A mente de Amy mentiu

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Dias antes, Amy acordou um pouco tonta e com uma sensação imensa de ressaca, porém ela não havia ingerido álcool nenhum no dia anterior. Seria uma virose? Será que o sushi comido no dia anterior estava estragado? O sabor da comida parecia um pouco diferente do que das outras vezes que havia pedido naquele restaurante, de fato.

(Nesse exato momento, os guardiões se afastavam de sua rua, após apagar sua memória).

A sensação pós procedimento de perda de memória se equipara muito à ressaca. Se as memórias forem felizes, pior ainda. Seres humanos são seres apegados demais às suas lembranças, e a mente luta de todas as formas na esperança de esconder alguma informação para o caminho ser trilhado mais tarde, novamente. Podemos fazer um paralelo com aquela história do caminho de migalhas de pão, chamada João e Maria. Mas não é tão simples assim. Dessa vez, os guardiões foram extra cuidadosos, posto que todo cuidado era pouco na situação atual. Humanos deveriam ser protegidos, ainda que contra a sua vontade; é uma das principais leis da Sociedade Secreta.

Apesar desse dogma existir, Amy teve sua mente apagava de forma insalubre, em razão da pressa. Não foram feitos exames preparatórios e utilizaram apenas alguns instrumentos (os que podiam ser carregados).

Ainda desnorteada e juntando forças para sair da cama antes de se atrasar para o escritório, Amy recebeu uma mensagem de Luka de bom dia. A primeira sensação foi de alegria por ter sido lembrada por um amigo, juntamente com um arrepio que não soube explicar. Estava atrasada, então ignorou o alerta de sua mente e respondeu prontamente, seguindo para o banho.

Os dias seguintes foram seguidos de muita tontura e enjoo. Trata-se de efeito colateral comum e até esperado, mas a mente de Amy se recusava a aceitar o vazio que se seguiu à extinção de Jack de sua vida. Ela sonhava com ele, porém, obviamente, não conseguia formar sua imagem corretamente; era um borrão.

Sua mente repassava, todas as noites, flashes soltos de encontros com Jack, mas ela não desconfiava que eram memórias.

A chefe de Amy sugeriu que ela marcasse um médico e tirasse a semana de folga. Luka, como bom amigo que era, além de apaixonado, ajudou em tudo que pode, e isso os aproximaram. Todos os dias ajudava Amy a se alimentar, além de fazer companhia e fornecer um conforto no meio do mal estar.

Apesar de ser final de ano, Amy conseguiu um horário de emergência com notória rapidez. Na verdade, a Sociedade Secreta interviu, e o médico que iria atendê-la era um deles. Desconfiavam que, pela gravidade dos efeitos colaterais, Amy estivesse grávida, o que seria uma celeuma enorme: realizar o aborto e apagar sua memória, plantar a memória de que o filho era de Luka ou, ainda, adormecê-la até a criança nascer e doá-la?

A Sociedade Secreta acreditava que era a responsável pelo bem estar dos seres humanos, mas lhe fugia o conceito de livre arbítrio. Julgavam nossos defeitos e nossa dificuldade em respeitar uns aos outros, mas pouco respeitavam a humanidade. Intervinham sempre que lhes convinha e, após tantos anos intercedendo na vida dos vivos, passaram a nem se sentir mais mal. Acreditavam ser heróis sem capa.

Chegando no médico, Amy sentiu uma reviravolta no estômago. Essa confusão foi subindo pela sua garganta, quente e ácida, e ela não teve outra escolha senão vomitar no lixo do consultório. Foi o local mais próximo que conseguiu; quase vomitou ali mesmo, sentada na cadeira de espera, no chão.

A secretária do clínico geral olhou-a com terror e levantou-se para pegar um copo de água, posteriormente oferecido à Amy, que o aceitou, apesar do estômago reclamar em ingerir qualquer coisa. Luka havia insistido muito para que ela não fosse ao médico sem companhia, afinal ele poderia ajudar a explicar os sintomas, mas Amy preferiu ir com sua amiga, Camila.

Camila estava preocupadíssima. Era hipocondríaca e esperava sempre o pior. Seus olhos e rosto estavam inchados por chorar pensando que perderia uma de suas melhores amigas. Após o vômito, ficou perplexa e não conseguiu se mexer por alguns minutos. Ficou em silêncio, imóvel, rezando para não ser caso de vida ou morte.

