Essa certeza silenciosa consome a gente. Passamos a porra da vida inteira tentando ignorar a realidade desse fim irremediável. Tentando aliviar a angústia de não ser absolutamente nada. Não tem escapatória. Então, cada um de nós conquista sua forma de permanecer no mundo. Alguns escrevem livros. Outros, pintam quadros. Uns constroem prédios, criam roupas, inventam bugigangas, buscam a cura das doenças. A esmagadora maioria faz filhos.

V queria ter filhos. Lembro bem do dia em que me disse isso pois, de primeira, não acreditei. Dei risada, é claro. Logo ele, meu V de volúvel, que não conseguia parar quieto num lugar, que amava desbravar novos cenários, se transformar em mil figuras, destruindo e recriando tudo o que fazia dele único dia após dia. Uma obra de arte como V não podia ter o desejo mundano de procriar, era o que eu pensava. Mas ele me surpreendeu uma vez mais.

Nós estávamos na praia. V adorava a praia. Eu, por outro lado, nunca fui grande frequentador. Gosto de admirá-la ao longe, ouvir sua melodia, sentir sua presença úmida. O som das ondas, o cheiro de maresia e a linha reta do horizonte me trazem a sensação de que existe ainda o mundo belo, intocável, que está lá pra ser apreciado. É um quadro entre as molduras capengas da minha janela. Por isso comprei o ateliê com vista pra praia. Só que não ia muito lá na areia. Já disse que desprezo as gaivotas. Também não gosto do sol cruel no couro cabeludo, da areia raspando entre os dedos dos meus pés, de suar feito um porco, parado ali sem propósito. Gosto de ver a praia, mas detesto estar nela.

Só que V me arrastava pra lá sempre que podia. Ele estendia na areia um enorme tecido estampado, redondo com pontas de crochê, e se esticava todo, algum livro erguido sobre o rosto, fazendo sombra em seus olhos. Eu deitava a cabeça no colo dele, às vezes, e V embrenhava os dedos nos meus cabelos de forma distraída, enrolando mechas no indicador, sua atenção sugada pelo livro. Quando eu dizia alguma coisa, ele não dava atenção. Eventualmente parei de tentar falar com V enquanto ele lia, era um esforço inútil. Então ficava lá, deitado na pele dele, olhando o céu ou o mar ou as gaivotas ou senhoras de maiô e criancinhas com baldes d'água, as pernas roliças cobertas com toneladas de areia feito bife à milanesa.

Não era assim de todo ruim. Eu me recusava a ir no horário mais quente do dia e V posava até umas quatro da tarde, quase sempre. Depois se cansava, juntava seus pertences — o livro, o tecido estampado, seu obediente pintor, protetor solar — e carregava seu corpo bronzeado pela trilha até a praia. Me lembro que naquele dia específico, V estava usando enormes óculos de sol, de armação quadrada, com lentes cor de mel. Não eram escuras, as lentes, e deixava ver os olhos dele. Os óculos antiquados e o cabelo bagunçado, loiro, davam a V um aspecto anacrônico, como se ele tivesse saído dum anúncio de revista dos anos setenta.

"Os mortos não morrem quando deixam de viver, mas quando os votamos ao esquecimento".

Ele deixou o livro de lado e se inclinou sobre mim. Me analisou um instante, de cabeça baixa. Fazia muito isso, me olhar em silêncio, assim. Enfeitiçado, eu o olhei de volta. Estava cercado do azul celeste, a pele brilhando suor. Então, sorriu. Mordeu a minha bochecha de leve, tocou seu nariz no meu.

Quis saber no que diabos ele estava pensando, mas não perguntei.

— Seagull, alguém te ligou hoje de manhã?

— Pensei que estivesse dormindo.

— E estava. Achei que tinha sonhado com isso. Então não foi sonho?

— Era o meu irmão.

V franziu as sobrancelhas.

— Aconteceu alguma coisa?

— Ligou pra me contar o gênero do bebê. É uma menina.

— Uma menininha? — V abriu um sorriso completo, daquele disforme, excêntrico. Quando sorria assim, ganhava tonalidades vibrantes.

Vinte Minutos e V Where stories live. Discover now