capítulo 2

129 29 3
                                    

Uma semana já havia se passado naquela situação que beirava a alucinação e o inconstante. Cheng estava a ponto de gritar com Lan Xichen ou de arrancar os próprios cabelos em uma síncope de ódio. Não havia uma única parte de si que não tivesse uma maldita picada de inseto e sua abstinência do mundo real lhe levava ao surto. 
Aquela altura já teria fumado ao menos um maço de cigarro para acalmar seus nervos e entrado em uma ridícula competição com Wei Wuxian para ver quem virava mais copos de cerveja em menos tempo, mas, infelizmente, passara os últimos sete dias longe de qualquer miligrama de nicotina ou álcool e até a presença irritante do irmão lhe fazia falta. 
Será que ele estaria rindo de sua desgraça? Muito provável que sim. 
Seus dentes rangeram só de pensar naquela possibilidade e sentiu vontade de voltar para casa apenas para dar uma boa lição naquele idiota por tê-lo feito passar por essa tormenta. 
Além disso, seus pais lhe davam saudades, até mesmo as brigas que ouvia de seus progenitores pareciam mais interessantes e mais tranquilas do que ficar largado e pelado na floresta com um, agora, semi-desconhecido.
Também tinha sua irmã, que apesar de casada e ter um lindo filho, os visitava com frequência. Como sentia falta dos domingos em família repletos de algazarra, piadas, risadas, broncas e brigas… 
Suas mãos apalparam o chão em busca de uma pedra mais lisa e logo a lançou sobre a superfície da água, fazendo-a quicar três vezes antes de afundar. 
— Nada mal para uma péssima jogada — murmurou para si mesmo, sem perceber a presença de Lan Xichen logo atrás de si. 
O homem sentou silenciosamente ao seu lado e pegou uma pedra, imitando Cheng ao lançá-la pela superfície e ela bateu quatro vezes antes de mergulhar na profundeza do rio. 
Cheng crispou os lábios e tratou de procurar outra, era inadmissível que ficasse atrás daquele homem até mesmo em arremessar pedras no rio. 
Sua segunda tentativa foi mais bem sucedida e a pedra bateu contra a água seis vezes, afundando logo após. Um som vitorioso deixou sua boca e Cheng estufou o peito em glória.
Parecia algo extremamente bobo, mas, naquele momento, era como vencer uma guerra.
— Você é muito bom nisso, Wanyin — elogiou Lan Xichen se aproximando e quase roçando seus ombros, o que fez Wanyin se endireitar e ficar em estado de alerta. — Não se preocupe, não vou tocar em você. 
Cheng pareceu relaxar com aquela informação e seus dedos caçaram outra pedra, dessa vez jogando-a descompromissadamente.
— O que estava pensando aqui sozinho? Seu olhar parecia um tanto melancólico enquanto olhava para o rio. 
— Nada… 
— Não me parecia nada… Bem, não vou te forçar a contar algo que não queira — disse e apoiou suas mãos contra os cascalhos, inclinando o corpo para trás enquanto fechava os olhos para apreciar o Sol bater contra sua pele. 
Cheng olhou pelo canto do olho e acompanhou cada mísero instante ali, cada movimento mínimo. A forma como seu pomo de Adão subia e descia conforme engolia saliva, ou como suas pálpebras tremeluziam incomodadas pelo contato direto com a luz solar, tudo era um detalhe que não passava despercebido por Cheng. 
— Eu… Estava pensando na minha família — disse após um longo tempo em silêncio e Lan Xichen manteve seus olhos fechados, o incentivando com um baixo murmúrio afirmativo para que prosseguisse. — Eu sinto… Falta deles… Apesar de tudo. 
— Você não tem cara de quem é muito família… Parece aqueles solteirões que vivem em um apartamento semi-abandonado no centro da cidade. 
Cheng bufou pela piada e trombou seu ombro contra o de Lan Xichen, ouvindo-o gargalhar com sua reação. 
— Idiota… Minha família é… Um pouco esquisita, mas eu… Aprecio certos momentos ao lado deles… 
Lan Xichen sorriu e se deitou sobre os cascalhos, apoiando seus braços atrás de sua cabeça. 
— E como é sua família, Wanyin? 
— Louca — afirmou sem pensar duas vezes, o que tirou ainda mais risadas de Lan Xichen. — Estou falando sério, eles são loucos, mas o pior de todos é o Wei Wuxian. 
— E ele é seu…? 
— Irmão… Adotivo… Irmão — confirmou depois de uns segundos entre uma palavra e outra. 
— E por que ele é o pior? 
— Porque ele é insuportável, irritante, idiota e parece que tem um formigueiro na bunda para não parar quieto — reclamou em um rompante como se a descrição já estivesse na ponta de sua língua, prestes a escapar. — O pior de tudo é que ele conhece todos os meus pontos fracos e os usa contra mim tão fácil… Ele é ridículo. 
Lan Xichen riu com a maneira intensa com que Cheng mostrara seu ponto e o leve toque de preocupação e carinho disfarçado naquela enxurrada de ofensas. Era evidente para si que o outro, apesar de todas as palavras que deixavam seus lábios, nutria um amor fraterno pelo irmão. 
