O que prevalece para a porra da humanidade é e sempre será a solução de tarefas da vida prática. O humano em preto e branco ama concluir tarefas, se gaba disso, orgulha-se em terminar tudo o quanto pode o mais rápido possível. O objetivo, então, é justamente completar o Louvre todo – fazer valer o dinheiro da entrada, da passagem de avião até Paris, o tempo gasto, ou só pra poder dizer aos outros que sim, claro, já fui ao Louvre e vi cada um dos quadros, olha só as fotos, é magnífico –, mas seja lá qual for o motivo, o objetivo é o mesmo e a gana para ver tudo faz com que as pessoas não vejam nada e isso me dá uma raiva do cacete, no começo, e depois e me deixa deprimido.

De certa forma, V é capaz de me libertar dessa angústia. Parecia determinado a degustar o presente, sem se importar em concluir tarefas só por concluir. Lia livros sem pressa para terminar, fazia amor sem perseguir cegamente o gozo, passeava sem destino e sem objetivo. E, sempre que me lembro dos três segundos que cada criatura para em frente à algumas das maiores obras de arte já produzidas, fecho os olhos e imagino V no Museu do Louvre. Ele encara os quadros, curioso, aprecia sem julgamentos e às vezes seu olhar se torna vazio, distante, e sua mente parece viajar para longe.

V jamais conseguiria ver o Louvre por completo, mesmo em mil visitas.

Ao apreciar arte, é metódico e sonhador. Está ali e não está. V absorve a arte, os quadros, os livros, as fotografias, as paisagens, até que se tornem parte dele.

Por outro lado, quando decide falar de arte, soa como um louco. Não costumo gostar quando as pessoas falam comigo sobre pintura porque sempre parecem um monte de tolos repetindo as frases de efeito que seus professores caquéticos enunciaram com elegância em alguma aula. Em geral, a maior parte das pessoas não percebe o quão idiotas soam ao tentar se passar por intelectuais.

E, os verdadeiros intelectuais, em geral, são uns presunçosos arrogantes.

Mas é claro que V não pertence à maior parte das pessoas. Era sempre peculiar. Podia vir manso, recitando poemas e tratando a arte como divindade absoluta. Podia criticar a arte comercial, as propagandas, e fazer piada de si mesmo por ser modelo de catálogos, mas o capitalismo não liga para a arte, diria, e aí tudo bem ele ser um vendido. Em outros dias, discursava sobre arte como quem comenta as últimas fofocas. Aí se lembra de um causo:

— Seagull, você sabia que Sargent tinha um modelo negro que usou para pintar centenas de seus quadros mas sempre pintava ele como branco?

— John Singer Sargent? – ergui as sobrancelhas, desviando a atenção da tela. V confirmou com a cabeça de leve, mantendo a pose.

Estava com as costas caramelo expostas, a cabeça rósea de cabelos desbotados virada para o lado, o queixo apoiado no ombro. A posição fazia sua expressão parecer emburrada, meio melancólica. Me olhava de esgueira, atento, mas sobre o cavalete tinha os olhos baixos e perdidos. Sua mão esguia, de dedos longos e delicados, repousava no braço, exibindo um único anel no indicador. Não era extravagante, mas belo em sua delicadeza. Folheado a ouro, tinha uma solitária opala em formato de flor. O anel me chamou a atenção numa vitrine, uns dias antes disso, sem que eu procurasse por ele. Imediatamente eu soube que pertencia a V.

— Sargent só pintou um único quadro do modelo como ele mesmo, a pele negra, totalmente nu — continuou. — Desconfio que os dois estavam tendo um caso.

Soltei uma risada seca e neguei com a cabeça. Desconfio que estavam tendo um caso, ele disse, na maior naturalidade do mundo, como se falasse dos vizinhos.

— Só por um quadro descobriram que ele era o modelo de todos os outros? Não faz sentido.

Dei corda ao assunto. Quando V ficava muito tempo em silêncio começava a reclamar de tédio, ou de dores, e se cansava de posar mais rápido. Ia lá pra dentro fazer chás, ou me convencia a fazer amor.

Vinte Minutos e V Where stories live. Discover now