Capítulo 1

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Disparo um beijão para o espelho para agradecer a imagem que ele me devolve, pois, verdade seja dita: fazer 40 anos não pesou no meu semblante nem no meu corpo que segue esguio e bem torneado, apesar de eu acabar de adentrar nessa idade que assusta tanto as mulheres.

E não é para menos. Aos 40 você começa a ter aquela sensação de que a montanha russa acabou e algumas coisas estão definidas até o final da sua vida terrena – vida terrena. De onde desenterrei essa breguice, minha gente? – Mas sério. Insisto na tese. Até porque ninguém está ali ouvindo meus pensamentos.

Aos 40 você já é uma executiva de sucesso, ou mesmo uma executiva sem sucesso. Uma solteirona triste. Uma solteira feliz? Uma gata no cio? A rainha da balada? Aiaiai. Só me vem à cabeça perfis preconceituosos e percebo que estou querendo encontrar uma definição para mim mesma.

Interrompo a autoanálise de bolso ao ouvir a voz de Thomas na sala, praguejando impaciente para eu terminar logo de me arrumar, senão ele vai sair sozinho para conhecer a Pacha, a super boate que é o sonho dos brasileiros que moram em Nova York.

Entre as muitas almas que cabem naquele espaço dividido em quatro pavimentos de pura efervescência estaremos nós dois esta noite. E estamos ávidos para curtir o lugar desde que chegamos a NYC há seis meses para trabalhar e mudar o foco da nossa vida.

Não é qualquer dia que nós, dois durangos ainda se estabelecendo na nova cidade, conseguimos nos programar para ir a um bar tão sofisticado como esse. Fizemos praticamente um planejamento financeiro de longo prazo para esta noite. Mas vai valer a pena. Estou pronta para desbravar a terra prometida. Registro para o fato de que as citações cafonas estão me dominando.

Percorro rapidamente o trajeto banheiro – sala e dou de cara com aquele louro lindo de 22 anos, que domina todo o espaço do alto do seu 1,80 metro de altura.

E eu, a tal quarentona chegada numa conversa com espelhos, estou ali de frente para ele me sentindo uma tampinha de 1,64 metro (1,68 - investi num salto que parece uma escada de bombeiros). Independentemente disso, percebo que somos uma dupla harmônica.

Nos olhamos e uma onda de amor nos domina naquele flash. Thomas corta esse instante de ternura, me olha de cima abaixo parando no decote da blusa e dispara: Nem morto saio com você com esses peitos quase de fora, mãe!

- Então, não vá – dou uma risada, ponho o casaco e tomo meu filho pelo braço. Ele me abraça de volta. Saímos na noite escura e geladíssima para pegarmos um táxi em direção ao lado oeste de Manhattan.

Quando você é mãe aos 18 anos a maturidade bate na porta e diz olá, sinto muito. Vamos trabalhar, pagar contas, dormir pouco. Trabalhar mais um pouco e viver exclusivamente para aquela coisinha fofa que arregala os olhos felizes toda vez que vê você.

Mas, olhando para trás, não consigo imaginar outro roteiro para minha vida. Além disso, tenho hoje um amigo, um companheiro, um filho perfeito, que me ajudou demais numa jornada duríssima até chegarmos aqui. Uma cidade nova. Um emprego novo. Uma cultura completamente diferente. A noite dos clichês: a vida começa aos 40.

- Entrada gratuita ou desconto na conta? – pergunto para saber o tamanho do rombo que teremos.

- Conheço uma das hostesses. Totalmente free.

- Uma amiga? Nós estamos aqui há seis meses e você já tem uma amizade colorida? Ou o quê?

- Mãeeeeeeee.

- Beleza. Também não te conto mais nada.

- Contar o quê? – ri alto Thomas – O que você vai fazer no almoço de domingo?

- Minha vida é agitada também, viu. Só não fico me gabando por aí como você – novas risadas. Estamos felizes e excitados com tudo o que está por vir.

E os últimos 20 anos passam como um relâmpago pela minha cabeça. A vida no Brasil. A presença autoritária da minha mãe. Meu ex-marido, que congelou nos anos 80 e acha inclusive que a idade congelou junto, suas tantas idas e vindas na droga. E, de repente, a oportunidade de ir trabalhar num outro país. E o meu filho, sempre o estaleiro. Me ajudando nessa guinada de 180 graus e se oferecendo para estar junto.

