01. no compasso da velocidade

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VALE DO CAFÉ, 1910


Encurvada sobre a motocicleta verde-oliva, usando o velho capacete de couro e os óculos de proteção de Edmundo, Cecília fez outra curva na estrada empoeirada. Mais atrás, Henrique acelerou até emparelhar com ela. O capacete dele estava torto.

— Corrida até o galpão, irmãzinha? — gritou ele.

— Quem chegar por último deve ao outro uma caixa de bombons — respondeu ela, elevando a voz para ser ouvida acima do ronco da motocicleta. — De preferência, os franceses!

Antes de Henrique responder, Cecília acelerou e foi acompanhada por uma nuvem de poeira. No ápice da primavera, as estradas entre as fazendas de café da região ficavam áridas, tão poeirentas quanto as páginas dos livros que Deise tanto amava ler na varanda da casa.

Cecília apertou o guidom da motocicleta. As luvas de couro de Edmundo sobravam em suas mãos pequenas demais, mas nada disso importava. Livre, voava pelo caminho sinuoso tendo como companhia o ronco selvagem da motocicleta, que avançava pela estrada como uma flecha bem disparada. Aquilo sim, pensou, por um momento tão breve quanto a velocidade, era viver.

— Até mais, Segundo Lugar! — Henrique a ultrapassou. E como se não bastasse, completou: — Não se esqueça dos meus bombons!

Cecília bufou, curvando-se sobre a motocicleta do noivo com ânimo renovado. O que ganha a maioria das corridas é a concentração do piloto, Ceci. A voz de Edmundo, clara feito caligrafia de professora, tomou os pensamentos dela. Cecília apertou o guidom e se aproximou do irmão. Tão logo fez a curva e avistou o pequeno galpão de madeira das motocicletas, encurvou-se ainda mais sobre a geringonça. Vamos lá, pensou ela, o suor escorrendo por dentro do capacete de couro. Ganhar, agora, era questão de honra.

Cecília acelerou a motocicleta até o motor rugir. Mesmo diante dos suplícios da máquina, ultrapassou o irmão e deixou escapar um grito de vitória. Já diante do galpão, parada sobre a motocicleta, tremia pela excitação do momento. Cecília tirou o capacete, ajeitou os cabelos castanhos e riu para o irmão, que tinha a cara fechada.

— Você roubou — disse ele, amuado. Cecília enfiou o capacete e os óculos no guidom da moto. — Isso não é engraçado.

— Não seja um perdedor tão ruim, meu irmão. — Ainda montada na motocicleta, ela riu. — Eu ganhei porque fui melhor. E agora é hora de voltar para casa.

— Não sem antes você colocar suas roupas. — Ele indicou com um gesto de cabeça divertido os trajes dela. — Mamãe não gostaria de ver uma dama como você usando calças compridas.

Cecília olhou para baixo, para as calças justas e cor de cáqui encomendadas num alfaiate obscuro de São Paulo, e riu. Dona Salomé jamais a perdoaria se a visse vestida daquela maneira.

— E como ser deserdada ainda não está em meus planos, vou me trocar. — Ela riu e se ergueu da motocicleta. — Mas antes é preciso esconder as provas do crime.

A mãe dos dois sequer imaginava que o filho mais velho comprara uma motocicleta de segunda mão em São Paulo, de um imigrante italiano desesperado para voltar ao país natal. Se soubesse, Dona Salomé Sampaio cairia de cama. Já era emoção suficiente para seus nervos frágeis ter um genro aficionado por motocicletas e velocidade. Se Henrique fosse visto pelas fazendas da região montado numa daquelas monstruosidades — palavras dela — seria o fim. E se ao menos desconfiasse de que o noivo de Cecília a ensinara a pilotar, somente a imaginação seria capaz de pintar aquele quadro.

As Flores do Duque | AMOSTRAWhere stories live. Discover now