Capítulo 1 - Solidão presidencial

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Srta. Santana Lopez POV

"Sam Willian irá presidir a sessão no Senado que votará o polêmico projeto sobre a extinção ou aplicação das sanções contra a China. Amanhã a discussão finalmente irá para o Congresso. Republicanos e Democratas afirmam que vão votar sem a influência de seus partidos, mas alguns parlamentares devem se opor à esse posicionamento."

Ali não havia nada fora do seu devido lugar. "A Noite Estrelada", de Vincent Van Gogh, mantinha-se ao lado esquerdo do cômodo; "O Nascimento de Vênus", obra de Botticelli, ao lado direito; a boisere de painéis chineses laqueados, pertencentes ao século XVIII, compunha parte da luxuosa decoração da sala de jantar da Casa Branca. Apesar da beleza, o lugar era frio, mas não pela temperatura climática, e sim, pela ausência de calor humano.

Os olhos morteiros - porém atentos de Santana, vasculhavam e observavam pela enésima vez cada detalhe do cômodo que expressava uma personalidade minuciosa, mas sem o brilho da alma a quem pertencia.

Sentada na cabeceira da mesa de pés torneados, que casavam harmoniosamente com o tampo contemporâneo e robusto, estava a filha do primeiro presidente dos Estados Unidos da América de origem latina, gozando solitária de seu desjejum, enquanto acompanhava as notícias do telejornal matutino. Solitária, não no sentido literal da palavra, uma vez que sua posição social lhe impunha contato constante com uma infinidade de pessoas, mas pelo estado de espírito que ela mesma havia adotado para si.

- Às 10:30 sua mãe irá acompanha-lá ao almoço beneficente que...

- Eu já sei de cor e salteado todos os meus compromissos do dia. Obrigada. - A voz de timbre rouco da morena soou mais impetuosa do que o esperado, deixando um rastro de constrangimento em Pauline, sua secretária particular, que nada mais fazia naquele momento, do que cumprir com a sua função de assessoramento.

- Srta. Lopez, eu só estou tentando repassar a agenda, já que conhecemos bem a Sra. Maribel e sabemos que ela não tolera...

- Pauline, eu conheço a minha estimada mãezinha há trinta e seis anos. Sei exatamente como funciona esse traço irritante de pontualidade, pois eu o herdei. - Santana ergueu o braço esquerdo à fim de verificar as horas em seu Cartier Tenho algum tempo ainda, não me apresse. Eu vou para o meu quarto me arrumar. Ela levantou-se, utilizando o guardanapo preto bordado, que até então era mantido em seu colo, para limpar os cantos de sua boca, dispensando-o em seguida ao lado do prato - Não quero que ninguém me incomode, senão, aí sim não conseguirei cumprir com os devidos horários marcados. Encarregue-se do meu sossego por pelo menos alguns minutos. - Altiva por natureza, a mulher deu alguns passos em direção a saída. Antes de transpor a porta, voltou a sua atenção para a loira que a observava - Por favor? - Então, ela sorriu brevemente ao receber o assentimento com a cabeça, sumindo casa afora.

O caminho até a sua suíte não era tão longo em termos de distância, mas era demasiado exaustivo para a Lopez. Mesmo atenta aos empregados indo e vindo a executar as suas funções, ao mundo ostentativo a que pertencia, sempre se via remetida a divagações sobre a sua vida e sobre si mesma.

"A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes (...). Receio que não possa explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas, mas não posso explicar a mim mesma...

Alice no País das Maravilhas era um dos clássicos infantis que mais lhe apetecia. Por motivos aquém de seu conhecimento, sempre se lembrava desse trecho da história ao percorrer os metros que se davam entre a sala de jantar e seus aposentos. Contudo, em seu íntimo, ela sabia que todos os seus questionamentos de cunho filosófico, faziam na se parecer em demasia com a Dona Lagarta.

- L'appel Du Vide. L'appel Du Vide.

A morena citava a expressão de origem francesa como se decorasse uma matéria para os exames finais do colegial, ao passo em que se despia de suas vestes, mantendo o corpo escultural coberto somente por um conjunto de lingerie azul escuro.

Em seu closet, corria os dedos pelos tecidos de seus variados modelos de vestidos, dispostos por tamanho e cor, metodicamente organizados por sessões de uso.

