A proposta

119 16 66
                                    

 Abri meus olhos, sentindo minha cabeça latejar de dor no lado esquerdo.

Levantei devagar, olhando a cozinha. Havia uma vassoura e uma pá caídos ao meu lado, assim como um potinho de manteiga sujo com comida. Engoli em seco quando a lembrança voltou a tona e corri desesperada pela casa procurando o gato do demônio. Encontrei o mesmo na sala vendo TV. Ele parecia fofo e inofensivo assistindo O show dos looney tunes, porém quando desviou os olhos do desenho, resmungou zangado " Ah, enfim acordou. Ainda preciso que me leve ao Chelsa Thames".

Gelei dos pés a cabeça, mas respirei fundo. Gatos não deviam falar. Gatos não podiam, falar. Puxei o ar com força, tentando me convencer de que tudo talvez não passasse de um sonho maluco, que eu deveria estar exausta demais de tanto trabalhar, então belisquei meu braço com força, sentindo a dor e ouvindo um risinho zombeteiro do gato. Olhei para ele, que ainda me encarava com as orelhinhas atentas. "Água benta. Preciso de água benta" resmunguei indo em direção a cozinha.

- E você tem água benta em casa? - O gato perguntou curioso, me olhando como se eu fosse uma estranha. Parei na porta da cozinha, me lembrando que eu não tinha a merda da água benta. Como expulsava um espirito maligno de um animal mesmo? Será que tinha um tutorial ensinando isso no Youtube? Onde estava meu celular... - Que tal tentar um pouco de sal grosso? Ouvi dizer que funciona contra as fadas. - Ele disse de forma seria.

Tentei não me deixar levar pelas palavras do gato e comecei a procurar o celular pela casa, mas parei quando me toquei que ligar para policia denunciando um gato falante só me garantia uma recomendação para o hospício. Xinguei baixinho corri para cozinha, abrindo a gaveta de facas no armário.

- Se isso realmente for para mim, saiba que é violência contra animais, vou te denunciar sua doida. - O gato disse a alguns passos de distancia de onde estava parada, segurando a faquinha de serra. Eu abri a boca para responder, mas perdi a fala quando o gato se aproximou mais, saltando para cima do bolcão do armário, vindo em minha direção com aqueles olhos dourados grandes. Segurei a faquinha diante do corpo, preparada para atacar ou me defender caso fosse preciso. - Abaixe isso, sou apenas um gato pequeno, não um ladrão. - Ele pediu depois de se sentar. - Preciso da sua ajuda.

- Por que um gato precisa de ajuda? - Questionei com medo, sem tirar os olhos do felino.

- Porque eu não sou um gato. - Respondeu encarando a faquinha.

- Pois me parece muito com um. Um bem estranho a proposito. - Resmunguei, fazendo com que o gato revirasse os olhos âmbar.

- Preciso que me leve ao Chelse Thames. - Ele pediu.

- Chelse Thames? O que você quer por lá? - Franzi a testa, tentando entender o que um gatinho de rua iria querer em um dos bairros mais burgueses da cidade. Eu nunca se quer havia passado por aquelas ruas, mas sabia que a desigualdade social era enorme, se comparecemos as casas e prédios modestos de onde morava, com as ruas sempre limpas, perfumadas e casas mais semelhantes a mansões daquele canto ao sul da cidade.

- Eu moro lá. Preciso voltar. - Explicou. Eu sempre soube que pessoas ricas demais podiam ter costumes ou gostos peculiares, mas quem em sã consciência teria um gato falante? E como se conseguia um? - Eu te pago.

Eu ri.

- E desde quando um animal tem dinheiro?

O gato me lançou um olhar feio, resmungando que já havia dito que não era um gato, e me engasguei quando ele propôs pagar 2 mil pelo "serviço".

Abaixei a faquinha, mordendo o lábio enquanto pensava. Ele poderia estar mentindo, me iludindo para ganhar minha confiança e roubar minha alma ou poderia estar falando a verdade. Quem sabe fosse o gato de uma daquelas madames ricas...

- Como posso ter certeza de que você não esta me enganando? - Exigi saber.

- Eu prometo que te pago assim que me levar até minha casa. - Ele disse de forma emburrada, revirando os olhos.

Eu precisava de dinheiro. 2 mil não ajudariam a pagar todas as despesas do hospital onde Júlia estava, mas daria um certo alivio. Minha mãe trabalhava tanto fazendo massas e mais massas de bolos, assando, enfeitando, embalando e vendendo, para depois complementar a renda indo trabalhar na lanchonete, eu também tentava ajudar com o trabalho na lojinha de roupas e com o trabalho extra na boate, mas ainda assim, os boletos se multiplicavam e minha irmã continuava internada e presa na cama do hospital.

- Sua dona deve te amar muito mesmo e ter muita grana, porque eu não pagaria isso tudo nem morta por você. - Respondi.

- Já disse, não sou um gato, não tenho uma dona. - Resmungou, saltando da mesa do armário para o chão e alongou o corpo.

- Onde pensa que vai? - Perguntei vendo ele se afastar.

- Vou terminar de ver os desenhos. - Respondeu ainda no caminho de volta para sala de estar.

Balancei a cabeça, ainda incerta sobre a situação. Contudo, terminei de limpar a sujeira que o gato havia feito na cozinha, passando por ele na sala, vendo-o com a atenção fixa na televisão que naquele momento exibia um episodio de Naruto. Busquei um travesseiro e um cobertor no meu quarto, corri em direção ao quarto da minha mãe e entrei, trancando a porta por segurança. Me ajeitei no chão em frente a cama dela, que dormia pesado de boca aberta. Demorei pegar no sono naquela noite, e quando ele enfim veio, tive pesadelos.


 Demorei pegar no sono naquela noite, e quando ele enfim veio, tive pesadelos

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.


ALICANTINA (Pausada)Where stories live. Discover now