Preparando-se para o que vier

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Mais um semestre se passou e os Ushkongerike não acharam a temporada tão penosa graças às receitas de Brainfreeze. A estação do Vintergås chegou novamente e todos se reuniram na cratera do Cofre de Brumas na expectativa de que, dessa vez, a migração das aves ocorresse como de costume. No entanto, os animais não apareceram, confirmando as suspeitas de Spelyss. Assim, ela decidiu convocar os druidas líderes das tribos em sua fortaleza para lhes anunciar que um tempo difícil se aproximava:

— A tormenta se avizinha! — anunciou a enorme criatura.

— Você descobriu o que está acontecendo? — indagou o líder dos Vunakavone.

— Receio que os gansos não voltarão mais, caro amigo, e acredito que a culpa do que está acontecendo seja minha e dos meus dois filhos, que também estão morando aqui na região. Alguns de vocês ainda estavam vivos quando o Speluke e a Speleena me visitaram pela última vez e devem se lembrar deles — refletiu a dragoa.

— O que você quer dizer com isso? Vocês não querem mais que nós cacemos os gansos? — questionou a líder dos Lakumiago.

— Muito pelo contrário, talvez nós tenhamos estimulado a situação dos gansos e algumas outras por tempo demais — lamentou Spelyss. — Nós estamos controlando o clima aqui em Normafrost há séculos e nossa região não tem acompanhado as mudanças climáticas do resto do continente. É provável que os gansos e outras criaturas hoje em dia não se sintam mais confortáveis cruzando a diferença brusca de temperatura entre nós e as montanhas do sul. Sendo assim, eu e meus filhos decidimos diminuir a nossa influência, protegendo gradativamente apenas as proximidades dos nossos lares.

Todos os druidas consentiram, entendendo que mudanças climáticas importantes estavam por vir, o que provavelmente significaria um aumento nas temperaturas. A dragoa, percebendo a consternação discreta dos amigos, continuou:

— Então, veremos como o clima vai se adaptar. Vocês sabem que sempre poderão vir me visitar, podem contar com a minha proteção e buscar abrigo no Cofre de Brumas quando quiserem. Vocês sabem disso, não é mesmo?

— Nós agradecemos muito. Sua amizade é muito importante para nós — ressaltou a líder dos Inulatake.

— Eu ajudarei no que vocês precisarem, mas, conhecendo vocês e não é de ontem, tenho a impressão de que vocês vão querer superar esse desafio por conta própria, estou certa? — perguntou Spelyss de forma retórica.

Todos sorriram.

— Bem, se vocês já estavam aqui antes de eu chegar, eu sei que vocês também vão conseguir se cuidar sem a minha interferência — disse ela com um certo pesar na voz. — Bem, eu já disse o que eu tinha para dizer. Sintam-se à vontade para anunciarem as novidades às suas tribos.

Os druidas se entreolharam, concordaram que não tinha mais nada a ser dito e começaram a se levantar para se retirarem do aposento.

— Boriante, você poderia fazer a gentileza de pedir para o patrulheiro do seu clã vir falar comigo? Qual o nome dele mesmo? Baltazark? Eu gostaria de dar uma palavrinha com ele — pediu Spelyss.

— Agora nós o chamamos de Brainfreeze.

A dragoa sorriu, os líderes partiram e, alguns minutos depois, Brainfreeze se assomou na porta do salão, perguntando se era com ele mesmo que ela gostaria de falar.

— É com você mesmo, Brainfreeze — confirmou ela. — Tenho acompanhado as suas peripécias e vejo que você está inventando soluções muito criativas para sobrepujar as adversidades que vêm surgindo no caminho da sua tribo, não é mesmo? Pois, então, como prova da minha admiração, eu gostaria de presenteá-lo com algo muito importante: a minha companhia! Eu serei a sua companheira animal!

O patrulheiro arregalou tanto os olhos que seu rosto se deformou em uma careta que nem ele mesmo sabia que era capaz de fazer. Ele nunca tinha ficado tão perplexo em toda a sua vida e perguntou gaguejando:

— É sério?

