Parte I

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Mesmo quando todos as outras aves estavam sossegadas em seus galhos no breu da floresta, o rouxinol teimava em entoar suas notas ininterruptamente. Este era o único som que revelava que alí havia vida além das enormes gameleiras, com suas copas largas e troncos deformados, que subiam como mãos até as folhas ovais, tingidas de verde escuro.

Entre essas mesmas árvores, um velho homem chamado Dante morava em sua velha casa de madeira. Ele se acomodava em uma cadeira, se preparando para contar uma história a seu neto.

—Venha cá. Quero lhe contar uma pequena história. — ele chamou o neto que estava sentado no chão frio da casa, brincando com alguns gravetos que encontrara durante a tarde.

— Qual história?— o menino correu empolgado em direção ao avô, sentando- se ao seu lado, no chão de terra batida.

— É a história do Zé Maximiano. — ele informou ao menino, enquanto ia para frente e para trás em sua cadeira de balanço, fumando o charuto que segurava entre os dedos.

— Quem era esse, vovô?

— Era um homem horrível. Ele passava tardes matando os bichos da floresta, por pura diversão. — o menino o olhou horrorizado. — Quando era moço ele batia em sua própria mãe. — Ele vivia brigando com qualquer pessoa, sem motivo algum. Saía das brigas com o nariz sangrando, mas nunca parava. — disse inclinando o corpo para a direção do menino, que absorvia tudo, sem sequer piscar os olhos.— Um dia, no fim de uma de suas brigas, ele não sobreviveu. — contou — Ele foi enterrado no cemitério de Santa Rita. — prosseguiu — Vieram pouquíssimas pessoas para seu enterro. Não havia muita gente próxima á ele. — explicou — Quando o enterraram, algo muito estranho aconteceu: mesmo embaixo de sete palmos, a terra não o aceitou e o empurrou de volta a superfície. Ele foi rejeitado pelo céu e pelo inferno.— o velho senhor interrompeu a história por um momento, enquanto tossia quase colocando seus órgãos para fora do corpo. — As pessoas que estava lá, ficaram amedrontados com o homem. Eles decidiram que, em que quer que o Zé tivesse se transformado, deveria ficar o mais longe deles possível. Então decidiram levar o corpo dele amarrado, em uma espécie de maca, até uma gruta no meio da floresta, perto do lago. Do jeito que o padre os mandou fazer.

— Essa floresta existe mesmo, vô? — o neto perguntou, curioso.

— Mas é claro! Estamos nela. — o avó falou, um pouco ofendido — Acha que o que estou lhe contando mentiras?

— Então o Zé existe de verdade?

— Existe!

— E por quê levaram ele até a gruta?

— O padre disse que coisas como ele, nem vivas, nem mortas, não podem atravessar a água. Por isso a gente estava levando ele pra lá. Não tenho mais tanta certeza disso...

A gente? O senhor estava lá, vô?

— Mas claro! Vi com meus olhos a mão do homem saindo da terra quando enterraram ele. — o menino contemplava tudo, facinado.

— E depois? — indagou, querendo saber como terminava aquela história, que por algum motivo, o interessava cada vez mais.

— Pedro Vicente foi comigo. Pobre Vicente! que Deus o tenha. Ele era o único amigo do Zé — contou — Fomos nós dois levar o "morto" pra gruta. Mas quando nós estávamos quase chegamos lá... — a velha tosse surgiu novamente.

— Vovô? Está tudo bem? — perguntou preocupado.

— Sim. Não se preocupe comigo Kai. Ainda quer saber o resto da História?

— Sim!

— Bom, depois disso o Zé começou a se mexer e a nos atacar com suas longas unhas, que mais pareciam garras. Seu corpo estava apodrecendo muito rápido. Aquela altura, estava á pouco de ser apenas ossos e couro. — o menino via tudo com fascínio, não parecia haver nenhum resquício de medo nele.

— Nossa! O senhor não ficou com medo, vô?

— Que pergunta! Claro que fiquei. Naquele momento, eu já estava arrependido de ter me disposto a ajudar Vicente. — expôs — Vicente tentou impedi- lo com uma vara. Mas não pareceu surgir muito efeito nele. O cadáver mal cheiroso se levantou e começou entoar murmúrios indescritíveis. Parecia lamentar ou queixar- se de algo. — contou, parecendo que voltara no tempo e revivera aquela antiga memória, dos tempos em que ainda era um jovem — Eu estava apavorado, então gritei com Vicente, para que ele largasse aquela maldita vara e começasse a correr junto comigo. Mas ele era teimoso como uma mula. E continuou lá, imóvel. — disse negando com a cabeça.

— O quê aconteceu com ele? — o menino perguntou. Um pouco temeroso pela resposta.

— O Zé Maximiano o pegou pelo pescoço e começou a fazer vários cortes com suas longas unhas, nos pulsos dele. Aos poucos finas linhas apareciam em seus braços. Ele tentava gritar pedindo minha ajuda, mas meus pés pareciam de chumbo. Meus olhos estavam paralisados. Ele sangrou até a morte. Em uma fração de segundo, ele olhou para mim. Aquela coisa.
Foi então que despertei, como num sonho. E corri. Não me atrevi a olhar para trás.

— E o que aconteceu com o Zé Maximiano? — o menino perguntou — Ele seguiu o senhor?

— Não. Ele ficou lá.

O neto não estava muito satisfeito com esse final.

— E ele ainda existe?

— Eu não sei, Kai. Maximiano virou uma espécie de lenda por aqui. Apenas os mais velhos conhecem a história. Alguns dos que já eram vivos naquela época, juram de pé junto, que o viram depois desses acontecimentos. Outros dizem que ele continua "vivendo" nos arredores da gruta. Dizem que ele se tornou uma espécie de alma penada, vagando pela floresta e estradas, procurando viajantes desprevenidos e sugando seu sangue, como os vampiros fazem, os transformando em coisas como ele. Corpos secos.

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(928 palavras.)

A LENDA DO CORPO SECO | CONTO Where stories live. Discover now