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A sala é fria sobre minhas células epiteliais, nuas. Ingiro algumas pílulas para facilitar o exame. Conectam fios e tubos em meus plugues natalícios. Do teto desce um capacete abobadado, com um visor frontal. Depois de encaixado na minha cabeça, posso ver nas zonas periféricas meus sinais vitais, e através da sua transparência, o ambiente. O principal cabo do capacete é então conectado à minha nuca. Encaixam nele também um exoesqueleto no formato da espinha dorsal, com garras que se fecham sobre meu abdômen, para que meu corpo não envergue durante o procedimento.


Desço num cilindro transparente por uma escada fria de metal, que acusa cada passo dos meus pés descalços. O líquido verde-translúcido começa a subir. Do capacete surge uma voz monótona e cibernética ecoando dentro da minha cabeça, enquanto vou sendo submersa lentamente por aquela gosma...


Embrião 279 O z047 Fase 1 Ala B6 pp12 Fase 2 Ala M31 RB34 Fase 3 Ala S17 SPD13 Fase 4 Ala CH09 Z001 Número de série BR1 M ASH3 Nome fantasia BR UMA Erro 50-77

Entomofobia. Delirius tremens. Reconfiguração mnemônica local. Ligações sinap...

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Acordo na cama do hospital. A amargura no fundo da garganta relembra a medicação. Não sei quantas horas se passaram. Levanto, amarro a bata hospitalar e vou em direção ao lavador para molhar o rosto. Na superfície reflexiva do espelho, posso testar o reconhecimento ocular, que agora está como se nunca tivesse sido avariado. No menu que abre, solicito o prontuário. Não identifico termos técnicos, mas já posso solicitar a alta. Autômatos atendem o alarme de vigília para aferir meus sinais. Já posso me preparar para organizar meus itens pessoais enquanto aguardo o especialista.

Quando ele chega, ativa seu scaner ocular para averiguar o resultado da manutenção.


- É difícil mapear as causas da sua disfunção, e ela está cada vez mais freqüente. Talvez seja necessário o descarte do seu módulo orgânico. Mas não temos certeza de que vamos conseguir reintegrá-la a outro.


 Inconscientemente meus olhos me levam até a janela lateral. Minha visão percorre a forma da costura da via entre os prédios, sob a cúpula opaca na luminosidade vespertina exterior. Todas as vezes que a percebo é como se algo em mim ansiasse por despertar.


- Obviamente o procedimento é indolor. Não há perspectiva de funcionamento regular para sua malha neural.


O homem ainda me aponta painéis apresentando várias camadas do meu cérebro, mas cada palavra que é dita não é possível de ser decodificada por mim racionalmente. Naquele momento as únicas coisas que têm significado são os sons trazidos pela lembrança, de um mundo alheio a este aqui.


Drones autômatos me guiam até o estacionamento. Quando entro no meu veículo, percebo Céu. Ele está acompanhado, entra em seu transporte. Tenho o insight de desligar o piloto automático. Por um rastreamento simples do fluxo da via, posso inferir o posicionamento do veículo dele, e percebo que ele se aproxima cada vez mais das zonas mais periféricas. Estou seguindo-o. Os túneis, apesar de claustrofóbicos, permitem a passagem tênue do que resta da luz externa.


Já sob a fluorescência artificial da cidade anoitecida, percebo que o veículo de Céu entra em um prédio já próximo à borda. Tento segui-lo, mas minha entrada não é permitida. A frustração me paraliza por uns instantes. Quando recalculo a rota para a saída, o acesso se abre e posso entrar no prédio. Termino de estacionar e percebo a aproximação de Céu e de sua acompanhante. Saio do veículo no desconforto do flagrante.


- Já melhorou do seu problema de reconhecimento ocular?


- Sim, a manutenção terminou recentemente.

- Pode nos acompanhar?

Os sigo em silêncio, sem saber se deveria mesmo estar ali. Os corredores aparentam uma tecnologia ultrapassada e uma estrutura precária. Algumas manchas de infiltração demonstram um material permeável e me pergunto o estado da rede elétrica. Não sei se o gosto estranho em minha boca se deve unicamente aos medicamentos ou está sendo acentuado por reações orgânicas desencadeadas pelo acúmulo de emoções.


Entramos numa câmara e a luminosidade súbita incomoda meus olhos.


- Não está acostumada com luz automática?


- Sempre desligo. O automatismo não reconhece suas nuances inapropriadas.


Céu sorri.

- Mel, apresente-se para nossa amiga.

A mulher se vira pra mim. Seus olhos vazios estão voltados na minha direção, mas não focam em nada especificamente. Ela estende as mãos e toca nas minhas. Apesar dos movimentos mecânicos e olhar inexpressivo, ela possui um toque quente e vivo. Começo a sentir uma certa vertigem. Suas mãos se fecham sobre as minhas.


- O corpo dela é basicamente orgânico, Bruma. Superficialmente ela é tão humana como eu ou você.


Minha cabeça pesa e me sento no primeiro assento que encontro. Um enjôo seguido de um sufocamento na garganta já são prelúdios de um possível vômito. Aperto meus olhos e meus punhos sobre meu peito: a interligação de tantos dados a priori desconexos começam a tomar forma no meu raciocínio, só desconheço sua precisão.


- Qual foi a área de encubação dela?


Sinto a mão do Céu suave em meu ombro. Meus olhos ainda estão fechados. Ele sabe que estou prestes a dissociar: muita informação para poucas respostas concretas.


- Ela não foi concebida. Ela foi projetada.

Ela se senta ao meu lado, abro os olhos, toco em seus implantes natalícios. Aparentemente ela não difere em nada de qualquer indivíduo comum da Cúpula.

- Cada órgão dela foi sintetizado em impressoras 3D.

- Ela parece tão humana.


- Sua base operacional é a inteligência artificial. Ela é um tipo de autômato, mas com um corpo orgânico. Essencialmente ela não é humana, ela não tem matriz anímica.

Meus olhos embaçam. Lágrimas? Elas escorrem abundantemente pelo meu rosto. Algumas imagens desconexas tomam conta das minhas lembranças, como um sonho confuso em que tento despertar. Toco mais uma vez naquele rosto de expressões distantes e vazias. Onde será que vi um rosto assim?


- Qual a base para essas características?

- Ela foi projetada a partir do código genético da minha irmã.

Depois do CéuWhere stories live. Discover now