- Maldita mania de perfeccionismo! Por que eu tenho que ser tão parecida com a minha mãe? Oh, droga! Qual? Qual? Qual? Esse! Perfeito!

Pronto! A escolha da vestimenta estava feita. Os sapatos não lhe causaram tantas dúvidas. Foi pego o primeiro par que sua mão alcançou, depois de ter fechado os olhos para parecer uma opção aleatória, como se não tivesse memorizado o lugar exato de cada coisa ali dentro.

- Foco, Santana! Esse almoço em prol da Campanha Contra a Depressão é muito importante e você precisa parecer entendedora do assunto. Discursar não é fácil, mas já fez isso incontáveis vezes e essa vez não será muito diferente das outras. Falar sozinha foi um hábito adquirido desde sua infância, onde via-se cercada de inúmeras bonecas e seres imaginários, mas nenhuma amiga humana - "O Chamado do Vazio" é uma súbita vontade que já passou pela cabeça de muitas pessoas... Santana proferia as palavras pausadamente enquanto seu corpo refestelava-se sobre o cobre-leito em tom rosa perolado de sua cama. Repassava o que falaria diante de várias senhoras e senhores dispostos a doar quantias exorbitantes a mais essa obra em favor do sofrimento alheio e às suas imagens de benfeitores da sociedade - ...de pôr um fim em sua própria vida. Eu mesma já senti essa emoção. Desculpe-me, mamãe, mas nenhum de nós está livre disso, nem mesma eu. Aparentar estar bem psicologicamente, aparentar estar feliz, não significa uma reprodução da realidade interna. - Suas íris miravam um ponto cego do teto e suas mãos repousavam sobre seu peito - É uma emoção incontrolável. Geralmente acontece quando encontramo-nos diante de uma situação de aparente risco, como estar pisando na linha de segurança ao aguardar o metrô, ou quando estamos apreciando uma linda vista em um local alto. É uma idéia um tanto quanto fugaz, mas que graças à Deus se passa pela nossa cabeça em um intervalo de tempo tão pequeno, que instintivamente é o suficiente para mudarmos de opinião.

Solidão: estado de quem está só; retirado do mundo; isolamento. Em uma breve pesquisa, há de se encontrar essas expressões como explicativo para a palavra tão temida. A teoria é clara, de fácil entendimento, mas a prática não se dá tão simples. Em senso comum, ser solitário é viver isolado sem nenhuma companhia, e não deixa de ser. Contudo, existe um lado muito cruel da solidão, onde o indivíduo, embora cercado de pessoas, não consegue se conectar com nenhuma delas, menos ainda consigo mesmo.

Essa era a realidade de Santana Lopez. A mulher que agora, mais uma vez, lamentava silenciosamente, em posição fetal, os infortúnios de sua vida perfeita. Repassando o seu breve discurso, ela acabou entendendo que, na verdade, falava sobre si e sua depressão latente. Era solitária, obviamente não por estar separada de seus familiares e das demais pessoas, mas sim, por sentir-se desconectada do mundo. Insatisfeita com sua própria existência, a única herdeira da fortuna do presidente abandonou a si, deixando de ter prazer em suas relações. Vivia em modo automático, como robô programado para sorrir e acenar, tendo, vez ou outra, breves pensamentos suicidas.

De nada adiantava estar no topo das posições sociais, gozar de uma riqueza financeira a se perder na contabilidade, viver aqui e acolá em meio a flashes, glamour, festas e rodeada de pessoas belas, inteligentes, consideradas a nata selecionada da sociedade americana. Em ignorância, seu dia-a dia, aos olhos de muitos, era maravilhoso, cabal, porém, não passava de um mero engano.

A morena tinha verdadeiro pavor da sensação de não poder ser e fazer o que bem entendesse fora das convenções e regras de etiqueta, juntamente com o peso que carregava de seu sobrenome. Isso a talhava, a assombrava dia e noite de sua existência ímpar, lhe consumindo feito papel em brasa pelo medo de olhar para os lados e enxergar uma multidão que a aclamava, mas olhar para dentro de si e enxergar o vazio de não reconhecer-se.

E assim, ela tentava ocupar, inutilmente, o tempo e a mente para evitar conviver consigo mesma, sem se dar conta de que era o mesmo que tentar abarrotar um buraco sem fundo que nunca seria preenchido.

Não era glamorosa, mas sim, teatral, a vida da filha do presidente.

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