Eu vi a verdade

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"Brilhante!", vociferou Edgar diante da cena final de "Esperando Godot", peça do dramaturgo irlândes Samuel Beckett.

O público do teatro fênix se levanta, uma uníssona e cada vez mais alta salva de palmas se estabelece; em cantos do teatro pode-se escutar comentários efervescentes que se elevam para o palco depois da cortina descendo.

No camarote um rapaz se aproxima de Edgar e, naquele sentimento de alguém que quer externar a efusão do espetáculo presenciado diz:
- Godot são dias melhores, não acha?
- como assim?
- estamos sempre esperando dias que encherão nossas almas de ternura, mas a cada horizonte que chegamos, a felicidade troca de lugar.
- Percebo. O que achou do final de Vladimir e Estragon?
- Vidas invisíveis. Me parecem identidades nulas e isso me assusta um pouco.

Edgar nunca tivera antes um contato direto com o teatro do absurdo e no tilintar dos seus trinta anos, trabalhava um turno com vendas comerciais, e no tempo livre cultivava ainda, como podia, seu amor pela literatura, teatro, cinema e as artes em gerais.

Nenhum familiar lhe influenciou nesse seguimento; sua avó, no incentivo da leitura, foi a centelha mais próxima nesse caminho. Sempre que o perguntavam como aparecera tal inclinação, gostava de citar o exemplo de Policarpo Quaresma no livro de Lima Barreto quando a pergunta dos vizinhos curiosos ironiza: pra quê essa estante de livros se não é professor?

Da infância à adolescência brigava com seus colegas e professores de escola, seus pensamentos e pontos de vista eram sempre divergentes do meio social que estava inserido, ameaçou criar no imaginário uma espécie de alter ego compreensivo no qual pudesse despejar suas excentricidades.

Passava longe de ser um neto exemplar; seu único prazer no lazer consistia em jogar bolinhas com uns pivetes de quarteirão na vila guaré. Sempre sentiu a falta da presença de um mentor, de um mestre que lhe orientasse nas diretrizes da vida.

Abandonado na porta da avó pelos pais quando era uma criança de dois anos, cresceu forjado a entender que alcançar o limite não seria um retiro de fim semana. Dona Benedita, sua avó, uma aposentada do serviço público, ralou muito para criá-lo sozinha, intercalava seus dias na educação do neto e nos trabalhos de crochê.

Um rapaz carregado de aflições. Tentou ser ator e logo desiludiu. Rumou para a catedrática de história mas trancou a graduação quando percebeu que recortar um momento do passado e vive-lo, seria uma missão além do que estava disposto entregar.

Via destempero na vida, olhava no espelho um prisioneiro exilado em seus próprios sonhos. E agora ele está ali, a vista estendida, vidrado no palco com os olhos secos parecendo olhos de sapo que morreu em dia de enchente. Uma angústia lhe sobe da planta dos pés até a cabeça, mapeia por uma última vez a platéia e se retira.

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A par e passo do caminho de casa, Edgar voltava pela rua da lua, O teatro fênix se localizava, dava uma impressão, espremido entre um prédio da secretaria de cultura e um prédio dos correios. Lampiões históricos encimando as calçadas e um tirão de comprimento sempre reto com duas ou três acentuações na pista. Era por volta de vinte uma horas da noite de um verão de agosto.

Vidas invisíveis? com um quarto de distância percorrida, essa pergunta brotava no coração e na consciência dele. É certo que o estranho que respondeu isso no camarote do teatro se referia ao vazio da alma daqueles dois personagens, e de certa forma, Edgar se identificava com isso, caminhava a passos firmes cerrando o maxilar, olhando distante; veredas do passado respingavam na sua mente:

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⏰ Última atualização: Sep 02, 2022 ⏰

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