Capítulo 1 - A família sem homens

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O pensamento me traz uma pontada de desconforto.

— Está tudo bem aí? — Minha mãe, que até então estava no quintal separando as folhas de chá, entra na cozinha e nos espreita com seu conhecido olhar desconfiado. Ru Shi esconde as mãos nas costas e rezo para que minha mãe não decida inspecionar. Não consigo sequer calcular o tamanho do castigo que receberíamos se ela descobrisse que vínhamos interceptando a correspondência da tia Mei.

— Sim, mamãe, eu só me engasguei — respondo com um sorriso, puxando uma bandeja e acomodando mais duas xícaras aleatoriamente, que empurro na direção de Ru Shi. — Nós precisamos de mais folha de amora. — comento, dando a deixa para Ru Shi se retirar.

Minha mãe não responde, só solta com certa força o cesto sobre a mesa, passando a encher meticulosamente uma bacia com água. Sei o que a preocupa. Nosso estoque de tudo está baixo, não temos dinheiro sequer para repor as folhas de chá que não temos plantadas, os comerciantes passam cada vez mais esporadicamente, afinal nosso vilarejo não compra muita coisa, e o mercado mais próximo está a dias de viagem. Somos um desastre anunciado.

Ah sim, eu me pergunto se ela já sabe que tio Chen está voltando... com um regimento.

Um regimento é composto por pelo menos vinte bocas famintas depois de perambular pelas estradas do imperador. A base de tio Chen é na metade da Muralha, o que dá mais ou menos seis dias de viagem até o vilarejo. Não é o melhor dos lugares para se estar em termos de recursos e, acredite em mim, se você está no meio da Muralha, não vai querer descer para o sul, onde nós estamos. É aqui onde os recursos ficam mais escassos e é exatamente onde o Povo do Outro Lado costuma tentar invadir.

Na verdade eles costumam tentar invadir por todos os lados, mas o sul fica mais próximo dos portões por ser estrategicamente mais afastado do palácio real. São dias de uma longa viagem cansativa entre vilarejos empobrecidos, bases militares e florestas inóspitas. Estes somos nós, um povo muito acolhedor. Eu francamente não vejo razão para o Povo do Outro Lado querer invadir nossas terras, mas as histórias dizem que são gananciosos e querem transformar nosso reino no reino deles, afinal, embora o sul tenha sido prejudicado pela Muralha, pela sombra das montanhas e pela presença deles, o norte, onde fica o palácio, é extremamente próspero.

É por isso também que no sul faltam bons partidos, a maioria dos jovens rapazes quer se tornar soldado, não por dever militar, mas pela oportunidade de morar na cidade do imperador, aos pés do palácio, onde poderão comer bem, se vestir bem e desfrutar de boa companhia e segurança.

Eu sei, você vai me perguntar: "Mas Qingshan, então por que vocês moram no sul?", bem, nós não tivemos escolha. Os primeiros generais após o assassinato do imperador e da construção da Muralha foram mandados com seus regimentos e suas famílias para estes pequenos vilarejos inóspitos onde poderiam tomar conta da muralha e, consequentemente, da segurança do jovem príncipe... Que deve dormir em uma cama de ouro, em um quarto quente, cheio de comida, em seu palácio no próspero norte. Que nós protegemos com nossos bons partidos, nosso suor e nossas lágrimas.

Alguns com seu próprio sangue.

Tenho que admitir... Eu odeio o jovem príncipe Arjun. Mas gostaria que ele assumisse logo o trono e pudesse tomar conta da própria vida, assumir suas próprias batalhas e deixar a todos nós em paz. Tudo o que o conselheiro real sabe fazer é formar tropas para proteger Arjun, enviar regimentos para caçar invasores da Muralha — que podem assassinar Arjun — e formar ainda mais regimentos para vigiar ainda mais o palácio e a Muralha. Enquanto isso nós sofremos tentando nos manter.

Meus pensamentos me deprimem, sinto o peso em meus ombros como se fosse uma velha que já não tem expectativas quanto a vida, mas sigo trabalhando, servindo xícara de chá após xícara de chá até o céu ficar laranja com o entardecer e Ru Shi recolher a última mesa do último cliente, então nos sentamos juntas no degrau da varanda comendo os últimos bolinhos de arroz — com parcimônia, pois o arroz também está acabando e não sabemos quando poderemos ir ao mercado comprar.

— Não se preocupe, tenho certeza que meu pai trará comida e dinheiro — assegura Ru Shi, sentando ao meu lado — ele sempre traz.

Gostaria de ter mais animação, mas só consigo assentir e suspirar.

— Com tantos soldados aqui, talvez a gente consiga arranjar um bom partido — ela me dá um empurrãozinho com o ombro, estendendo a carta amassada. — E nem precisaremos gastar com a casamenteira.

A ideia de casar não causa em mim o mesmo entusiasmo que causa em Ru Shi, não sei dizer por quê. Minha prima sonha com casas decoradas por ela mesma, crianças bonitinhas chamando-a de mamãe e um homem bonito e leal que aqueça sua cama. Ela é alguém prática. Já eu... Eu não sei o que sou. No momento sou a garota que serve o chá, mas também sou a filha de um general morto, sou curiosa e um dia já fui chamada de indomável, embora agora esteja cansada demais pelas dificuldades para me sentir tão selvagem. Ainda assim a perspectiva de ser uma dona de casa não acrescenta nenhuma alegria a meu coração, mesmo que eu não saiba que outra opção existiria para mim. Posso ser a dona da casa de chá até o último de meus dias, claro, mas será que é isso que desejo? E, se não for, então o que eu desejo?

A pergunta me corrói noite e dia, mas nunca deixo que ela transborde pelos meus lábios. As pessoas da vila jamais entenderiam meus anseios. Nem eu entendo.

Ru Shi ainda está segurando a carta na minha frente, então eu a pego e passo os olhos pela letra de meu tio, absorvendo vagamente suas palavras.

— O Dragão atacou de novo. — Comenta Ru Shi que acompanha minha leitura. — É por isso que eles estão deixando o forte. Claro que papai vai aproveitar para nos apresentar para seus homens, mas o motivo real é o Dragão.

O Dragão, obviamente, não é uma fera mitológica, mas um homem. Um dos do Povo do Outro Lado, sem nenhuma característica mágica. A única capacidade extraordinária do Dragão é a de invadir a Muralha quando bem entende. Ele passa de um lado para o outro como se a Muralha não fosse guardada por soldados noite e dia, como se as forças do império não estivessem todas voltadas para essa fortificação. Ele passa como um fantasma. Em um piscar de olhos está exilado do outro lado, no outro está disfarçado entre nós súditos, roubando de nossos armazéns, saqueando vilarejos, levando tudo o que consegue carregar e então desaparecendo.

Ninguém consegue pegar o Dragão.

Eu quase o invejo. Quase.

Ele é livre de uma forma que eu jamais vou ser.

Devolvo a carta para Ru Shi e me espreguiço. Ficar cuidando do fogão e preparando xícaras de chá em pé o dia todo me deixa tão cansada quanto apostar uma corrida entre povoados, com a diferença de que esta não me dá a sensação de vitória ao término, só a sensação de que temos cada vez menos clientes e ainda menos dinheiro.

Eu olho para as mesas silenciosas e vazias, para o céu que escurece e para as cigarras que cantam ao longe. Penso em meu pai e no que ele desejaria para mim.

— Nós não vamos conseguir sobreviver assim. — Anuncio e minha frase parece agourenta ao anoitecer.

Qingshan e o imperadorWo Geschichten leben. Entdecke jetzt