Capítulo 3 - O Tigre

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As crianças deixaram o circo fazendo um tumulto estridente.Um ônibus deu a partida no estacionamento. Enquanto eledespertava ruidosamente, sibilando e soltando fumaça pelocano de descarga, Els se levantou e espreguiçou-se.- Pronto para o trabalho de verdade?Gemi, sentindo os músculos dos braços já doloridos.- Claro. Vamos lá.Ela começou a limpar a sujeira das cadeiras, que eu iaampurrando contra a parede. Depois me entregou umavassoura.- Agora temos que varrer a área toda, guardar tudo nas caixase então arrumá-las novamente. Você começa enquanto vouentregar o dinheiro ao Sr. Maurizio.- Sem problemas.Comecei a percorrer o lugar lentamente, empurrando avassoura à minha frente. Minha mente voltou aos númeroscircenses que eu vira. Gostara mais dos cães, mas havia algode irresistível no tigre. Meus pensamentos continuavamvoltando ao grande felino.Como será ele de perto? E por que cheira a sândalo? Eu nadasabia sobre tigres, exceto o que vira tarde da noite nos canaisde documentários e lera em exemplares antigos da NationalGeographic. Eu nunca havia me interessado por tigres, mas,por outro lado, também nunca trabalhara em um circo.Eu já tinha quase terminado de varrer quando Eleanor voltou.Ela se abaixou para me ajudar a recolher o gigantesco montede lixo antes de passarmos uma boa hora arrumando caixas earrastando-as de volta ao depósito.Com esse trabalho pronto, Els me disse que eu podia teruma ou duas horas de folga até a hora de me juntar à trupepara o jantar. Eu estava ansioso para ter algum tempo paramim, assim corri de volta à tenda.Troquei de roupa, encontrei um lugar apenas ligeiramentedesconfortável na cama e peguei meu diário. Enquantomordiscava a caneta, eu refletia sobre as pessoas interessantesque havia conhecido ali. Estava claro que o pessoal do circo seconsiderava uma família. Várias vezes vi as pessoasoferecendo ajuda, mesmo que não fosse tarefa sua. Tambémescrevi um pouco sobre o tigre. O felino realmente chamouminha atenção. Talvez eu devesse trabalhar com animais eestudá-los na faculdade, pensei. Então me lembrei de minhaextrema aversão a biologia e soube que eu nunca me dariabem naquela área.Estava quase na hora do jantar. O cheiro delicioso vindo doprédio maior fez minha boca se encher de água.Nada parecido com os biscoitos vegans de Sarah, pensei. Naverdade, lembra a comida da minha avó.Lá dentro, Els arrumava as cadeiras em torno de oito mesasdobráveis compridas. Uma das mesas estava posta com comidaitaliana. O aspecto era fantástico. Ofereci ajuda, mas Els medispensou.- Você trabalhou duro hoje, Louis. Relaxe. Eu faço isso -disse el.Danielle acenou, me chamando.- Venha se sentar comigo. Só podemos começar a comerdepois que o Sr. Maurizio fizer os anúncios da noite.E, no momento em que nos sentamos, o Sr. Maurizio entroudramaticamente no recinto.- Favolosa performance, de todos vocês! E um trabalhoeccellente de nosso mais novo vendedor, hein? Esta noite éuma celebração! Encham os pratos, mia famiglia!Dei uma risadinha. Hum. Ele representa o papel o tempotodo, não só durante o espetáculo.Virei-me para Dani.- Acho que isso quer dizer que fizemos um bom trabalho, nãoé?- É, sim. Vamos comer! - respondeu ela.Entrei na fila com Danielle, peguei meu prato de papel e oenchi com salada verde italiana, uma boa colherada de massaem formato de conchas recheadas com espinafre e queijocobertas com molho de tomate, frango à parmegiana e, semter lugar suficiente no prato, enfiei um pão quente na boca,peguei uma garrafa de água e me sentei. Não pude deixar denotar a grande cheesecake de chocolate para a sobremesa, masnão consegui nem terminar a comida que tinha no prato.Depois do jantar, fui até um canto mais silencioso do prédio eliguei para dar notícias a Sarah e Mike. Quando desliguei,aproximei-me de Els, que guardava as sobras na geladeira.