Prólogo (MAYA)

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A agitação noturna em Midtown Manhattan é o meu estímulo diário, desde que eu comecei a fazer parte da equipe responsável por preparar os coquetéis especiais do bar Chilli en Fuego. Modéstia à parte, eu executo a minha função de barmaid¹ com excelência, e inclusive, eu até desenvolvi alguns drinks autorais, servidos na casa noturna. Os clientes costumam elogiar a elegância e a precisão dos meus movimentos acrobáticos durante o preparo dos coquetéis.

O expediente nos finais de semana sempre se estende um pouco mais, e como hoje é quinta-feira, o estabelecimento funcionará até às 2hs da manhã. O salário que eu recebo aqui é pouco, se comparado a um restaurante ou clube de alto luxo, e nem mesmo as gorjetas são suficientes para fazer $15 dólares por hora.

Os clientes de bares são conhecidos por serem menos generosos. Cerca de 30% das gorjetas recebidas são destinadas ao pagamento de impostos, e sequer consegui quitar ainda as dívidas de empréstimos estudantis. Tudo o que eu ganho garante apenas a manutenção das necessidades básicas, além do envio de dinheiro aos meus parentes, que vivem no Brasil.

A minha condição de imigrante indocumentada² não permite que eu consiga oportunidades de trabalho melhores, por isso, eu desempenho outras atividades para complementar a renda. Como eu sou beneficiária do DACA³ desde a adolescência, tenho o direito legal de trabalhar e estudar nos Estados Unidos. No entanto, quando Trump assumiu a presidência, estabeleceu uma série de medidas, visando acabar com o programa, e tenho medo de não conseguir renovar o benefício, que vai expirar daqui a alguns meses.

Não posso perder o emprego em hipótese alguma.

Continuei a performar as técnicas de flair, — nome dado à técnica de malabarismo, utilizando garrafas, copos, e demais utensílios de bar, — sob os olhares atentos dos clientes. O Chilli en Fuego é um tipo de bar balada fundado por um bem-sucedido imigrante, que proporciona toda a experiência latina em Nova York, tais como bebidas, comidas típicas, muita música e decoração característica.

Percebi que Javier Navarro me observava entre um serviço e outro, com evidente admiração no semblante. Eu o considero como um irmão mais velho, mas oficialmente ele é o meu primo. Ele nasceu no México, tem trinta anos de idade, estatura alta, os olhos amendoados, cabelos bem curtos e lisos, além de possuir um corpo atlético. Sempre considerei Javier um homem belo e sedutor, que sempre mantém o cavanhaque bem aparado, com destaque para o bigode volumoso, emoldurando o rosto retangular, e queixo proeminente. Os pais dele também cruzaram a fronteira dos Estados Unidos de forma ilegal.

Eu me aproximei do balcão, esboçando o meu melhor sorriso para o cliente da vez.

— O que o senhor deseja beber? — perguntei, solícita.

— Sabe o que eu mais quero esta noite? — o sujeito devolveu com outra pergunta, ao que apenas balancei a cabeça, em negativa, lançando um olhar confuso para ele. — Provar do néctar entre as suas coxas, querida — complementou, com ar presunçoso.

Não sou obrigada a aceitar nenhum tipo de desrespeito, e por lei eu posso passar o atendimento para outro bartender. Aguardei Javier finalizar o preparo de uma bebida, com os braços cruzados na frente do peito, de forma protetora, fazendo o possível para controlar a onda de raiva e calor que incendiava o estômago.

— Vai me deixar esperando aqui por quanto tempo mais? — perguntou, impaciente.

Continuei ignorando o cliente, sem a menor cerimônia. Sempre fiquei incomodada com os olhares lascivos dos clientes, que insistem em achar que qualquer roupa é um convite para o assédio. O uniforme tradicional de bartender é composto por uma camisa social de algodão de manga longa, na cor branca e dobrada nos cotovelos, além de calça preta, colete curto de mesma cor, e calçados antiderrapantes. Ou seja, um traje masculino em essência, mas, ainda assim, as minhas curvas são sensuais demais para se fazer notar.