— Claro que não, querido. Nem animal eu sou — respondeu ela rindo. — Eu já tinha sido avisada que a sua ingenuidade pode ser muito divertida às vezes. Mas eu pedi para chamarem você aqui porque acredito que você mereça algo pelo bem que tem feito para a sua tribo em tempos difíceis... E também porque você não é tão orgulhoso quanto o Boriante — sorriu a dragoa. — Eu fico boba de ver como vocês pequeninos se viram e inventam coisas do dia para a noite que eu levaria um século para imaginar. Vejo que você, mais especificamente tem capacidade para ser uma peça-chave no futuro de sua tribo, talvez até mesmo de todas as outras daqui, e tenho algumas coisinhas que acredito que poderão ser de alguma serventia para que você cumpra o seu destino. Mas não cabe a mim apontar qual será esse destino exatamente. Isso eu atribuo ao líder da sua tribo e às marcas que você carrega na pele. No momento, eu apenas lhe peço para que aceite alguns presentinhos.

Brainfreeze riu desconcertado, coçando a nuca e ainda se recuperando do choque, mas logo se animou com a oferta de sua sábia aliada zombeteira. Uma vez que Spelyss tinha ouvido sobre a nova receita de Brainfreeze e sabia que, para executá-las, era necessário garimpar ou calçar alguns de seus ingredientes, ela resolveu dar-lhe uma arma que seria útil tanto para ele exercer seu métier de cozinheiro, quanto seu ofício de patrulheiro. Um bec-de-corbin feito de um metal escuro e com detalhes em obsidiana. Na extremidade, havia uma grande cabeça de corvo, sendo o bico do animal a ponta da ferramenta. A arma era muito bela e a dragoa afirmou que seu valor sentimental era grande, pois ela a tinha conseguido em uma batalha travada contra um exército em Waros-Banya. Mais especificamente, ela tinha sido encontrada junto ao corpo do único shadar-kai que Spelyss vira em toda a sua vida. Ela sabia que o bec-de-corbin não era uma arma comum e que Brainfreeze faria bom uso dela. O patrulheiro recebeu a arma e ensaiou um par de golpes no ar, acostumando-se com o seu manejo.

Ele lhe agradeceu pelo presente e, assim que deu as costas para a dragoa, ouviu:

— Aonde você vai?

— Vou voltar lá para fora. Não é para voltar?

— Não, eu quis dizer aonde você vai na vida?

— Eu só tinha pensado em ir lá para fora mesmo — respondeu o goliath, apontando para a saída.

— Pois então, lá fora é um lugar muito vasto e você vai aprender que, aonde quer que você vá, algumas coisas são essenciais nesse mundo. Primeiro, você já sabe que a magia exige recursos e eu não quero que isso seja um obstáculo no seu caminho — disse a dragoa, enfiando sua cauda em uma das paredes nubladas e retirando-a com uma bolsa de componentes na ponta. — Em segundo lugar, acho que você vai precisar dessas belezinhas brilhantes aqui, porque, por mais que você saiba se virar no mundo selvagem, elas fazem a vida no mundo civilizado bem mais confortável. — Com a mão direita, retirada de uma outra parede de nuvens, Spelyss lhe ofereceu uma faltriquera de couro marrom bordada em arabescos com linha preta contendo 15 peças de ouro. — Por fim, esse último presente é mais um palpite. Guarde-o e, quem sabe, você fará bom uso dele algum dia. — Ela colocou a mão esquerda em uma parede e, com ela, retirou um conjunto de roupas de viajante.

Sem entender muito bem o que estava acontecendo, Brainfreeze aceitou tudo de bom grado porque sabia que era o mais educado a se fazer. A não ser a arma-picareta, que adorou desde o princípio, e a bolsa de componentes, que permitiria que ele conjurasse as próprias goodberries, ele não tinha ideia de quando as moedas ou aquela roupa seriam necessárias. Ele se juntou novamente ao seu grupo, do lado de fora, e mostrou apenas o bec-de-corbin aos seus companheiros, pois estava muito animado com a nova aquisição. Todos ficaram felizes com a sua conquista, enaltecendo que Brainfreeze a merecia depois de ter criado receitas tão gostosas.

Estou falando com a mulaWhere stories live. Discover now