- Não vi seu pai no jantar. Ele não come?- Levei um prato para ele. Estava ocupado com o tigre.- Há quanto tempo seu pai trabalha com aquele tigre? -perguntei, curioso.- Segundo a descrição do emprego, devo ajudá-lo com isso.Els empurrou para o lado uma garrafa meio vazia de suco delaranja, enfiou uma caixa de comida para viagem ao lado delae fechou a geladeira.- Há uns cinco anos, mais ou menos. O Sr. Maurizio comprouo tigre de outro circo, que o havia comprado de outro circoantes. Ninguém conhece a história completa dele. Papai dizque o tigre faz só os truques básicos e se recusa a aprenderqualquer coisa nova, mas o lado bom é que ele nunca deunenhum problema. É uma fera tranquila, quase dócil, tantoquanto os tigres podem ser.- Então, o que eu tenho que fazer? Vou mesmo dar comida aele?- Não se preocupe. Não é assim tão difícil, desde que vocêevite as presas - zombou Eleanor. - Estou brincando. Você só vailevar a comida do tigre de um prédio ao outro. Converse commeu pai amanhã. Ele dará todas as informações de queprecisa.- Obrigada, Els!Ainda restava uma hora de luz do dia lá fora, mas eu teria quelevantar cedo outra vez. Depois de tomar um banho, escovaros dentes, vestir meu pijama de flanela quentinho e calçar oschinelos, corri para minha tenda e me aconcheguei sob acolcha da minha avó. Ler um capítulo do livro que eutrouxera me deixou sonolento e logo mergulhei em um sonoprofundo.Na manhã seguinte, após o café, corri até o canil e encontrei opai de Els brincando com os cães. Parecia uma versão adultade Eleanor, com os mesmos cabelos e olhos castanhos na versão masculina. Ele sevoltou para mim quando me aproximei e disse:- Olá. Você é o Louis, certo? Será meu assistente hoje.- Sim, senhor.Ele apertou minha mão com simpatia e sorriu.- Pode me chamar de Andrew ou Sr. Davis, se preferir algomais formal.A primeira coisa que precisamos fazer é levar estascriaturinhas cheias de energia para dar uma volta.- Parece bastante fácil.Ele riu.- Veremos.O Sr. Davis me deu guias para prender nas coleiras de cincocães. Os animais eram de uma interessante variedade de raças.Tinha um beagle, um mestiço de galgo, um buldogue, umdinamarquês e um poodlezinho preto. Eles saltitavam otempo todo, enroscando as guias uns nos outros - e em mim.O Sr. Davis se abaixou para me ajudar e então partimos.O dia estava lindo. Os cães pareciam muito felizes, saltandode um lado para outro e me puxando em todas as direções,exceto naquela que eu queria seguir.Enquanto eu desvencilhava um deles de uma árvore, indagueiao Sr. Davis:- Posso fazer algumas perguntas sobre o seu tigre?- Claro.- Els disse que vocês não sabem muito sobre a história dele.Como Haz veio parar no circo?O pai de Els esfregou o queixo coberto pela barba espetada edisse:- O Sr. Maurizio comprou Hazza de outro circo pequeno,querendo dar uma renovada no espetáculo. Pensou que, comoeu trabalhava bem com outros animais, faria o mesmo com otigre. Fomos muito ingênuos. Em geral é preciso muitotreinamento para trabalhar com grandes felinos. O Sr.Maurizio insistiu que eu tentasse e, felizmente, nosso tigre ébastante tranquilo.- Que sorte, hein?- Muita sorte. Eu era extremamente despreparado paraassumir um animal daquele tamanho, por isso viajei com ooutro circo por um tempo. O domador deles me ensinou alidar com o tigre e eu aprendi a cuidar do animal. Acho quenão teria sido capaz de lidar com qualquer outro dos felinosque eles estavam vendendo.