- Você passou algo no cabelo? - Eu via minha irmã usar secador e uma prancha quente no cabelo a vida toda, mas o cabelo de Jhenifer estava extremamente liso, parecendo ainda mais comprido que o normal; se cacheado ia até o meio das costas, liso chegava na bunda. Os olhos azuis da ruiva se encheram de lágrimas. - Jen?

- Ela alisou meu cabelo... - Jhenifer soluçou me fazendo dar um passo a frente. - Ela fez a mulher do salão alisar meu cabelo... Pra sempre.

Eu atravessei o restante do espaço que nos separava e a abracei apertado. Enterrando meu nariz em seus cabelos, pude sentir o forte cheiro químico que queimou minhas narinas.

- Sua mãe? - Perguntei mesmo já sabendo a resposta. Caralho, aquilo era muito errado. Como uma mãe provocava àquela espécie de dor a própria filha? Qualquer um podia ver o quanto Jhenifer amava e cuidava de seus cachos. Jhenifer assentiu com um soluço. - Não tem como... Tirar?

- Não. - A voz dela soou tão baixa e magoada que meu coração se apertou.

- Eu sei que você amava seu cabelo, mas você também está linda com eles lisos assim, minha princesa. - Era uma coisa idiota de se dizer, mas eu não sabia o que mais falar. - Você é linda. Tão, tão linda. Já que é permanente, você pode tentar se acostumar até pensarmos em outra coisa...

- Mas... Eu... Queria... Cacheado... - Jhenifer chorou as palavras entrecortadas, soluços duros fazendo seu corpo esguio tremer. Eu a abracei com mais força, passando meus braços sob seu pescoço e a base de sua cintura.

- Eu sei, meu amor. - Céus. Como eu sabia. No dia em que eu disse a ela que seu cabelo era lindo, logo depois de sua mãe dizer que era bagunçado, os olhos dela brilharam. Ela amava aquele cabelo, e eu também amava. Era até estranho vê-la com ele todo liso e sem volume, mas não me importava. O cabelo dela era o de menos para mim, o que importava mesmo era o quanto aquilo ia balançar seu estado emocional já tão sensível. - Podemos procurar na internet coisas para reverter isso, ou sei lá, ir num salão e pedir ajuda a alguém.

- Eu tô tão triste... - Jhenifer disse baixinho. - Eu não queria isso, eu me sinto violada, e eu nem sei se isso é possível e...

- É claro que você se sente assim. Te obrigaram a passar por um procedimento que você não queria. Sua mãe violou seu espaço, seu corpo, sua autonomia.

- Lorenzo... - Devon murmurou abrindo a porta e estagnou no umbral quando me viu abraçado a Jhenifer. A ruiva tentou se afastar, mas firmei meu aperto. Correr como se estivessemos fazendo algo de errado era ainda mais suspeito.

- Entra e fecha a porta. - Não era um pedido, mas apesar de Devon nunca seguir ordens, ele o fez. - Você não sabe o que aconteceu.

- Realmente, não sei. - Devon disse franzindo os lábios. Jhenifer tentou se afastar de novo e dessa vez deixei. Quando Devon viu o rosto choroso da irmã gêmea, sua expressão mudou de desconfiança para dor. - Jhenifer?

- Mamãe alisou meu cabelo contra minha vontade. - A ruiva disse em voz baixa.

- O que? Alisou? - Devon se aproximou da irmã e passou os dedos por seus cabelos. - É só lavar, não?

Aquele pensamento havia passado por minha cabeça.

- Não. Ela usou produtos químicos. Ela alisou para sempre meus cachos.

Devon ficou em silêncio olhou para os próprios pés. Eu não entendi a reação. Ele não deveria estar com raiva? Xingar a mãe e tudo mais, como faria com seu pai?

- Por favor, pelo menos hoje não tente defender a vaca da nossa mãe. - Jhenifer sibilou. - Eu nunca defendo papai quando ele fode com você, então não faça isso comigo, Devon.

Devon continuou em silêncio, braços cruzados e expressão austera. Se ele defendesse Carina, eu partiria para cima dele sem pensar duas vezes.

