, de mangas longas que ficavam maiores nele do que nos demais. E com o cabelo cortado para a ocasião. Salorio tinha falado a ele que “quem não corta o cabelo, não joga na seleção argentina”. (Um mês antes, o preparador físico tinha mandado para casa Fernando Cavenaghi e                                          
Maximiliano López, sem terem treinado, como repreensão pelo fato de terem chegado com os cabelos tingidos de verde em comemoração à vitória do campeonato pelo River Plate.)
Messi se movimentava por trás dos atacantes, fazendo de meia de armação que driblava mais do que armava. Mais ativo depois da saída de Barrientos e sempre agressivo, com a típica habilidade de seus primeiros anos, toda vez que avançava, deixava os rivais para trás. Ainda que quando dava passes, não era tão eficaz: 7 dos 18 lançamentos que fez foram interceptados pelos pés dos rivais. “Estava um pouco nervoso”, declarou Lautaro Formica, seu amigo dentro da equipe. “Fisicamente não demonstrava nada demais, mas já nos tinha surpreendido com loucuras suas nos treinos”, acrescenta Alvarado.
Além de tudo aquilo que o tempo registrou, era um desses jogos que é difícil encontrar palavras para analisar na transmissão. Um desses encontros em que os locutores precisam ser gênios para achar uma frase a fim de motivar não só a eles, mas a todos os expectadores. Por esse motivo, certa vez um empresário de televisão disse o seguinte: “A única coisa que peço é que nossos jogos entediantes sejam mais assistidos que os jogos entediantes da concorrência”.
Pablo Giralt, narrador da partida pelo canal TyC Sports, promoveu, então, uma aposta entre seus companheiros para ver quem acertava o jogador que faria o quinto gol da Argentina. Isto pode dar até uma ideia de como era a diferença de qualidade entre os times. Rodrigo García Lussardi, porta-voz da seleção do Paraguai, não duvidou: “Vai ser feito gol contra de algum jogador paraguaio, um gol contra”. Aos 25 minutos do segundo tempo, Messi cobrou um tiro livre com efeito típico dos canhotos que chutam de direita. Vitti somente triscou de cabeça e Andrés Pérez, meio-campista paraguaio, cabeceou para trás na direção do seu próprio gol: o quinto gol foi contra certamente.
Federico Almerares converteu o sexto gol, depois de receber o passe de Messi, driblou um rival e marcou. O sétimo foi a cena que todos esperavam, o beijo do final do filme. A canção preferida do público. O motivo que tinha feito todo esse cenário ser montado, expresso em uma jogada.
E essa jogada chegou depois de dois dribles, após outros dez que Messi tinha tentado durante os quarenta e cinco minutos: primeiro passou pelos zagueiros César Martínez (escapou de uma entrada dura que tentou deter a jogada) e Gabriel Ruiz, e, logo depois disso, driblou o goleiro Marco Almeda, que ficou estendido no chão. Os dribles que o Barcelona importou. “Messi não tem DNA do Barcelona. Messi passeava pela Masía4 com a bola sem passá-la a ninguém”, escreveu o espanhol Manuel Jabois.
Isso vem de berço. Sempre quisemos que os nossos jogadores fossem naturais. Nunca lhes proibimos de se movimentarem, somente lhes ensinamos quando, e, no caso do Messi, sempre repeti à exaustão que é mais ligeiro com a bola que sem ela — descreveu Álex García.
Em 17 de outubro de 2003, Messi foi entrevistado pelo inesquecível jornalista Jorge “Topo” López para o jornal esportivo Olé, naquela que foi sua primeira entrevista para um meio de comunicação argentino. Ele reconhecia que estava aprendendo:
Estou me mexendo rápido, tenho habilidade. Sou canhoto, mas algumas vezes bato bem com a direita. Na Espanha, aprendi a tocar mais de primeira. Os técnicos me falam que toque a bola de primeira; assim, o futebol fica mais rápido.
Giralt e o comentarista esportivo Oscar Martínez imortalizaram esse momento:
— Messi tem a bola. Messi vai, ele encara, ele joga sozinho.
Vai, Messi, pode chutar que vai ser um golaço; Messi, chuta, que é um golaço; Messi, golaço, gooooollll.
— Posso bater palmas, Giralt? Impressionante o de Messi.
É aquilo que estávamos esperando e vocês que estão em
casa, não é? Ele vem com velocidade, carrega a bola perto do corpo e nunca perde o contato com ela. [...] Promessas para a seleção Argentina. Gol de Messi, o homem do Barcelona.
“Eu estava prestes a cortar a jogada antes que ele dominasse a bola, porque iam fazer uma substituição”, gargalha Brazenas. É verdade: foi só o Messi receber a bola, e o juiz da partida viu que um jogador paraguaio es                                         
tava caído no chão, mas não apitou; simplesmente deixou a jogada seguir, pois, nesse momento, o canhotinho já estava indo para cima dos rivais.
Nos treinos não ia para cima, só recebia e passava, sempre com bom domínio. No gol ele me surpreendeu. Eu ia marcando o ritmo e os passes pelo meio, mas ele abandonou todos aqueles que vieram marcá-lo. Aí eu disse: “Oba, este vai ser um craque” — lembra Almerares.
Formica, que já naquele tempo tinha relações com o Newell’s, disse:
Me fez viajar no tempo, na época do futebol de salão do Newell’s, quando pegava a bola e fazia o que queria. Quando chegou ao primeiro treinamento me deu um abraço e grudou em mim. Ele era recém-chegado; todos os demais já se conheciam. Quando fez o gol no Paraguai, eu me aproximei para parabenizá-lo e nós dois soltamos um sorriso maroto, cúmplice. Depois, a cada gol que marcava, eu me aproximava dele.                                                                                 
                                              

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