- Imagino.- Até tentaram fazer com que eu me interessasse por um dostigres siberianos, mais agressivo, mas logo percebi que ele nãoera para nós. Então negociei o tigre branco. Seutemperamento era mais estável e ele demonstrava gostar detrabalhar comigo. Para ser sincero, nosso tigre pareceentediado a maior parte do tempo.Ponderei essa informação enquanto percorríamos a trilha emsilêncio. Desembaraçando os cães de outra árvore, perguntei:- Os tigres brancos vêm da Índia? Pensei que viessem daSibéria.O Sr. Davis sorriu.- Muita gente acha que eles vêm da Rússia porque a pelagembranca se mistura com a neve, mas os tigres siberianos sãomaiores e alaranjados. O nosso é uma variante branca dotigre-de-bengala.Ele me olhou, pensativo, por um momento e entãoperguntou:- Quer me ajudar com o tigre hoje? Não precisa ter medo. Asjaulas têm trincos de segurança e eu a supervisionarei o tempotodo.Sorri, lembrando do doce aroma de jasmim no fim daapresentação do tigre. Um dos cães correu em volta dasminhas pernas, me enroscando com a guia e quebrando odevaneio por um momento.- Gostaria muito. Obrigado! - agradeci.Depois de terminar a caminhada, pusemos os cães de volta nocanil e demos comida a eles.O Sr. Davis encheu o bebedouro dos cães com água de umamangueira verde. Então olhou por sobre o ombro e disse:- Sabe, os tigres podem ser completamente extintos em 10anos. A Índia já aprovou diversas leis proibindo que sejammortos. Os caçadores e os aldeões são os principaisenvolvidos. Os tigres em geral evitam os homens, mas sãoresponsáveis por muitas mortes na Índia todos os anos e aspessoas às vezes querem fazer justiça com as próprias mãos.Nesse momento o Sr. Davis acenou para que eu o seguisse.Demos a volta no prédio, chegando a um amplo galpãopintado de branco com remates azuis. Ele abriu as portaslargas para que entrássemos.O sol forte invadia e aquecia o lugar, iluminando as partículasde poeira que subiam à medida que o Sr. Davis e eupassávamos. Fiquei surpreso com a quantidade de luz quehavia na construção de dois andares, apesar de ali só haverduas janelas altas. Vigas grossas erguiam-se bem acima denossas cabeças e cruzavam o teto em arco, e junto às paredesalinhavam-se baias vazias onde se viam fardos de fenoempilhados até o teto. Eu o segui enquanto ele se aproximavado lindo vagão para animais que fizera parte da apresentaçãodo dia anterior.Ele apanhou uma garrafa grande de vitaminas em formalíquida e disse:- Louis, quero que conheça Harry ou Haz, como preferir. Venha aqui. Vou lhemostrar uma coisa.Nós nos aproximamos da jaula. O tigre, que estiveracochilando, ergueu a cabeça e me olhou, curioso, com seusbrilhantes olhos verdes.Aqueles olhos eram hipnóticos. Eles se fixaram em mim,quase como se o tigre estivesse examinando a minha alma.Uma onda de solidão tomou conta de mim, mas me esforceipara trancá-la novamente no cantinho onde guardo emoçõesdesse tipo. Engoli em seco e desviei o olhar.O Sr. Davis puxou uma alavanca na lateral da jaula. Umpainel desceu, deslizando e isolando o lado da jaula ondeHarry estava. O Sr. Davis abriu a porta da jaula, encheu orecipiente de água do tigre, acrescentou cerca de um quartode xícara de vitaminas e então fechou e trancou a porta. Emseguida, acionou novamente a alavanca para erguer o painelno interior da jaula outra vez.- Tenho um pouco de trabalho burocrático para fazer. Queroque você busque o café da manhã do tigre - instruiu o Sr.Davis. - Volte ao edifício principal com este carrinho eprocure uma geladeira grande atrás das caixas. Tire um pacotede carne e coloque-a no carrinho. Transfira outro pacote decarne do freezer para a geladeira, para descongelar. Quandovoltar, ponha a comida de Haz na jaula exatamente comofiz com as vitaminas. Mas não se esqueça de fechar o painelde segurança primeiro. Consegue fazer isso?Agarrei a alça do carrinho.