- Foda-se essa merda de ano novo em família. Vamos sair nós três e comemorar sozinhos. - Devon disse por fim. - Me encontrem na garagem.

Antes que eu pudesse formular uma resposta ou perguntar a ele como ele convenceria seu pai disso, Devon saiu do quarto em passos duros.

- Ok...? - Jhenifer meio que murmurou, meio que perguntou. Dei de ombros, me encaminhando até a porta do quarto.

- Vamos descer pela escada que dá no salão de jogos, provavelmente estão todos na sala agora.

Quando caminhamos pelo corredor e tomamos a escada adjacente, segurei a mão de Jhenifer para ajudá-la a descer os degraus, mesmo que ela estivesse usando saltos baixos. Jhenifer sorriu agradecida quando ouvi o primeiro grito.

- Nós vamos passar o ano novo fora. Não há a mínima chance de ficarmos aqui. Você alisou o cabelo da Jhenifer contra a vontade dela e agora quer que a gente sente numa mesa e finja sermos uma família feliz? Foda-se essa merda toda, essa hipocrisia do caralho. - Devon gritou aos quatro cantos. Meu lado curioso, ou melhor dizendo, meu lado fofoqueiro, queria atravessar a sala de jogos e correr até a sala de estar para ouvir tudo em primeira mão, mas meu lado responsável venceu e eu apenas puxei Jhenifer para longe dali.

- Devon está se metendo em confusão por mim. - Jhenifer parecia abismada com aquela ideia. Como se fosse inconcebível que Devon estivesse discutindo com sua mãe por causa dela. Será que isso não acontecia com frequência?

Eu nunca precisei discutir com meus pais por causa de Anna. Eles sempre foram educadores positivos, comigo e com ela. Pelo visto, eles eram apenas um casal de merda, mas pais incríveis. Esse crédito eu tinha que dar a eles. Assim que chegamos na garagem e os diversos carros dos meus tios ficaram a vista, eu revirei os olhos. Nunca havia entendido o apelo por carros de luxo ou os colecionáveis de tia Carina. Eu tinha sim um carro de luxo, uma fodida Ferrari, mas eu não a escolhi. Meu pai me deu de aniversário e a primeira coisa que pensei foi: quem dá um carro quinhentos mil dólares para um adolescente de dezesseis anos que acabou de tirar a carteira de motorista? Caralho, eu estava pensando igualzinho a Lila.

Quando Devon se juntou a nós, ofegante e visivelmente irritado, Jhenifer disse:

- Nós vamos na F40.

Eu olhei em direção a Ferrari vermelha brilhante, com a pintura reluzente, parecendo que havia acabado de sair da concessionária.

- Jhenifer... - Devon começou, mas mordeu os lábios. - Você quer mesmo fazer isso?

- Isso o que? - Perguntei confusamente. Jhenifer sorriu, um sorriso frio que prometia tragédia.

- Dirigir a Ferrari colecionável da mamãe no dia mais movimentado do ano. - A ruiva disse, o sorriso crescendo ainda mais.

- O papai deu esse carro a ela antes da gente nascer... - Devon argumentou franzindo as sobrancelhas.

- E o foda-se? - A ruiva murmurou correndo pela garagem, diretamente até a F40. Devon suspirou, mas eu já estava sorrindo.

Era infantil e ridículo, mas eu esperava bater aquele carro. Carina amava seus colecionáveis, principalmente porque a maioria havia sido presentes de Thomaz, e se ela achava que a dor da Jhenifer em alisar o cabelo era boba, talvez ela devesse perder algo que amava também. Caminhei praticamente saltitando em direção ao carro e assumi o banco do passageiro antes mesmo de pensar nisso. Devon não reclamou em sentar atrás. A ruiva tirou a chave do porta luvas e a girou entre os dedos com um sorriso animado. Quando o motor rugiu, Jhenifer riu consigo mesma e afundou o pé no acelerador.

O portão mal estava completamente aberto quando passamos por ele há cem quilômetros por hora.

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