— É verdade, Xichen, só entrei nessa merda de reality por culpa dele. 
— E não está gostando de estar aqui? Você sabe que pode jogar a bandeira e voltar para casa a qualquer momento, não é? 
— E ter que ouvir Wei Wuxian zombando da minha cara por desistir? Sem contar meus colegas de trabalho, com que cara eu os olharia se desistisse tão fácil assim? Não sou um covarde. 
— Oh, sim, vejo que é extremamente corajoso, Wanyin. — Xichen se virou levemente e ficou apoiado no cotovelo, deixando a bochecha repousar em sua palma. — E Wei Wuxian é seu único irmão? 
— Sou mesmo — falou com certa arrogância, empinando o nariz orgulhoso. — Eu tenho uma outra irmã, Yanli, ela é casada com um pavãozinho de merda e tem um filho, o Jin Ling… — Cheng suspirou baixo ao se lembrar de seu sobrinho e irmã, entre todos, os dois definitivamente eram os que mais lhe faziam falta. 
— Pelo jeito, você adora seu cunhado — disse Xichen brincando com uma pequena pedra entre seus dedos. — Quantos anos tem seu sobrinho? 
— 3, mas logo vai fazer 4… — Cheng pareceu pensar a respeito daquilo e arregalou levemente os olhos. — Não acredito… Porra, Xichen, o aniversário dele vai ser menos de uma semana depois que terminar esses 21 dias… 
— Da floresta direto para a mesa do bolo, parece muito agradável — falou Xichen. 
— Que droga, eu não comprei nenhum presente… Será que vai dar tempo? — Cheng levou a ponta de seus dedos até os lábios, mordiscando as unhas com certa ansiedade e uma luz se acendeu em sua mente. Logo o homem se aproximou do cinegrafista que estava filmando pela proximidade e segurou a câmera, focando em seu rosto. — Wei Wuxian, eu sei que você vai assistir isso, então compre um presente legal para o Jin Ling por mim. Você me deve por me enfiar nessa enrascada. 
— Você… Sabe que o programa vai ao ar só depois de editar, não é? Provavelmente só saia quando seu sobrinho já tiver 4 anos — comentou o cinegrafista em um tom baixo, com certo receio de que Cheng o entendesse. 
— O quê? — Cheng praticamente gritou a pergunta em irritação. — Então me empreste seu celular, vou ligar para o imprestável para que ele compre o presente por mim. 
— Wanyin, estamos em um local inóspito, não há sinal de celular por aqui. 
— Que lugar fodido do caralho — reclamou e saiu bufando para perto do rio e enfiou os pés na água fria. — Merda de lugar, merda de programa. 
Xichen riu do pequeno surto de raiva e estresse do outro, achando extremamente adorável como ele podia explodir por algo tão simples quanto um presente de aniversário, o que demonstrava o quanto se importava com o sobrinho e o queria agradar. 
— Relaxa, Wanyin, tenho certeza que terá tempo suficiente para achar algo incrível para seu sobrinho depois que sairmos daqui — afirmou e se sentou ao lado do outro, encostando sutilmente seus ombros. 
Cheng murmurou e balançou levemente seus pés na água. Alguns minutos depois, o céu se tornou mais e mais alaranjado, trazendo a atenção dos dois homens para lá. 
Xichen olhou de soslaio para Cheng, notando-o totalmente envolto naquela cena, as cores alaranjadas refletindo em sua pele. Os lábios finos pareceram tremular como se tivesse prestes a sorrir para aquela beleza da natureza. 
— Quando éramos crianças, meus irmãos e eu vivíamos vendo o pôr do sol na beira do rio desse jeito… Depois que crescemos, nunca mais nos reunimos assim. 
Lan Xichen se aproximou mais ao ouvir aquilo e ergueu seu braço, hesitando levemente antes de repousá-lo sobre os ombros de Cheng, trazendo-o para si enquanto permaneciam em silêncio observando o Sol sumir pouco a pouco no horizonte. 
O silêncio em si não era um problema para nenhum deles naquele momento, muito menos a proximidade já que estavam completamente imersos naquela linda cena que estar em contato tão direto com a natureza lhes proporcionava.
[...]
Um ódio profundo assolava o peito de Cheng. Doze dias se passaram desde que começaram aquele inferno e mal podia esperar para ir ao ponto de encontro no final no vigésimo primeiro dia para ir embora dali. 
Não havia centímetro de sua pele que não tivesse sido mordido por algum inseto e seus dedos coçavam com certa brutalidade a epiderme, deixando-a com vergões avermelhados além dos inchaços das picadas. 
Sua barriga roncava com frequência e o que conseguiam para se alimentar não era lá grande fonte de vitaminas. Quando voltasse para casa, iria oferecer um enorme banquete só para si, afinal, ele merecia. 
— Wanyin, vou tentar pegar alguns peixes para comermos. Quer me acompanhar? — Ouviu a voz de Xichen lhe chamar e seguiu o som em direção ao rio, não sem antes pegar sua lança muito bem afiada. 