- Andrezza - meu filho me repreende - que cara é essa de quem me ama?

E tem início o nosso código. Quando colocamos o pé na rua automaticamente Thomas começa a me tratar pelo meu nome e controla os meus passos a ponto de não deixar ninguém se aproximar. Já cansei de me repreender por deixar meu destino ser administrado por outras pessoas.

Saiu a minha mãe, dando lugar ao pai do meu filho, que então passou o bastão definitivamente para Thomas. Pelo menos o último ditador me retribuiu com amor genuíno e faz eu me sentir, todo dia, uma mulher feliz e bem-sucedida nessa criação improvisada da maternidade precoce.

Na entrada da boate está um lindo negro sensação fazendo a checagem de convidados e selecionando pessoas. Pelo jeito, a amiga door policy está de folga hoje, mas deu um jeito de deixar tudo esquematizado para nosso passe livre, pois ingressamos sem dificuldade no local. A verdade é que estamos tão descolados-chiques que nem precisaríamos de uma força da garota misteriosa. Ahhh Andrezza, quem é mesmo o ciumento entre você e seu filhote?

O lugar é moderno e está cheio de gente de todas as idades. Parece que o pré-requisito atrativo é ser bonito e bem-sucedido. Nós dois, inclusive, fazemos essa figuração. Estou com uma calça preta justa até os quadris e de caimento largo a partir daí. 

A blusa é vermelha num tecido metálico e, para desgosto do meu filho, valoriza meus seios.Completo a composição com um cintão amarelo que dá um contraste passarela no look. Economizo na maquiagem do rosto, mas coloco todo o apelo na boca: batom também vermelho porque hoje eu quero sujar um colarinho. Se eu não acreditar na possibilidade... quem vai?

Thomas está de calça jeans e blusa despojada cinza. A cara da sua idade. Aliás, o pai dele deve estar com roupa parecida nesse momento em algum lugar de São Paulo. Portanto, o que seria "sua idade", minha cara?

Flutuamos pelo clube e vamos encontrar nossos colegas no local combinado. Eles estão no quarto andar da Casa, conhecido como Pachita. Entre os conhecidos está meu melhor amigo, Tulio, nossa ponte para chegar aos EUA.

O nosso grupo se acomoda num sofá no canto e percebo que é composto por pessoas mais jovens e uns três velhacos como eu. Atenção: acabamos de retirar a expressão "velhaco" da nossa vida, ok? Bye-bye caretona. Você agora é uma nova iorquina de atitude. Faz o favor de curtir.

- Sua amiga é influente, Thomas. Entramos como duas celebridades.

- É mãe. Você nem conhece a moça e já percebo que se dói de ciúme.

Mas eu não dei a menor bandeira! Chato esse menino quando me pega com a boca na botija na condição de protetora da manada.

A conversa no nosso grupo está naquele nível que todo mundo fala e ninguém está ouvindo nada, pois a música é muito alta. O moço amigo de outro moço sentado conosco me oferece uma bebida que eu tomo sentindo o discreto peso do olhar de Thomas sobre mim. Não sei o que é pior. Essa vigilância ou a bebida doce colorida flamejante que o galanteador quase careca pensou que me agradaria.

Acho que fico uma hora por ali tomando aquele arco-íris de matéria prima indecifrável. Resolvo dar uma circulada pelo lugar para ver tudo e escapo até o mezanino para espiar os camarotes e também comprar alguma coisa que tire o gosto daquele pote de açúcar com álcool.

Me aproximo do bar principal daquele andar dos bacanas e me espremo entre as pessoas tentando pegar o cardápio para escolher a cerveja mais legalzinha e barata que encontrar.

Ao pegar a long neck eu me viro e dou uma passeada de olhos à minha volta para ver como são os seres mais abonados, que pagam até 3 mil dólares por um espaço privado num Clube, com a mesma displicência que eu compro minha cerveja. E congelo numa imagem da figura mais máscula e imponente que já vi nos últimos exatos 40 anos.



Óleo de PrímulaWhere stories live. Discover now