- Sem problemas - falei por sobre o ombro enquanto saía.Encontrei a carne rapidamente e poucos minutos depoisestava de volta.Espero que essa porta de segurança resista ou eu serei o caféda manhã, pensei ao puxar a alavanca, servir a carne crua emuma tigela grande e deslizá-la com cuidado para dentro dajaula. Eu mantinha um olho cauteloso no tigre, mas elesimplesmente ficou ali parado me olhando.- Sr. Davis, esse tigre é macho ou fêmea?Ouviu-se um barulho na jaula, um ronco profundo vindo dopeito do felino.Virei-me para olhar o tigre.- Por que você está rugindo para mim?O pai de Els riu.- Ah, você o ofendeu. Ele é muito sensível, sabia?Respondendo à sua pergunta, ele é macho.- Humm.Depois que o tigre comeu, o Sr. Davis sugeriu que euobservasse o animal praticar seu número. Fechamos as portasdo galpão e deslizamos as traves de madeira para trancá-las eimpedir que o tigre escapasse. Então subi a escada de mão atéo mezanino para assistir de cima. Se alguma coisa desseerrado, o Sr. Davis me instruíra a sair pela janela e chamar oSr. Maurizio.O pai de Els se aproximou da jaula, abriu a porta e chamouHazza. O tigre olhou para ele e então pôs a cabeça de voltasobre as patas, sonolento. O Sr. Davis tornou a chamá-lo.- Venha!A boca do tigre se abriu em um bocejo e suas mandíbulas seescancararam. Estremeci ao ver os dentes imensos. Ele selevantou e esticou as patas dianteiras e em seguida astraseiras, uma de cada vez. Ri ao comparar mentalmente essegrande predador com um gatinho dorminhoco. O tigre deumeia-volta e desceu pela rampa, saindo da jaula.Depois de ajeitar uma banqueta, o Sr. Davis estalou o chicote,instruindo Haz a saltar. Então pegou a argola e fez o tigrepular por ela durante vários minutos. O animal saltava de umlado para outro, passando com facilidade pelas váriasatividades. Seus movimentos não demonstravam o menoresforço. Eu podia ver seus músculos vigorosos movendo-sesob o pelo listrado preto e branco enquanto praticava o seunúmero.O Sr. Davis parecia um bom domador, mas por uma ou duasvezes percebi que o tigre podia ter levado a melhor sobre ele.Num dado momento, o rosto do Sr. Davis ficou muito pertodas garras estendidas do tigre e teria sido muito fácil para oanimal atingi-lo, mas, em vez disso, ele tirou a pata docaminho. Em outra ocasião, eu podia jurar que o Sr. Davishavia pisado em sua cauda, no entanto, o tigre apenas grunhiusuavemente e deslizou a cauda para o lado. Aquilo era muitoestranho e eu me vi ainda mais fascinado pelo belo animal,imaginando como seria tocá-lo.O galpão estava abafado e o Sr. Davis transpiravavisivelmente. Ele incitou o tigre a voltar para a banqueta eentão dispôs mais três banquetas perto da primeira e o fezsaltar de uma para outra. Ao terminar, levou o felino de voltapara a jaula, deu-lhe um petisco especial e fez sinal para queeu descesse.- Louis, é melhor você ir para o edifício principal e ajudarEleanor a se preparar para o espetáculo. Hoje teremos um grupoda terceira idade vindo de um centro comunitário.Desci a escada.- Tudo bem se eu trouxer meu diário até aqui para escrever devez em quando? Quero desenhar o tigre.