O meu pai costuma dizer que eu deveria colocar a minha exuberante beleza latina a meu favor, utilizando-a como fonte de renda extra. Se Pablo Navarro soubesse o que um de seus homens me causou, quando eu tinha apenas 11 anos, sequer teria coragem de propor algo dessa natureza.

O homem continuou resmungando, mas virei as costas e me aproximei de Javier para sussurrar-lhe ao ouvido.

— Você pode cobrir o meu atendimento, primo? O cliente começou a me importunar e não sou obrigada a atendê-lo.

Javier me acompanhou até a outra extremidade do balcão, e notei os músculos de sua mandíbula bem marcada se contraírem, tomado pela raiva contida. O sujeito observou a nossa aproximação, esboçando um sorriso presunçoso no dos cantos dos lábios. O meu coração disparou, de súbito, tomada por um mal pressentimento.

— Ele é o seu namorado, chica? — perguntou, encarando Javier atentamente. — Aposto que ele ainda não conseguiu comer o seu cuzinho — completou, se voltando para mim com um riso de escárnio.

A minha reação foi rápida, assim que ouvi a insinuação daquele homem. Javier deu um passo na direção dele, mas o segurei pelos braços com força, prevendo que as coisas saíssem do controle.

— Javier, não aceite a provocação dele, por favor! — eu quase gritei, apavorada. — Não podemos nos expor e muito menos nos dar ao luxo de perder o emprego — completei, baixando o tom de voz, o rosto bem próximo ao dele.

— Você ouviu bem o que este infeliz acabou de falar? — Javier indagou, franzindo a testa, indignado. — Solte o meu braço agora, Maya! Você não vai me impedir de dar uma lição nele.

— Se agredir o cliente, José vai chamar a polícia, e na sequência os policiais podem entrar em contato com as autoridades de imigração. Vai colocar tudo a perder por causa de uma ofensa?

Logo, eu notei que o chefe de bar passou a nos encarar à distância, com ar de censura, apontando na direção dos clientes, que estavam à espera de atendimento.

— Precisamos voltar ao serviço, Javier — comecei, em tom suplicante. — José está de olho na gente e... — não consegui completar a fala, porque o cliente assediador passou a proferir uma série de palavrões. A voz alta o bastante para chamar a atenção das pessoas no balcão.

— O presidente vai expulsar todos vocês, imigrantes mexicanos de merda! — o sujeito vociferou, destilando preconceito e xenofobia tal qual o nosso governante sempre faz.

Não faria a menor questão de informar que ele se enganou com relação à minha nacionalidade.

Lancei um olhar desesperado em torno, mas não vi os dois seguranças em parte alguma. Ambos devem estar do lado de fora do estabelecimento, cumprindo diligências.

De repente, Javier se desvencilhou do aperto em seu braço de modo brusco, e partiu para cima do cliente, ignorando por completo os meus protestos. Ele puxou o homem pela gola da camisa e começou a desferir uma série de socos no rosto dele. Horrorizada, eu me aproximei de ambos para tentar evitar uma confusão generalizada no bar, mas José e os garçons me detiveram a tempo. Eles passaram por mim bem rápido, e agarraram Javier pelos ombros, colocando um fim na briga.

Na sequência, o sujeito pegou alguns guardanapos de papel para estancar o sangue que escorria do nariz, e sacou o seu celular do bolso, possivelmente com o intuito de discar o número 911.

Daqui a poucos minutos, os policiais vão aparecer no estabelecimento para registrar a ocorrência e receio que o meu depoimento não seja suficiente para evitar que o meu primo seja detido.


¹ Nome dado às mulheres que trabalham produzindo e servindo coquetéis e drinks em bares, baladas e restaurantes.

² Termo atualmente empregado para se referir aos imigrantes em situação irregular no país, em substituição à "imigrante ilegal", considerado discriminatório e xenofóbico.

³ Sigla traduzida: Ação Adiada para Chegadas na Infância. É um programa que regulariza temporariamente a situação dos imigrantes em situação ilegal que chegaram aos EUA, acompanhados pelos pais, quando menores de idade, através da concessão de vistos de estadia e trabalho por dois anos, podendo ser renovados. 

UMA ESPOSA DE MENTIRA PARA O CEO (AMOSTRA)Where stories live. Discover now