1 - O HOMEM NO CARRO

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Escutava o som das teclas soando como piano, uma música energizante para quem ama o que faz. Preencher uma complexa tabela de gastos era a minha forma de compor uma sinfonia.

Estava no meio da minha criação quando fui interrompida por uma batida suave no batente da porta. O delicioso som das teclas parou, pois eu não queria correr o risco de errar e encarei quem ousou me atrapalhar, tentando não demonstrar o quão incomodada estava.

— Precisa de algo, Mônica? — perguntei, com o melhor sorriso proativo que tinha.

Começamos juntas como estagiárias e mesmo em setores diferentes, acabamos virando amigas. Anos se passaram e continuávamos empregadas: eu era gerente administrativa, já Monica fazia algo no departamento pessoal, mas nunca conversávamos sobre isso porque, por algum motivo, ela odiava falar sobre trabalho.

— O expediente já acabou, pode desmanchar a carinha de "pronta para trabalhar". — reprendeu ela gentilmente, enrolando um cacho do cabelo castanho. Ela me convidaria. Droga!

— Vai ter um happy hour, quer ir?

— Hoje é quarta e vamos trabalhar amanhã, é irresponsável. — lembrei-a, desejando que ela fosse de uma vez, pois queria voltar à minha criação.

— Será apenas uma ou duas bebidas, nada exagerado. Te pago duas bebidas, vamos? — barganhou, tentado me convencer.

— Tenho trabalho a fazer... Quem sabe, na próxima... — recusei com uma expressão de pesar, fingindo que estava triste.

Monica suspirou pesadamente e deu um passo para dentro da minha sala, os olhos escuros me encarando com reprovação. Nos conhecíamos há tantos anos e já tinha ouvido aquilo tantas vezes, que poderia facilmente reclamar no seu lugar.

— "A próxima" nunca chega para você, Rebeca. A vida não está só na tela do computador, não é apenas trabalho. — ralhou, cruzando os braços. Às vezes, ela parecia demais com minha mãe.

— Já disse que vou na próxima. — insisti. Só assim para ter a minha paz de volta.

— Essa quinta? — Um sorriso vitorioso se abriu e faltou apenas ela dar pulinhos de alegria para completar a cena.

— Duas noites seguidas?

— Gosto da interação pós trabalho, beber e relaxar... Saberia disso se tivesse ido alguma vez. — Deu de ombros, ignorando minha indignação. — Amanhã estarei aqui, no mesmo horário, para te ensinar a se divertir.

— Estarei esperando.

"Com uma ótima desculpa para não ir", completei mentalmente, sorrindo.

Ela acenou para mim antes de virar as costas e se afastar. Devolvi o gesto, sentindo os dedos formigarem e desejando voltar para o teclado. Monica mal virou no corredor e o delicioso som retornou.

Alonguei minha coluna dolorida e rígida. Eu estava a tempo demais na mesma posição, mas um sorriso satisfeito brilhava no meu rosto, pois havia terminado e ficou perfeito, sem um erro sequer.

Meus ombros murcharam quando meu olhar recaiu sobre o relógio e vi a hora. Passei do permitido, de novo. Não era minha culpa: passaram-se apenas alguns minutos para mim. Quando se ama o que faz, o tempo passa rápido demais.

Desliguei velho o computador. Era irônico sermos uma empresa que trabalhava com softwares e aplicativos para celulares, mas usarmos máquinas que tinham quase uma década. Apaguei todas as luzes por onde passava, não precisava me preocupar em fechar nada, porque não demoraria para virem limpar o andar.

Bocejei pela primeira vez enquanto esperava o elevador. Depois que a euforia do trabalho feito se esvaía, o cansaço me dominava. No o trajeto até a garagem, já havia bocejado cinco vezes. Era o preço por tantas horas extras.

Pequenos Desejos (Degustação)Donde viven las historias. Descúbrelo ahora