- Tudo bem - disse ele. - Só não chegue muito perto.Saí correndo do galpão, acenei para ele e gritei:- Obrigado por me deixar assistir ao ensaio. Foi muitoemocionante!Cheguei correndo para ajudar Els no momento em que oprimeiro ônibus parava no estacionamento. Foi exatamente ooposto do dia anterior. Primeiro, a mulher responsável pelogrupo comprou todos os ingressos de uma vez só, o quetornou meu trabalho muito mais fácil, e então todos osespectadores se dirigiram devagar para dentro, acomodaram-se em seus lugares e logo caíram no sono.Como eles podem dormir em meio a todo esse barulho? Nointervalo, não havia muito a fazer. Metade dos espectadoresainda estava dormindo, e a outra metade aguardava na fila dobanheiro. Na verdade, ninguém comprou nada.Depois do espetáculo, Els e eu limpamos tudo num piscar deolhos, o que me deu algumas horas de folga. Corri de voltapara a cama, peguei meu diário, uma caneta, um lápis e minhacolcha e me dirigi ao galpão. Abri a pesada porta e acendi asluzes.Fui andando até a jaula do tigre e o encontrei descansandocom a cabeça apoiada nas patas. Dois fardos de fenoformavam uma boa cadeira com espaldar. Abri a colcha sobreo colo e peguei o diário. Depois de escrever alguns parágrafos,comecei a desenhar.Tivera aulas de arte no ensino médio e meus desenhos commodelo eram bastante razoáveis. Peguei o lápis e olhei para otigre. Ele me encarava - mas não como se quisesse medevorar. Era mais como... como se estivesse tentando medizer alguma coisa.- Oi. Está olhando o quê? - perguntei, sorrindo.Voltei ao desenho. Os olhos redondos do tigre eram bemseparados e de um verde intenso. Ele tinha cílios longos enegros, e um focinho rosado. Seu pelo era de um brancoleitoso, com riscas negras propagando-se a partir da testa e daface até a cauda. As orelhas curtas e peludas estavaminclinadas na minha direção e sua cabeça descansavapreguiçosamente nas patas. Enquanto me observava, suacauda se agitava de um lado para outro.Fiquei muito tempo tentando acertar o padrão das listras, poiso Sr. Davis me contara que não havia dois tigres com omesmo padrão. Disse que as listras eram tão distintivas quantoas impressões digitais humanas.Continuei a falar com ele enquanto desenhava.- Como é mesmo o seu nome? Ah, Harry. Bem, vou chamá-lo apenas de Haz. Espero que não se importe. Então, tudobem com você? Gostou do café da manhã? Sabe, para umacoisa que poderia me comer, você tem um rosto muito bonito.Depois de um silencioso intervalo no qual os únicos sons quese ouviam eram o do lápis arranhando o papel e o darespiração profunda e ritmada do grande animal, perguntei:- Você gosta de ser um tigre de circo? Não deve ser muitoemocionante ficar preso nessa jaula o tempo todo.Fiquei em silêncio por algum tempo e mordi o lábio enquantoescurecia as listras de seu rosto.- Gosta de poesia? Vou trazer meu livro de poemas e ler paravocê um dia. Acho que tem um sobre gatos que você vaiadorar.Ergui os olhos do desenho e fiquei surpresa ao ver que o tigrehavia se mexido. Ele estava sentado, a cabeça abaixada naminha direção, e me olhava fixamente. Comecei a me sentirum pouco nervoso. Um grande felino fitando você deformaintensa não pode ser um bom sinal.Nesse exato momento, o pai de Els entrou no galpão. Otigre deixou-se cair de lado, mas manteve o rosto voltado paramim, observando-me com aqueles olhos verdes intensos.- Oi, menino. Como vai?- Tudo certo. Ah, tenho uma pergunta. Ele não se sente só?Vocês já tentaram encontrar uma namorada para ele?Ele riu.- Não para este aí. Ele gosta de ficar sozinho. No outro circome contaram que tentaram cruzá-lo com uma fêmea brancado zoológico que estava no cio, mas ele não quis nada comela. Até parou de comer e acabaram tirando-o de lá. Acho queele prefere o celibato.