Por sorte, a secretária teve a empatia de levantar-se para ajudar. Era uma humana. Após, ligou para o clínico geral para alertá-lo da situação. Prontamente, após o paciente que estava sendo atendido sair da sala, Amy foi chamada. Camila segurou forte sua mão ao levantar-se e entraram ambas de mãos dadas na sala branca e gelada do consultório.

Com poucos minutos de conversa e análise clínica, o que todos temiam na Sociedade Secreta foi descoberto: ela estava, realmente, grávida. Neste momento, uma decisão deveria ser tomada. Avisariam Jack? Mas ele estava em treinamento em seus sonhos. Perguntariam à Amy antes de proceder ao procedimento? O que fazer nessa situação tão delicada?

O Presidente Máximo, após breve, apesar de intenso, momento de reflexão, resolveu que era mais fácil adicionar uma memória do que sequestrar uma humana ou ceifar a vida do novo ser vivo. Estava decidido: era hora de os guardiões entrarem em ação e adicionarem a lembrança de que Luka e Amy eram um casal, bem como que o filho era dele. Posteriormente, se necessário e se mudassem de ideia, poderiam apagar essa lembrança de todos.

A decisão foi informada mentalmente e, prontamente, o médico geral estalou os dedos, deixando todos os humanos de seu consultório em estado de hipnose. Os guardiões entraram em cena poucos minutos depois. Dessa vez, com os exames corretamente realizados para confirmar que havia um bebê, bem como para verificar sua saúde, além de estarem portando os instrumentos padrões dessa vez. Inclusive, aproveitaram e trataram os efeitos colaterais da extinção de Jack.

Adicionar memórias, em geral, era algo muito fácil, muito mais simples do que a cirurgia de transplante de órgãos, por exemplo - apesar de que a mente poderia, sim, rejeitar a memória. Mas, como a situação era delicada por aquela mente ainda estar se recuperando, todo cuidado era pouco. Se Amy falecesse ou o bebê, seriam obrigados, por lei, a informar a Jack a situação, e acreditavam ser cedo demais para ele saber sobre os vivos que ficaram no passado.

Felizmente, para os guardiões, a mente de Amy, enfraquecida pelos procedimentos anteriores, não conseguiu lutar contra o transplante de informações falsas. E foi assim que Amy descobriu que estava grávida de Luka, seu namorado, ao lado de sua fiel amiga Camila.

- Tem certeza, doutor?

- Não – mentiu -, precisamos de um exame de sangue. Mas as chances são enormes.

- Isso é ótimo, amiga! Não é nada grave. E Luka é o amor da sua vida! – humanos podem reagir de forma diversa à adição de informações à sua mente. Cada um deve ter sua percepção da realidade, de forma que informações idênticas nunca são lidas da mesma forma por seres humanos diferentes. 

Claramente Camila interpretava o relacionamento de Amy e Luka de uma forma descompassada. Amy não sentia que Luka era o amor de sua vida, mas, de fato, ela sabia que era seu namorado. Pensou que, certamente, estava apenas em choque e entorpecida e, por isso, não sentia nada naquele instante.

O silêncio foi cortado pelo médico, o qual, apesar de estar com o coração partido em mentir para aquelas humanas, sabia que estava cuidando do bem estar de todos:

- Aqui está o pedido médico para o exame. Sugiro que descanse bastante e beba muita, mas muita água – o conselho parece genérico e aleatório, mas Amy precisava beber 5 litros de água diários por 5 dias, porque o cérebro foi alterado, e ele têm muita água, que foi perdida. Esses procedimentos deixavam os vivos demasiadamente desidratados, o que, algumas vezes, levava à morte, de fato.

Amy saiu do consultório preocupada com a conversa que teria com Luka, mas inacreditavelmente contente com a possibilidade de estar grávida. Será que sua mente, no fundo, sabia que o filho era, na realidade, de Jack?

Amy e Camila decidiram ir diretamente ao laboratório coletar o sangue para o exame necessário. No dia seguinte, com o laudo confirmando a existência do bebê, Amy contou a novidade para Luka (que também teve sua memória modificada, juntamente com aqueles que conheciam os dois), cuja alegria foi ouvida pelos vizinhos, com toda a certeza.

Sociedade SecretaWhere stories live. Discover now