Capítulo 1

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A residência Fernández ficava situada na cidade espanhola, Calzada de Calatrava. A sua proximidade com uma paróquia local dava um aspecto entre a nostalgia e o sagrado para a casa, ou algo entre esses dois que é difícil de especificar. Tinha uma sala grande e espaçosa, que por muito tempo serviu de playground para o pequeno Manuel, criança que passou toda sua infância tranquila em um lar feliz com pais bem-casados. Três banheiros que supriam as necessidades básicas dos moradores sem que precisassem esperar a vez na porta, a cozinha perfeitamente grande, os quartos arejados e com vistas amistosas. 

Como todo recinto familiar, suas histórias e traumas não passam além das fundações e vigas. Elas permeiam em cada tijolo, cada centímetro do rejunte e se escondem em cada batente. E no meio dos arquivos daquela casa, estava lá. Entre a masmorra de memórias, o divórcio, pratos partindo, a nuvem de ódio que voava sobre os pés dos moradores da casa levando para o ar aquilo que um dia chamavam de união, ou era felicidade? As paredes claras, se acinzentam, tornando o clima tenso, estéril, triste.

Para todo bom incêndio existe um conteúdo inflamável. Para um incêndio perfeito, dois. No mesmo mês do divórcio, Manuel Fernández Ríos sufoca dentro de si mesmo. Não pode mais fingir, não aguenta mais interpretar aquele personagem. Vai se afogar. Eu quero amar. Quero ser amado. Não posso terminar como eles. Não aguento mais me esconder, não vou. Nunca mais.

Papá, madre. Soy gay — jorrou lágrimas como uma avalanche.

Vomitou as palavras na sala de estar, de forma que seu pai explodiu aos berros. Era inaceitável que o filho dele, o filho dele, seria… não ousaria pensar nessa palavra. Era impenetrável na mente dele a possibilidade. Meu filho era un maricón.

— Como isso é possível? Maldita seja! A culpa só pode ser sua Manoli, colocando esse sin trabas aos oito no ballet! — com a potência de um trator empurrava a esposa contra a parede cheia de retratos de família. O som do rachar dos vidros que protegiam as fotos protagonizou parte da agonia daquele momento.

As molduras com suas fotos caiam em câmera lenta, rachadas, manchadas, deixavam voar as lembranças pelo chão. A criança sorridente na fotografia observava os murros que eram desferidos pelo pai em sua versão crescida. O quebrador de nozes. O som produzido pelo contato do punho de Julian ao tocar o rosto de Manuel era oco. Seu rosto ia na mesma direção em que as mãos fechadas do pai apontavam. Era um homem parrudo, grisalho. Não era mais alto que Manuel, mas a força era maior. Bem maior.

Sua única reação foi deitar o rosto no chão gelado após o espancamento e sentir o sangue escorrer pelas das têmporas banhando seu rosto de cima para baixo, e mesclar com suas lágrimas transparentes no chão de madeira. Sentiu a dor afundar no seu crânio. Seu coração putrificar. Submergindo em sangue. Sua mãe acaricia seu cabelo, os cabelos castanhos do seu bebê.

Mi hijo, me perdoa por isso, eu tô aqui com você sempre. Manu, corazón, fala comigo. Meu bem… — chorava como nunca havia chorado em sua vida.

***

Manoli rodeava a sala vazia, com aquele ar maternal de ansiedade. Estava bagunçada e agora sem móveis. Tinha caixas espalhadas por toda a parte, e quatro malas arrumadas em um dos quartos. O furdunço era feito pelos funcionários de uma companhia local que se responsabilizava pela organização de mudanças. Eram eficientes no seu trabalho. A furadeira, a empilhadeira e o vozerio compunham a trilha sonora da casa vazia e sem cor. 

O dia era de sol, mas frio. O verão da Espanha era indeciso, e na dúvida usava os opostos ao mesmo tempo quando bem entendia. Os raios entravam sorrateiramente pelas vidraças dando um pouco de calor para o chão frio e abatido. Manoli aproveitava para aquecer um lado do seu rosto. Era bom e acolhedor.

The PickeringWhere stories live. Discover now