— Aposto que consigo um maior que você — provocou Cheng girando a lança entre seus dedos e se prostrando sobre uma das pedras. Depois daqueles dias de convívio constante, estava começando a se adaptar ao estilo de Xichen, assim como ele se adaptava ao seu.
— Que competitivo, Wanyin… Mas o que vai apostar? 
— Hm… Se eu vencer, você vai ficar responsável por assar os peixes e se você vencer, eu fico responsável. 
— Trato feito. 
Cheng não pôde deixar de sorrir malandro, conhecia os rios com a palma de suas mãos e suas habilidades de pesca eram extraordinárias, afinal, uma de suas atividades favoritas na atualidade era levar seu pequeno e amado sobrinho para pescarem no riacho. 
Tinha absoluta certeza de que Lan Xichen não o venceria, a menos que tivesse um golpe de sorte e conseguisse um peixe enorme por acaso. 
Cheng se prostou sobre uma pedra e observou silencioso as águas balançando conforme um pequeno cardume passava. Seus olhos atentos logo se focaram em sua presa e vlapt, a lança chacoalhou o rio em pequenas ondas e Cheng puxou a madeira, vendo que a fincara em um peixe pequeno, mas gordinho. 
— Xichen, consegui um — falou erguendo sua conquista e a balançando antes de caminhar até a borda para deixar o peixe sobre os cascalhos mais longe da água. 
— Um exímio pescador, Wanyin… Tentarei pegar algo bom o suficiente para te ultrapassar — comentou Lan Xichen e sua lança afundou no rio algumas vezes antes de voltar com um peixe cravado na ponta, pequeno e mirrado. 
Cheng olhou para o animal e caiu na gargalhada pelo tamanho ridículo do peixe, aquilo não daria nem ao menos para tapar o buraco do dente. 
— Ao menos dá para usar como palito de dente — positivou o mais alto, o que fez Cheng rir ainda mais e se aproximar, retirando o peixe da lança para colocar junto ao seu. — Está tentando roubar meu pescado? 
— Oh, você o quer tão pequeno assim? Tente pegá-lo, Xichen — provocou balançando o peixe em suas mãos e Lan Xichen se aproximou em um passo firme, o que fez Cheng recuar levemente e colocar as mãos para trás. — Muito devagar, Xichen. 
A voz soou afiada e provocativa junto ao sorriso ácido e insinuante, estava óbvio que se divertia naquele momento tão inusitado. 
Lan Xichen se aproximou rápido e Cheng arregalou os olhos, surpreso, não esperava que o outro diminuísse a distância em tão pouco tempo. Seus pés se atrapalharam para fugir e se enroscou nas pedras, tombando para trás. 
Sua vida passou bem diante de seus olhos ao ver o rio e os pedregulhos se aproximarem cada vez mais sem poder fazer nada. 
Felizmente, não foi o impacto de sua cabeça contra as pedras que sentiu, mas sim, as mãos de Xichen lhe agarrando pela nuca e pela cintura, trazendo-o para perto e grudando seus corpos. 
Uma respiração alta deixou sua boca por instinto e susto, suas próprias mãos se apoiando contra o peitoral firme de Xichen como uma resposta automática de seu corpo. Seus olhos subiram assustados para o rosto do outro e suas bochechas se aqueceram ao notar a imensa proximidade que possuíam. 
Seus corpos nus estavam colados e molhados pelos respingos do rio e o calor que emanavam era intenso demais para não perceber. 
Cheng grunhiu em desespero e se afastou, espalmando suas mãos contra Xichen, o empurrando para escapar daquele sentimento vergonhoso que o assolava. Sua respiração se tornou ofegante e teve o ímpeto de sair correndo, entretanto, não o fez, estático ao ver a reação de Xichen a sua. 
Ele parecia ofendido com seu ato e Cheng engoliu o pedido de desculpas, sentindo-se contraditório com o sentimento de vergonha misturado ao receio e orgulho. 
Sabia que Xichen tinha feito aquilo para protegê-lo, para que não se machucasse, mas o contato inesperado o fez entrar em completo desespero, não era o tipo de pessoa de carícias e contato físico, pelo contrário, o afastamento era sua principal escolha. Contudo, ter aquele semi-desconhecido tão próximo como se fossem íntimos tinha desestruturado sua mente. 
— Eu… Xichen… — resmungou Cheng engolindo em seco e dando alguns passos para trás em receio. 
— Desculpa, Wanyin, não te segurei com qualquer outra intenção que não fosse te ajudar. 
— Eu sei, eu… — Cheng tentou pronunciar o pedido de desculpas por sua reação mal-educada, contudo, as palavras pareciam entaladas em sua garganta. — Des… Cul… Pa. 
— O que disse? — questionou Lan Xichen franzindo o cenho ao escutar o resmungo baixo do outro. 
— Desculpa — falou de forma um pouco mais clara depois de respirar fundo. — Não quis te ofender… 
Xichen sorriu pequeno e lhe respondeu com um "tudo bem" antes de retornar a atividade que faziam, pescando mais alguns peixes para o jantar. 

naked and afraidOnde histórias criam vida. Descubra agora