- Bem, é melhor eu sair para ajudar a Els nos preparativosdo jantar.Fechei o diário e apanhei minhas coisas. Enquanto eu medirigia ao edifício principal, meus pensamentos se voltarampara o tigre. Pobrezinho. Completamente só, sem uma tigresaou filhotinhos. Impedido de caçar, preso aqui no cativeiro.Fiquei triste por ele.Depois do jantar, ajudei o pai de Els a levar os cães paraoutro passeio e em seguida me preparei para dormir. Pus asmãos sob a cabeça e fiquei olhando para o teto da tenda,pensando um pouco mais no tigre. Depois de me revirar deum lado para outro por uns 20 minutos, decidi ir até o galpãode novo. Mantive todas as luzes apagadas, exceto a que ficavaperto da jaula, e segui para meu fardo de feno com a colcha.Eu me sentia sentimental e por isso levara comigo umexemplar de Romeu e Julieta.- Oi, Haz. Quer que eu leia um pouco para você? Bem, nãoexistem tigres na história de Romeu e Julieta, mas, quandoRomeu subir em uma sacada, você pode se imaginar subindoem uma árvore, está bem? Espere um segundo. Vou criar aatmosfera adequada.Era noite de lua cheia, então apaguei a luz, já que o luarentrando pelas duas janelas altas iluminava o suficiente dogalpão para que eu pudesse ler.A cauda do tigre batia na base de madeira do vagão. Virei-mede lado, improvisei um travesseiro com o feno e comecei a lerem voz alta. Eu só conseguia distinguir-lhe o perfil e ver seusolhos brilhando na luz espectral. Comecei a me sentir cansadoe suspirei.- Ah, não se fazem mais homens como Romeu. Talvez umhomem assim nunca tenha existido. Exceto pela minhapresente companhia, é claro. Tenho certeza de que você é umtigre muito romântico. Shakespeare sabia mesmo escreversobre homens sonhadores, não é?Fechei os olhos para descansar um pouco e só acordei namanhã seguinte.Daquele dia em diante, eu passava todo o meu tempo livre nogalpão com Harry. Ele parecia gostar da minha presença esempre empinava as orelhas quando eu começava a ler paraele. Importunei o pai de Eleanor com perguntas e mais perguntassobre tigres até sentir que ele já estava me evitando. Mas sabiaque o Sr. Davis gostava do meu trabalho.Todo dia eu me levantava cedo para cuidar do tigre e dos cães,e todas as tardes eu me sentava perto da jaula de Haz paraescrever em meu diário. À noite, levava minha colcha e umlivro. Às vezes escolhia um poema e o lia em voz alta. Outrasvezes, eu apenas conversava com ele.Cerca de uma semana depois de eu começar a trabalhar nocirco, Els e eu estávamos assistindo ao espetáculo, como decostume, mas, quando chegou a hora do número de Haz, elepareceu diferente. Depois de percorrer o túnel e entrar najaula, correu em círculos e andou de um lado para outrodiversas vezes. Ficava olhando para a plateia, como seestivesse procurando alguma coisa.Por fim, imobilizou-se como uma estátua e olhou diretamentepara mim. Seus olhos de tigre encontraram os meus e eu nãoconsegui desviar o olhar. Ouvi o chicote estalar várias vezes,mas o tigre mantinha o olhar fixo em mim. Els me cutucoue o contato visual se desfez.- Que coisa mais estranha - disse Eleanor.- Qual é o problema? - perguntei. - O que está acontecendo?Por que ele está olhando para nós?Ele deu de ombros.- Não sei. Isso nunca aconteceu.Harry finalmente parou de nos olhar e deu início à sua rotina.Depois de terminado o espetáculo e de eu acabar a limpeza,fui visitar Haz, que andava de um lado para outro na jaula.Quando me viu, ele se sentou, acomodou-se e pousou acabeça sobre as patas. Fui até a jaula.