Maria Luísa

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Me ajeitei no sofá e respirei fundo por um momento, ainda estava tensa com a companhia dela. A morena de olhos escuros não apresentava ameaça, pelo contrário, seus ombros estavam caídos como se um grande peso tivesse sido jogado sobre eles, seu rosto pálido e cansado não deixava muito espaço para traços de felicidade repentina, era quase como se eu me enxergasse ali a minha frente. 

Seu corpo estremeceu a minha pergunta e seus olhos se perderam na imensidão do fogo, observei seus dedos nervosos entrelaçados entre si num movimento rude, os ombros se encolheram mais e então, quando mais um trovão soou do lado de fora meu corpo enrijeceu e a xícara em minhas mão atingiu o chão, se transformando em uma porção de caquinhos.

"- Já basta, Maria Luísa! Chega! - Alberto gritou em meio ao som dos trovões e atirou a garrafa no canto da cozinha, eu me encolhi na cadeira. O cheiro de álcool exalava de seus poros e os olhos azuis foram cerrados ficando cada vez mais cheios de raiva. Ele se aproximou e agarrou meu pulso, me puxou cozinha a fora enquanto me amaldiçoava com suas palavras. Nós seguimos pelo corredor até a dispensa, cada centímetro de mim tremia em alerta e meus olhos já se desfaziam em lágrimas silenciosas..."

- Maria Luísa? Malu? - as mãos frias de Elena tocaram meus ombros e forcei os olhos a focarem seu rosto. Os olhos perdidos agora brilhavam com preocupação e cuidado e seu toque delicado amenizou a tensão que dominava meu ser - Está tudo bem, foi só um trovão. Estou aqui. - ela murmurou curvando os lábios num sorriso gentil e soltei meus joelhos, permitindo que minhas pernas relaxassem e, sem que eu percebesse senti minhas bochechas molhadas.

Os próximos minutos se passaram em silêncio. Elena me embalou num abraço e acariciou meus cabelos enquanto eu soluçava encharcando sua camisa azul marinho. A voz fria de Alberto ainda penumbrava meus pensamentos assim como o tilintar dos cacos da xícara espalhados pelo chão assim como a garrafa despedaçada naquela noite, minha respiração ofegava e eu me desvencilhei dos braços da morena, que me olhou assustada, numa tentativa falha de cessar o choro.

- Veja só. Aprontei uma bagunça imensa! - sorri desajeitada e corri até a cozinha em busca de uma pá. Quando retornei, ela já havia juntado os cacos - Não se incomode, eu posso limpar e...

- Está tudo bem, não imagina quantas xícaras quebradas eu junto num dia. Chamo de experiência. - ela riu baixo e despejou os pedaços sobre a pá - É melhor limpar antes que manche... - apenas assenti sorrindo fraco e caminhei de volta para a cozinha.

As memórias frescas faziam minha cabeça latejar. Nunca gostei muito de dias chuvosos, deixavam o céu sombrio e o vento gélido sempre parecia soltar sussurros tenebrosos, desde muito nova eu tive medo desses dias. Mamãe costumava me puxar para sala e contar histórias engraçadas de sua adolescência em Veneza, ela amava vermelho e sempre dava a impressão que a cidade parecia colorida; eu podia imaginar os tijolos em torno dos canais cintilando a cor vibrante em várias tonalidades diferentes e criava todo um cenário em minha mente. O vermelho me alegrava tanto quanto os dias de sol no outono ou o sorriso caloroso de minha mãe, mas agora as coisas pareciam tão cinza, sem todo aquele brilho e suavidade das cores. 

Passei os olhos pelo cômodo, um silêncio havia se instalado novamente e eu começava a me preocupar. Elena estava de pé no canto da janela, observando as gotas raivosas atacarem o vidro, seus dedos voltavam a dança nervosa de minutos atrás e seu semblante parecia pesado.

- Você não parece bem. 

Murmurei a uma distância confortável. Seu corpo tremeu num instinto e ela se virou apressada, parecendo confusa por alguns instantes até que caminhou ao redor do sofá, parando próxima a lareira acesa.

- Eu... an... estava pensando. - balançou a cabeça e passou a mão pelos cabelos num gesto nervoso. Arqueei uma sobrancelha e ela coçou a garganta - Sobre a Megan. Ela costumava ficar nervosa com tempestades também.

- Sua esposa? - ela assentiu, soltando um suspiro pesado - Há quanto tempo se separaram? 

- Sete anos... quase oito agora. - seu sorriso fraco revelou uma grande mágoa por trás daquelas palavras. Me admirei por saber que ela ainda se lembrava dos medos da antiga companheira.

- Posso perguntar o motivo? São tantos anos... 

- Megan tinha... problemas... vícios. Numa noite ela pegou minhas coisas e foi embora. Fiquei preocupada na época. Ninguém sabia do paradeiro dela, fiquei procurando por meses mas nunca mais tive notícias. 

Os olhos marejados da morena pareciam viver cada momento novamente, eles brilhavam e reagiam a luz das chamas com terror imenso até que ela os baixou e sentou-se no sofá com os ombros caídos. Ofereci-lhe um sorriso fraco e sentei-me ao seu lado, repousando minha mão sobre as suas cerradas em punho sobre seu colo.

- Sinto muito por ela. - Elena negou, balançando a cabeça fortemente e respirou fundo, engolindo todo o receio que tinha naquele momento.

- Não sinta. 


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⏰ Última atualização: Aug 16, 2021 ⏰

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