II. | Criança Abençoada

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A pequena Kaheris nunca teve uma família

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A pequena Kaheris nunca teve uma família. Não no verdadeiro sentido da palavra.

Tem parentes de sangue, que a tinham vendido ao templo assim que nasceu. Tem os irmãos e irmãs que povoam o edifício sagrado com ela e os sacerdotes e sacerdotisas que deles cuidam. Mas nenhuma das situações poderia ser considerada a sua família. Não no verdadeiro sentido da palavra.

E, contudo, ela tem noção do que uma família deve ser, mesmo sem nunca ter sentido aquilo na pele. Ela sabe dos laços de amor e apoio incondicional, do orgulho das conquistas, das saudades de quem parte e da dor de ver um ente querido num aperto.

Tudo, porque é seu dever testemunhar parte disso.

Como uma Criança Abençoada, é seu dever ficar por horas fechada num altar, separada do público por um véu, e nada mais fazer do que ouvir as suas rezas à Deusa da Cura e acenar levemente com a cabeça quando os seus olhos suplicantes se levantam em busca de confirmação divina. É seu dever ser uma representação da Deusa tão idêntica quanto possível, e deixar que os fiéis busquem consolo na Sua personificação na terra.

Depois da primeira refeição do dia, tomada sob o raiar do sol, a Sumo-sacerdotisa aproxima-se de Kaheris. Com uma mão gentil sobre o ombro da mais nova, ela ordena-lhe que vá para o altar na montanha para acolher os peregrinos que chegarão para a Cerimónia que irá decorrer daí a algumas luas e para não se esquecer de cobrir a face no caminho. A Deusa da Cura é conhecida pela sua austeridade apesar da aparência e, para evitar que emoções descontroladas traiam as Suas personificações, as Crianças Abençoadas devem usar um véu sobre o rosto.

Kaheris assente. As irmãs ajudam-na a trocar as vestes noturnas pelas complicadas túnicas em tons de castanho e branco, a calçar as sandálias e a colocar o manto que esconde a fronte, adornando-o com jóias em forma de flor. Antes de sair do Templo pelas traseiras, no caminho que dá para a montanha, a pequena reverencia a estátua da Deusa da Cura erguida no pátio, inspirando profundamente sobre os seus pés antes de se afastar.

Da forma como está vestida, o caminho parece-lhe longo e duro. Felizmente, um par de rapazinhos do Templo segue-a de perto para a ajudar a subir a montanha e ultrapassar obstáculos. Quando chegam ao altar, que nada mais é do que uma estrutura de pedra, como um telheiro pequeno e requintado, com espaço apenas para uma pessoa no seu interior, os rapazinhos ajudam Kaheris instalar-se no seu centro, de costas direitas e pernas cruzadas, antes de fecharem as cortinas ripadas que a separam do mundo.

A pequena aquiesce para a reverência que eles lhe dirigem antes de os ver partir, deixando-a sozinha entre os sons e as criaturas da montanha.

As horas passam e Kaheris permanece congelada na mesma posição, mesmo quando tem a certeza absoluta de que se encontra sozinha. A educação que lhe foi incutida ao longo dos anos compele-a a permanecer horas a fio como uma estátua, permitindo-lhe apenas remexer-se para aliviar o desconforto dos músculos e acenar com a cabeça aos poucos peregrinos que param para lhe rezar antes de continuarem o seu caminho para a aldeia nas imediações do Templo. Nada mais deve fazer até que a venham buscar no final do dia.

Porém, há um momento, quando o sol ainda vai alto, em que a resolução de Kaheris vacila. O seu corpo quase se mexe do seu lugar predestinado quando ouve gritos à sua volta. Alarmada, a pequena só percebe que são gritos fruto de brincadeiras infantis quando os vê correr em frente ao altar, pulando e rindo à gargalhada. 

O seu peito contrai-se e Kaheris luta para controlar a inveja. Uma parte de si também quer correr e brincar como as outras crianças e não ajuda nada ao seu autocontrolo que o grupo tenha decidido que as árvores em frente ao altar são ideais para as suas brincadeiras. Desesperada por recuperar a calma, Kaheris procura uma distração. Os seus olhos vagueiam pela paisagem e pelo grupo até pararem numa menina à sua frente. Parece da sua idade e tem o cabelo rosado, como todas as Crianças Abençoadas devem ter. Mas, por muito que esteja enturmada nas brincadeiras dos outros, a sua expressão fá-la destacar-se das demais crianças.

Aquela menina não ri ou sorri. Desde o momento em que Kaheris a encontra até que as crianças decidem partir, a menina de cabelos rosa não esboça nem a sombra de um sorriso.

Pode ser apenas um dia mau. Pode ser só uma coincidência. Mas aquele pormenor fica gravado na mente da pequena, espicaçando a sua curiosidade até muito tempo depois de a virem buscar para a reconduzir ao Templo.

790 palavras

O sorriso de Sima ✔Onde as histórias ganham vida. Descobre agora