–Como você pode afirmar que ela teve um passado ruim? –Kai intervira por mim, virando-se a irmã.

–Você já viu a Sombra? Ela um pacote de caos e trauma embrulhado em ironia e desconfiança dentro de uma menina bonita. Que tipo de pessoa com um passado feliz esconderia até mesmo o próprio nome? –Ophelia, como quem analisava o que acabara de escutar, balançara a cabeça em aceitação, quase podendo ouvir sua voz dizendo "sim, você tem um ponto". –Inclusive, por que está passando isso para nós? Você tem alguma viagem hoje?

Não posso nem pensar em contar Kai sobre o que eu realmente fazia: viagem = assassinato. Ele nunca me olharia do mesmo jeito e eu não podia ver desprezo nos olhos de um amigo tão antigo, quem, muitas vezes, chegava a considerar como irmão.

Eu sabia que o que eu era, com o que trabalhava, era contra todos os princípios de Kai. Ele acreditava na justiça de maneira inocentemente, no entanto, eu sei melhor e entendo que a justiça, muitas vezes, não é nada justa e acaba pendendo para o lado de quem tinha poder suficiente para influenciar outros –são nesses momentos que eu apareço e faço o meu trabalho.

Ophelia, por sua vez, lançara-me um olhar significativo, já que via através das cortinas entre a corte e a realidade e entendia o que eu fazia. Eu nunca precisei falar com ela sobre eu ser o assassino da Rainha já que, assim como Sombra, descobrira de maneira própria (mesmo que Ophelia tenha feito tal descoberta em mais tempo e de modo menos invasivo).

–Não tem problemas, faremos isso com Sombra. Não vai ser nenhum incômodo para nós dois. Gostamos dela. –Ophelia garantiu-me, seu tom passando a firmeza que exalava dela.

–Creio que você goste dele uma maneira um tanto diferente de mim, no entanto. –Kai alfinetara a irmã, desferindo-lhe uma cotovelada de brincadeira com um sorriso divertido e provocativo no rosto.

–Que seja, Kai. –Ophelia revirara os olhos, mas não invalidava de forma alguma o que Kai implicara. –Vamos, Nick tem um dia atarefado e não podemos ficar alugando o tempo dele. –Desejando-me boa sorte com os olhos, saíra empurrando levemente as costas do irmão pela porta ao mesmo instante que Cordélia passava pelos dois, parando em uma reverência elegante, que provocou um bom dia animado e sorridente vindo de Kai.

Já dentro do cômodo, sinalizei que ela fechasse a porta atrás de si e me direcionei até uma de minhas prateleiras a fim de pegar uma pequena caixinha.

–Creio que a senhorita escutara um pouco do que já foi dito aos guardas que estavam aqui antes de você.

–Sim, senhor. Dissera que hoje é aniversário da senhorita Sombra, certo? –Senhorita Sombra, algo na forma como ela se referira a Ladra me deu vontade de rir, segurando-me em apenas um sorriso contido.

–Isso mesmo, senhorita. Eu gostaria de informar que tenho previsões de ficar o dia inteiro fora. Posso voltar amanhã de manhã ou bem tarde da noite de hoje. –Caminhei até a dama particular e levantei a caixa que tinha em mãos até que ficasse ao seu alcance. –Fique com isso, é um presente meu para Sombra. Se eu voltar hoje ainda, você me entregara a caixa para que eu possa dar o presente em pessoa, porém se chegar perto da meia-noite e eu ainda não estar de volta ao castelo, você o entrega em meu nome. Tudo bem para você?

Cordélia passara um tempo lançando seu escrutínio sobre a caixa com um embrulho de fita de cetim branco em um laço mal feito (minha culpa, obviamente), sem reação. Ao levantar seus grande olhos curiosos e levemente confusos para mim, sacudira levemente a cabeça, indicando que entendera o que eu queria que fizesse.

–Não será problema algum.

Ao deixar os aposentos, fui organizando os acessórios necessários para a viagem até Yelda e torcendo para que eu acabasse logo o que precisava fazer na esperança de poder ir e voltar hoje, talvez mais ansioso do que deveria.

Ou, quem sabe, deveria tê-la acordado e entregado o presente de uma vez... não, assim estou sendo apenas egoísta.

Faça seu trabalho direito, Nikolai, quem sabe assim você se distrai um pouco de uma certa ladra que não sai de seus pensamentos.

____________

O sol estava se pondo pelas colinas de Yelda, nada como as belas montanhas de Sul-Ilaria, mas eram pelas colinas que transformava um belo poente.

Eu não havia encontrado Beckham Zharor e temia que não o faria tão cedo. Ele deveria ser um dos mais inteligentes, que poderiam esperar que a Rainha mandaria alguém atrás deles e sumiam do mapa por algum tempo.

Eu, no momento, encontrava-me na floresta seguindo pistas de um fugitivo não muito experiente em fugas. O esforço em ser irrastreável era notável, mas eu era o que era pelas minhas habilidades, logo, tudo ficava visível para mim, os cascos marcados com boas ferraduras de pessoas da elite em barro seco depois de uma chuva (uma ajuda do destino ao meu trabalho), galhos quebrados, fiapos de tecidos caros em roupas de alta qualidade eram quase que setas em seu caminho.

Infelizmente, com a noite caindo, não poderia prosseguir a perseguição a não ser que eu quisesse ser surpreendido pelo que a floresta guardava para a escuridão, o que me obrigou a montar meu acampamento em uma clareira, aproveitando os últimos raios de sol para fazer uma fogueira se quisesse comer um jantar quente sem ser identificado.

De um lado positivo, talvez pelo cheiro da carne de esquilo recém caçado sendo assada, ganhei uma nova companhia, um cachorro magricela e de pernas cumpridas, que o deixava um tanto desengonçado, com pelagem brilhante e escura apareceu ao meu lado, língua para fora e se oferecendo todo, não me dando opção a não ser dar-lhe carinho e um pouco da carne do esquilo, uma troca mais que justa –ele compartilhava comigo sua companhia e eu compartilhava minha comida.

Ao notar a lua já alta no céu depois de comer e de ter arrumado tudo sobre onde dormiria, percebi que não a veria em seu aniversário, não poderia ver seu rosto enquanto recebia meu embrulho.

Será que ela vai gostar do que escolhi ou pensará que trata-se de uma piada de mal gosto?

–Boa noite, atrapalhado. –Cocei a cabeça do cão que havia nomeado há pouco uma última vez antes de me retirar para dentro da minha barraca, tentando afastar o pensamento de Cordélia caminhando com elegância e incerteza até a porta de Sombra e entregando-a a caixinha.

E consegui afastar esse pensamento de mim –quando o sono me alcançou.


O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzWhere stories live. Discover now