Reptilia

83 5 0
                                    

— Oi, desculpa, te acordei? — Alice, a colega de quarto de Bia, sussurrou baixinho enquanto trocava de roupa.

— Relaxa, eu já estava acordada, praticamente não dormi — Ela respondeu enquanto se levantava após desistir de tentar dormir, mesmo vendo que ainda estava cedo.

— Tá muito ansiosa para o primeiro dia de aula?

— Acho que estou com medo de não entender nada — Bia riu.

— Eu não me preocuparia com isso, seu inglês é muito bom, de verdade. Vamos tomar café na cozinha.

— Se quiser pode ir na frente, vou tomar um banho e te encontro lá.

Há pouco mais de duas semanas Ana Beatriz tinha pisado pela primeira vez em Nova York para estudar na Pace University. Tirou esse tempo para resolver algumas burocracias pendentes e tentar se adaptar ao novo local, conhecer o transporte público e esse tipo de coisa que um adulto tem que saber, mas, agora, no seu primeiro dia de aula, ainda não se sentia nada adaptada.

Estava morando em uma residência estudantil que dividia com mais algumas universitárias, ela não sabia ao certo quantas, pois sempre tinha impressão de ter gente demais na casa. Até agora só tinha uma amiga, a mesma que era sua colega de quarto, Alice, uma menina de castanho claro, muito magra, baixa e de voz fina, quase parecia uma criança.

Saiu do banho, foi para o quarto e percebeu que estava sozinha, se olhou no espelho atentamente. Ela sabia que não tinha um corpo dentro do padrão de beleza, sempre tinha sido gorda, desde que se entendia por gente. Mas, não se enganem, leitores e leitoras, o fato de Bia não ser magra nunca foi motivo de muita insegurança para ela. Claro que, naquela fase difícil da pré-adolescência em que todos ficamos mais vulneráveis, talvez ela tenha pensado que deveria emagrecer. Mas, assim que amadureceu um pouco sua personalidade, percebeu que não via problema nenhum em ser gorda.

Bia vestiu uma blusa de tricot de manga comprida, branca, e uma calça mom jeans clara de cintura alta. Calçou as meias e o all star preto de cano médio, já surrado, prendeu o cabelo num rabo de cavalo bagunçado, e pensou que talvez fosse o momento de parar de alisar os fios e deixar os cachos naturais desabrocharem. Percebeu que a pele estava especialmente bonita naquele dia.

Quando chegou na cozinha viu Alice já sentada em uma bancada comendo ovos e tomando café. Como sempre, tinha muita gente andando de um lado para o outro em todos os cômodos da casa.

— Fiz um ovo para você também — Alice falou em voz alta, apontando para uma frigideira em cima do fogão.

— Nossa, valeu mesmo, não precisava — Bia respondeu quase gritando para ser ouvida, enquanto se dirigia para o outro lado da cozinha para pegar um prato, até que notou uma pequena televisão pendurada na parede onde estava passando o show de uma banda no festival Summer Sonic, em Tokyo. Ela achou a voz do vocalista familiar, e sentiu o sangue gelar.

Bia ficou parada olhando fixamente para a TV, sem acreditar: era ele mesmo, o cara que ela viu no aeroporto, Julian. Mas ele parecia tão diferente, naquele dia estava tão sério, apático, sonolento, e agora, cantando na TV, estava todo suado, gesticulava tanto, parecia tão vivo, agitado, quase furioso.

— Reptilia.

— O quê? — Respondeu Bia, quase assustada após ser despertada do transe.

— Essa música. É uma música do álbum novo do The Strokes — Alice respondeu.

— The Strokes?

— Você não conhece?

— Eles são famosos? — Bia perguntou enquanto voltava os olhos para a TV novamente. Percebeu que um dos guitarristas era o rapaz de cabelo cacheado que ela também viu no aeroporto.

— Eles estouraram com o primeiro disco, Is this it, é bem legal, você deveria ouvir. Acho que logo deve sair o álbum novo.

— Vou procurar saber — Bia respondeu sorrindo, tentando conter a euforia após tamanha descoberta.

Durante toda o dia, os pensamentos sobre Julian e a banda desapareceram, Bia estava ocupada tentando descobrir onde seriam suas aulas e tentando entender tudo que os professores falavam, não sem certa dificuldade, mas quando sua última aula do dia terminou, por volta das 14h, finalmente ela pôde respirar aliviada.

O campus não era tão perto da residência estudantil onde ela estava, cerca de 25 minutos de metrô, mas mesmo assim ela resolveu voltar caminhando para casa, era uma tarde agradável de setembro.

Ao passar na frente de uma loja de discos foi que se lembrou da grande descoberta que fizera mais cedo, porque viu na vitrine o tal Is this it que Alice tinha comentado. Contou o dinheiro que tinha na carteira e comprou o CD. Foi voando para casa.

— Ei, Alice, olha o que eu encontrei! — Mostrou o CD, animada, assim que viu a amiga no quarto.

— Então você gostou mesmo, hein? Vamos ouvir! — Respondeu Alice enquanto ligava o CD player na tomada.

— Eu conheci o Julian — Bia contou, já que não aguentava mais guardar isso para si.

— Julian Casablancas? Onde? — Alice perguntou, surpresa.

— No aeroporto, quando cheguei em Nova York. Casablancas? Tipo...o empresário das modelos, John Casablancas?

— O Julian é filho dele. E como foi que você conheceu ele? — Perguntou Alice, extremamente curiosa e já deduzindo os interesses da amiga.

Então, Bia contou toda a história do aeroporto, e de como Julian chamou sua atenção e ela não sabia direito explicar o porquê.

— Mês que vem tem um show deles no Madison Square Garden, a gente tem que ir, também quero ver o Julian pessoalmente. — Alice falou, rindo

— Ir num show? Pra quê? — Bia ficou um pouco nervosa com a ideia.

— Ah, pra assistir eles tocando ao vivo, né? E quem sabe, sei lá, depois pegar um autógrafo, a gente pede pra ele assinar o seu CD. — Alice estava, claramente, se divertindo com a ideia.

— Eu não sei, quer dizer...podemos ir, mas falar com ele? Eu não sei.

— Vamos fazer o seguinte: A gente vai no show, se você quiser tentar falar com ele depois, a gente vai, se você não quiser voltamos pra casa, ok?

Bia concordou, mas só de pensar na ideia de falar com ele sentiu dor de barriga. Ela escutou o CD todos os dias até o dia do show.



The Room Is On FireWhere stories live. Discover now