01. 1827: Horácio, o bobo da Corte

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essa capa incrível foi feita pela lady-chang no Wonderful Designs ! a vibe bem livros da darkside, um talento sem igual :( obrigado por essa arte! 

introduzindo vocês ao universo místico! boa leitura <3

.s.: isso não é um romance romântico



"Você diz que sim, afirma com devoção" postula Horácio, assim que o relógio na Torre cospe som às onze da noite. 

Sobe frio do chão, esse asfalto pedroso e pontiagudo. Desgasta a sola suja do sapato velho, gasto pelas noites sombrias e raivosas, nas quais rugem, nos fundos dos becos e vielas, as más línguas do povo. E rosnam para aqueles ousados senhores, cujas botas pontudas e afiveladas fazem mau uso da escuridão gelada de tais. 

A Lua retruca em pormenores, gargalhando da sombra assustada das jovens e inocentes moças voltando tarde da noite, em que seus caminhos foram acidentalmente trocados, confundidos e roubados. Das bolsas de grife tilintando nos olhos dos vigaristas de rua, esperando que sua dona a segure com um só dedo, enquanto, na mão direita, o copo de bebida, Whisky ou Tequila, permanece intacto e impassível de destruição.

O homem na escuridão ainda aguarda uma resposta do rapaz de sobretudo preto, fumando um charuto e ajeitando sua cartola francesa, presente do Rei para seu estoque de chapéus exímios. Os lendários e intocáveis chapéus daquele que habita silenciosamente o último quarto da pensão de dona Tamera. Seu hóspede mais fiel, embora, aos sábados de cada segunda semana do mês, não se agraciasse com sua honrada presença. 

Tinha sob domínio, o jovem, um poder irresoluto. Sentava-se, pensativo outrora, exclusivamente, em uma cadeira de couro ilegítimo, ainda que houvesse boatos de que ele mesmo confeccionou seu próprio assento, dispensando mãos sem talento; para que, ao bem tocar do sino nas manhãs, ouvisse claramente o apelo de outro cliente para perdoar-lhe a falta de pagamento. 

Que a piedade em seu puro estado fizesse morada no coração dele, pois, àqueles que não cumprem suas claras regras, regrava-se o juízo final, em perpétuo desgosto pelos vermes que se alimentariam daquele pobre e proletário cadáver em misteriosos dias. Todavia, ainda assim, também procurava-se o belo rosto deste homem, um criminoso robusto. 

Aos militares fazia-se jus à procura: hediondas escolhas, crimes em sua maioria, contra a honra e a glória eterna que seu país tanto garantia à população. Mas ele, gargalhando em sua cadeira, afirmava, deleitando-se com seu charuto, que nem mesmo Deus ousaria tocar-lhe a pele, a alma e o corpo. De ressalva, os militares colocaram doletas no meio, e todos, de final medonho, tiveram seus caixões fechados em pouco tempo. 

"Não faço promessas sem a intenção de cumpri-las. Ousa, senhor, dizer que não sou homem de palavra?" Sua carranca arrepiou o homem na escuridão, a voz rouca trazendo-lhe à vida o gosto rústico do seu fim. 

Não havia uma alma viva, maluca, que desafiasse o trabalho dele. Sua autoridade e seu comprometimento rodaram todas as favelas e os búzios. Chegou aos ouvidos de presidentes e reis, e de anarquistas, e de liberais; e, então, passou a ser perseguido por quem deseja sua morte. Ou seriam eles suicidas, os homens? Todos eles, reis de seus umbigos e comandantes de suas naves.

"Horácio, tolo" continuou o rapaz. "Tolo, tolo. Faça a escolha cuja sensatez não lhe tira o sono, então volte a me procurar."

"E onde posso fazê-lo? Já me bastaram meses a buscar para lhe encontrar aqui."

O jovem riu, desmerecendo o esforço alheio. As nuvens, esse algodão que vai e vem constantemente, molhado de acetona, machucando a pele quando chove, foram embora. Combina com o resto do dia, com as ruas molhadas e as caixas de papelão fedorentas empilhadas ao lado do latão de lixo.

"Não sou quem você pode encontrar, tampouco marcar e lembrar. Se o fez uma vez, hoje, neste dia de cinzas, será abençoado novamente, quando chegar o momento certo."

"E estarei vivo até este dia? Não sou aquele de quem tanto ri, à beira de uma xícara quase vazia, e com uma arma carregada com única bala?"

O homem de sobretudo viu-se risonho, no reflexo do vidro podre da loja de sapatos do outro da avenida. O único poste com energia o fazia parecer místico, uma miragem criada por mentes abaladas e desesperadas por uma salvação, por um caminho de tijolos amarelos. Tendo seu mais profundo desejo sendo este: a paz; a lenda daqueles que, ao finalmente conseguirem convencer o outro a realizá-lo, morrem em paz. 

"Para que tanta garantia? Os meus serviços são nobres, fidedignos! Jamais me apeteceria acabar com eles antes mesmo de começa-os." O charuto chega ao fim, em compasso com o final da frase. A bituca fica por ali, pela calçada quebrada, em meio a rachaduras que as crianças evitam pisar. Que todos, até os céticos, evitam. 

Horácio, em seu estado nervoso, suando as mãos, a nuca e umedecendo os lábios rachados e secos, deu-lhe as costas. A decisão enfureceu o outro homem que, com sua mais firme voz, postulou:

"Então é essa sua decisão final?" As mãos indo de encontro aos bolsos quentes. "Não estamos mais em 1700, Horácio, somos vistos com mais frequência. É sua última chance de ver sua família também." 

Ele tem razão. Os anos, firmes como furos em pedras do mar, passaram, e eles, seres de cunho duvidoso, estão sendo caçados e mortos. Por outros, por humanos, por outras espécies, e por eles mesmos, seus companheiros. 

"Posso resolver de outra maneira. Você não é o único grande feiticeiro na Europa. Não é a França mais o único terreno mágico." 

Ele gargalhou, alto e fundo, como um remédio para o que tinha acabado de ressoar pela rua. Não há muitos deles, nem ninguém como ele. Não há quem faça tão bem quanto ele, é um trabalho minucioso, de séculos. Uma especificidade e exclusividade.

"Não me interessa a quem pedirá ajuda, Horácio. Eu posso desfazer isso em um segundo, e acabar com a única felicidade que lhe restou, aqueles fantasmas imundos."

"Não coloque minha família nessa sua doutrina suja!"

Horácio avançou em sua direção, determinado, mas foi parado pelo jovem. Seus séculos de vida possibilitaram a arte de ver situações previsíveis; um dom ou castigo, quaisquer que seja. Ele é um grande feiticeiro, um mago supremo. Kim Taehyung."

Sinto pena de você."


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⏰ Last updated: May 29, 2022 ⏰

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Memórias de um alguém entre cadáveresWhere stories live. Discover now