Falsa Miragem

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"Por que não chorou ontem?", perguntou entreabrindo os olhos. O brilho do Sol refletido nas dunas a ofuscava. Os passos sobre a areia eram pesados.

"Filha, hoje posso fingir...", respondeu Simone, "com perfeição, com autenticidade". As pegadas traçavam uma trilha sobre a areia que chegava até as tendas, pequenos triângulos brancos nas dunas amarelas.

"Hoje é o nosso último dia. Por que você resiste a se entregar?" Entreolharam-se em silêncio. Sami retirou o celular da bolsa e, após franzir a testa, abriu o Spotify. "Escute isto. Fiz outra lista ontem à noite", o solo de um sax, acompanhado por um piano. Simone se aproximou para ouvir melhor. "Naima" de John Coltrane. "O que acha? Lembrei-me dos discos na garagem. Esqueceu deles?", acrescentou Sami, "Não os escuta mais?"

Simone deu de ombros. "Depois que você nasceu decidi guarda-los na garagem... aumente um pouco mais o volume, por favor", o vento soprava forte. "Honestamente... não acho que esta música vá funcionar... você não gostou das gravações de ontem? Da Pastoral?"

Passava do meio-dia, mas embora o sol já não estivesse a pino, seus raios ainda ardiam na pele. "Não recuse logo de cara. Ele é um gênio", interrompeu a música. "E já não temos mais tempo, vamos embora amanhã. Quanto à Beethoven, vou rever o vídeo com o Pinky. Mas sua expressão me pareceu artificial."

"Eu estava cansada", tocou o braço da filha, "mas, Sami, eu continuo a acreditar neste projeto. O deserto. As músicas. Gosto de ver meu rosto no vídeo, afinal eu sou a mãe da artista", levou as mãos atrás da cabeça e prendeu o coque. "Sim, eu gosto da idéia", continuou, "mas adianta muito continuarmos? Quantas músicas já gravamos? Imagino que umas dez."

Sami irritou-se ao ver na boca de sua mãe aquela mesma expressão antiga, lábios retos, secos. Lembrou-se dos azulejos da velha casa, o rejunte seco, virando pó. "Precisamos do clímax, mãe".

"Então vamos ouvir um bolero. Algo Kitsch. Eles gostam destas coisas", Sami respondeu com um meio-sorriso. Na sala de azulejos da casa antiga, havia um rádio antigo, de válvulas, cujo corpo era de madeira.

Voltaram-se em direção às tendas. A areia quente envolvia seus passos, as sombras se projetavam longas à sua frente. Beberam água de uma pequena garrafa que Simone carregava na mochila. À frente observaram um conjunto de pequenos cactos verdes, retorcidos, que se inclinavam contra o vento seco.

Lembrou-se de quando, meses antes, deitada em sua cama, empolgou-se com a ideia de uma instalação no deserto. A arte havia abandonado os museus. Ganhava vida nas paredes das ruas, nos esqueletos das indústrias abandonadas; onde quer que o artista quisesse criar, vencendo obstáculos. E destruir, se necessário. "Em 1995, Ai Weiwei despedaçou um vaso da dinastia Han de mais de dois mil anos. O que há de belo em exterminar uma antiguidade? O mundo se chocou. Seria uma cópia? Não faria diferença. Era uma rebelião simbólica contra o próprio pai, famoso poeta Chinês. Me sinto inspirada. Nós devemos transgredir!", e batia a mão na perna com energia. Seus colegas trocavam olhares, e, mais tarde, entre drinques, discutiram se a próxima vernissage de Sami seria "promovida" à mostras gratuitas nos downtowns.

Ladearam pequenas tribos de cactos - bolas cobertas por espinhos longos, outros com braços vestigiais que pareciam querer alcançar o sol - comoveram Sami. Sentiu um leve toque sobre o ombro, "Olhe", Simone apontou para o horizonte: asas largas flutuavam sobre as dunas, sem esforço. "Um falcão", Simone sussurrou - nisso, o pássaro fechou as asas e mergulhou para o chão, desaparecendo atrás de uma duna.

"Majestoso", Simone falou para si mesma, e, ao virar-se para sua filha, surpreendeu-se ao ver os olhos de Sami fixos no horizonte, respiração presa, olhando para o nada, perdida em si mesmo, como quando era criança. "Sami...?", seus dedos estavam contraídos, "Sami?"

Falsa MiragemWhere stories live. Discover now