IV. | Sacrifício

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Por ter sido descuidada, os sacerdotes do Templo descobriram o incumprimento do seu dever dos vários dias anteriores. Tamanha demonstração de insolência é suficiente para merecer um castigo físico severo. Porém, dado o papel da menina na Cerimónia do Templo no dia seguinte, Kaheris vai para a cama sem jantar depois de assistir à aplicação do castigo, que lhe era originalmente dirigido, a Heren, o seu Vicário.

Com o raiar do dia seguinte, o Templo entra em alvoroço. Kaheris é lavada com vigor e as suas feridas são tapadas ou disfarçadas antes de ser adornada. As outras crianças e os sacerdotes apressam-se a preparar o altar de pedra nas traseiras do Templo, no topo das escadas que lentamente se enchem de admins. 

Horas depois, a Cerimónia tem início. De face tapada, Kaheris é conduzida por outras duas crianças ao altar, onde uma elevação se encontra adornada com flores brancas. A multidão mergulha num silêncio tenso enquanto a ajudam a sentar-se na elevação e acendem o incenso.

— Obrigada por se juntarem a nós — exclama a Sumo-sacerdotisa ao subir ao altar. — Hoje é o dia em que, em nome de Sima, lhe mostramos novamente o maior dos nossos respeitos. Hoje é o dia em que a alma desta Criança Abençoada — diz, apontando para Kaheris atrás de si, que segura na mão um cálice de líquido avermelhado — fará a sua jornada até às Terras Sagradas para fazer companhia à única criança que a habita!

A multidão ruge. Kaheris, resignada com o seu destino, começa a beber o líquido que, uma vez no seu corpo, fará reação com o incenso que lhe enche os pulmões e a levará para os Domínios de Qhyrteus.

— Alto! — exclama uma voz de repente, ribombando como um trovão.

Uma rajada de vento percorre o altar, apagando o incenso. Os admins encaram, estupefactos, a figura de criança de pele alva e cabelo rosa que se ergue agora no seu centro e se dirige para Kaheris, retirando o copo meio vazio da sua mão.

Kaheris arregala os olhos. As manchas vermelhas sobre as sobrancelhas são novas, mas aquela é a sua amiga Shira. 

Estilhaçando o copo no chão, a recém-chegada sopra sobre Kaheris, curando as feridas visíveis do dia anterior e anulando o efeito do veneno no seu corpo.

Ao ver aquilo, a multidão empalidece.

— Quem és tu? 

— Eu sou uma das cinco Deidades Inferiores das Terras Sagradas — diz, encarando a multidão com uma gravidade de alguma forma mais intensa do que a habitual. — Eu sou filha de Onna e de Frew. Eu sou aquela que vocês dizem venerar e para a qual criaram este Templo e todas as suas tradições patéticas. Eu sou aquela para quem sacrificam as vossas estimadas Crianças Abençoadas, ano após ano.

Com medo crescente, a multidão ajoelha-se diante da Deusa-criança, prostrando-se de corpo e alma no chão empoeirado. 

— Eu sou Sima, Deusa da Medicina e da Cura — remata, encarando a Sumo-sacerdotisa com uma fúria silenciosa.

A mulher, colada ao chão, consegue apenas sentir o peso do olhar de Sima sobre si.

Tu, que te dizes guia dos fiéis que me prestam culto... — Sima aproxima-se da Sumo-sacerdotisa, parando quase sobre o seu crânio. —  Eu não sou a mais nova das Terras Sagradas, nem estou confinada ao Mearal. Não sou frágil e inocente, muito menos ingénua. Não estou afogada em solidão e não preciso, de todo, da companhia das almas das crianças que fazes questão de enviar para os Domínios de Qhyrteus todos os anos. A única coisa que pareces conhecer sobre mim é a minha aparência infantil e os meus poderes curativos. 

— Oh Po-poderosa Deusa... —  gagueja a mulher ao tentar justificar-se, sem nunca se erguer. 

— De ora em diante, tu e o teu séquito estão despojados da vossa posição no meu Templo e dos privilégios que ela acarreta. — Sima olha de relance todos os sacerdotes e sacerdotisas. — Serão banidos de Admen e de proferirem o meu nome, ou qualquer um dos meus títulos, sob pena de irem fazer a companhia a Nithos no Domínio Vazio. 

Todos os implicados estremecem. A multidão de fiéis, ainda a encarar o chão, engole em seco e controla os arrepios. Kaheris aperta as mãos das crianças que se aproximaram para a apoiar, olhando por uns instantes a cena à sua frente antes de fixar de novo as pedras do altar debaixo dos pés.

— Tu! — exclama Sima, apontando para um dos adolescentes do Templo nas primeiras filas da multidão. Percebendo que é consigo, o jovem estremece e chega-se à frente. — Certifica-te de que tratam de banir os culpados antes do crepúsculo e que lhes deixam a marca de Nithos bem visível antes de correrem com eles

O miúdo assente. Sima gira nos calcanhares, balançando o cabelo rosa ao encarar a multidão mais abaixo.

— Deixarei que decidam o que fazer com o Templo vazio. Mas que fique claro que todas as suas crianças, Abençoadas ou não, são intocáveis. Jamais se atrevam a repetir em meu nome estes rituais hediondos, aqui ou em qualquer outro dos meus Templos, pois nem Uros será capaz de vos salvar das consequências.

Sima volta-se para Kaheris e, apesar de não alterar a expressão grave, o seu olhar suaviza.

— Vem — diz, estendendo-lhe a mão.

Kaheris encara-a a medo e hesita.

— Deusa...

— Para ti, serei sempre apenas Sima — explica, num tom que é audível apenas para a sua amiga humana. — Nada mudou desde ontem entre nós. Vem.

Kaheris assente e, com um sorriso, toma a mão da Deusa na sua. Sima não se dá ao trabalho de suprimir o poder que emana naturalmente do seu corpo, causando um formigueiro na pele de Kaheris enquanto descem do altar.

— Onde queres ir?

— Podes ajudar o Heren primeiro? — pergunta Kaheris, com a voz carregada de culpa.

Depois de ouvir a explicação, Sima aceita o pedido e cura o Vicário moribundo. Ylir ficará furiosa, mas isso é um problema que a Deusa-Criança resolverá mais tarde. Depois, sorrindo apenas com o olhar, repete a sua pergunta à humana a seu lado.

E Kaheris, sorrindo abertamente, responde que qualquer lugar onde possam passar tempo juntas lhe é suficiente.

1022 palavras

O sorriso de Sima ✔Where stories live. Discover now