- Oi, Haz. O que está havendo com você hoje? Estoupreocupado. Espero que não esteja ficando doente nem nada.Ele ficou descansando em silêncio, mas manteve os olhos emmim, seguindo meus movimentos. Aproximei-me lentamenteda jaula. Eu me sentia atraído pelo animal e não conseguiacontrolar uma compulsão muito forte e perigosa. Era umimpulso quase tangível. Talvez porque eu sentisse que éramosambos solitários ou talvez porque ele fosse uma criatura tãolinda. Não sei o motivo, mas eu queria - eu precisava - tocá-lo.Tinha noção do risco, mas não sentia medo. De alguma forma,eu sabia que ele não me machucaria, então ignorei os sinais dealerta que piscavam em minha mente. Meu coração começoua bater muito rápido. Dei mais um passo em direção à jaula efiquei ali parado por um instante, trêmula. Harry estavatotalmente imóvel. Continuava a me olhar, calmo, com seusolhos verdes.Estendi lentamente a mão na direção da jaula, esticando osdedos até sua pata. Toquei seu pelo branco e macio com aponta dos dedos. Ele soltou um profundo suspiro, mas não semexeu. Ganhando coragem, pus toda a mão sobre sua pata,acariciei-a e percorri uma das listras com o dedo. Sem omenor aviso, sua cabeça se moveu na direção da minha mão.Antes que eu pudesse tirá-la da jaula, ele a lambeu. Senticócegas.Retirei a mão rapidamente.- Haz! Você me assustou! Pensei que fosse arrancar meusdedos!Hesitante, estendi a mão, aproximando-a da jaula novamente,e sua língua rosada atravessou as grades para lambê-la.Deixei-o lamber algumas vezes e então fui até a pia e lavei asaliva de tigre.Voltando ao meu cantinho favorito, no fardo de feno, eudisse:- Obrigado por não me comer.Ele bufou levemente em resposta.- O que você gostaria de ler hoje? Que tal aquele poema degato que lhe prometi?Eu me sentei, abri o livro de poemas e encontrei a página.- Muito bem, aqui vai.

EU SOU O GATO

Leila Usher

No Egito, me veneravam.

Eu sou o Gato.Porque não me dobro à vontade do homem,Chamam-me mistério.Quando pego e brinco com um rato,Chamam-me cruel,No entanto, eles capturam animaisEm parques e zôos, para que possam admirá-los.Acham que todos os animais foram feitos para o seu prazer,Para serem seus escravos.E, enquanto eu mato apenas quando preciso,Eles matam por prazer, poder e ouro,E se consideram superiores!Por que eu deveria amá-los?Eu, o Gato, cujos ancestraisOrgulhosamente percorreram a selva,Nenhum deles domado pelo homem.Ah, por acaso eles sabemQue a mesma mão imortalQue lhes soprou a vida também soprou a minha?Mas somente eu sou livreEu sou O GATO.

Fechei o livro e olhei, pensativo, para o tigre. Eu o imaginei

altivo e nobre, correndo pela selva em uma caçada. Derepente tive muita, muita pena dele. Essa vida de seapresentar em um circo não é digna, mesmo que você tenhaum bom domador. Um tigre não é um cachorro ou um gato,que podem ser animais de estimação. Ele deveria estar emliberdade, na natureza.Levantei-me e caminhei até o tigre. Titubeante, estendi a mãopara a jaula a fim de acariciar sua pata outra vez.Imediatamente, sua língua veio lamber a minha mão. Aprincípio eu ri, depois fiquei sério. Devagar, levei a mão atésua face e alisei o pelo macio. Então, ganhando coragem,cocei atrás de sua orelha. Uma vibração profunda ressoou emsua garganta e eu me dei conta de que ele estava ronronando.Sorri e cocei um pouco mais sua orelha.- Gosta disso, não é?Tirei a mão da jaula, sempre lentamente, e fiquei observando-o por um minuto, refletindo sobre o que havia acontecido. Eletinha uma expressão de melancolia quase humana. Se os tigrestêm alma, e acredito que tenham, imagino que a dele sejatriste e solitária.Olhei dentro daqueles grandes olhos verdes e sussurrei:

- Queria que você fosse livre.



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⏰ Last updated: Nov 23, 2021 ⏰

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A MALDIÇÃO DO TIGRE - larry stylinson versionWhere stories live. Discover now