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Sozinho na repartição depois do expediente. É a segunda madrugada que não durmo bem. E logo vem a terceira. "Eu talvez sonhei sozinho por algo melhor". Talvez tenha sonhado com outras atitudes dessas pessoas que me cercam e, por isso, fique irritado quando fazem o contrário. Sistemático, eu sou sistemático, tornei-me para defender minha função durante os anos, fazer melhor que os outros em menos tempo e com mais exatidão. E com poucos erros. E eis que recebo algo de valor em mãos... 

Estou a olhar o papel que recebi da senhora da limpeza, há pouco. Um puxão de orelha por escrito. Que fui visto usando as colheres de plástico para mexer o café e não as joguei no lixo, devolvi ao copo onde estavam as novas colheres de plástico, e por sua vez, sujei-as, com as que eu já havia usado para mexer meu café. Morno, café morno por sinal. Fico a pensar sobre o que leva um ser a reparar nisso. Respondo por escrito? Respondo verbalmente? Respondo por escrito e peço para que a senhora da limpeza entregue para mim? Vou ao banheiro grampear o papel com o puxão de orelha no papel higiênico? Deixo tudo para trás e vou para as madrugadas tão ansiadas? Vejo sem querer meu reflexo no vidro que circunda os balcões da repartição. Sem querer. É quase um susto as marcas do tempo na face, no desalinho da cabeleira grisalha. E por citar reflexo, espelhamento, luz do meu eu transposto num móvel reflexivo fora de mim, talvez, digo talvez, alguém que leia este diga em voz baixa, que tem algo por trás dessa minha declaração do meu olhar fitar meu próprio eu em tal lugar da dita repartição. Estaria tornando-me parte, ou assemelhado, ou com viés de autenticidade do lugar que fixei o maior fragmento de minha vida?

Ao abrir a gaveta para guardar o papel, futuramente grampeado em algum lugar merecido, vejo os escritos de Tricia. Dois deles, os primeiros encaminhados a mim, reencaminhei ao amigo que publicará possivelmente meus textos. Ele apreciou. Dentro de mim penso que... Conforme releio e lembro-me do olhar dela ao mundo, e das dificuldades encontradas por ser uma estranha dentro do mundo que alguns assola, vejo o impacto do texto dela naquilo que entendo por existência. É plena a sensação de vida quando leio Tricia com minha alma. São percalços duros, de afogamento das vontades pessoais e buscas subjetivas demais para que... Sabe, entende... Traga-nos imediatamente o chamariz da vida. Levanto-me.

E sigo....

Vivo na maior cidade em centenas e centenas de quilômetros. Grande parte das pessoas que restaram das cidades menores veio para cá depois das destruições mundiais. Alguns pelo acúmulo de perdas foram encaminhados às chamadas "casas de saúde". Tricia foi uma delas. Hospitais psiquiátricos dobraram o número de leitos e perderam metade de seus profissionais. O fundamental pra mim é manter-me incólume neste momento. De todas as formas que um trabalhador pode querer permanecer. Para Tricia, de acordo com o escrito "001", fundamental é voltar abrir os olhos, caminhar e cuidar de si mesma sem ajuda de medicamentos. Beirar qualquer novo problema advindo da nova era, sem querer se matar. E para o Dr. Bethlem, novo proprietário do maior hospital da cidade, o fundamental é tirar proveito financeiro da situação. Eis uma trinca de cartas incomuns que não podem, por enquanto, frequentar mesma mesa.

Línguas estrangeiras se mesclam. Lá fora, perfume, nevoeiro, rum, valsa.

Escritos de Tricia – 001

O fundamental era encerrar aquele ciclo de maneira sadia. Nada de outras substâncias químicas para ajudar. Tentar sair sem remédios. Tentar e tentar até conseguir abrir a janela outra vez. Beirar o abismo e não querer se jogar. Nem molhar os pés na garoa que tende a virar tempestade. Alicerce de si mesma. Depois de tanto, conseguir voltar a si, sem olhares insones e desejos repentinos. Portanto, fundamental a conversa com o espelho.

Como se concentrar em olhar suas verdades estacadas pelo corpo? Suas vestes não estão rasgadas. Há três dias que se confronta e está de roupas inteiras. Há cinco dias que se cuida como a mulher feminina que sempre foi; que recolhe os pertences do passado enterrando no quintal. Unhas pintadas em vermelho vivo. Belo contraste com a pele alva e quase pálida. Quase pálida. Lábios trêmulos e pés descalços. O cálice está cheio, derrama de gratidão gotas e gotas. Nos seios o vinho se aconchega. No olhar a centelha invade. No espelho o sorriso resplandece o amanhecer de um ciclo, o anoitecer de outro. As curvas dos ombros, entre sardas e a tatuagem em língua antiga, as asas pendendo para as costas e o desenho todo formando uma silhueta admirada.

E o fundamental é sentir-se pronta para abrir a porta e caminhar de encontro ao que vier. Tornados expulsos diante do olhar. Aceitar o fardo e caminhar ainda que sobre labaredas? Ser sustentáculo de si mesma. O vinho já percorre mais que seios, virilhas e coxas. Fundamental.

Escritos de Tricia – 002

Onde estão minhas personagens malfadas? Malcriadas. Não é determinado que personagens se comparassem aos seus destinos. Nem tudo que escrevi do favorito foi premeditado. O único esboço que fiz foi do início e do fim. O recheio ocasionou-se no cotidiano da escrita. Então se assim o é, diálogos escritos no momento catártico dos dedos atrevidos na folha lânguida, como pensar que minha própria história é por outros completamente determinada? Quem nos fez sabia somente do primeiro choro e do último suspiro. Minha dita responsabilidade é um percalço moral aceso desde sempre, quando recordo da voz doce da genitora, empurrando meu olhar para mais lados que os homens queriam. Eu quase escolhi transpassar o pulmão de um inimigo com uma estaca. Esculpi ideias, regurgitei pensamentos, afoita, corri a lâmina na ponta da madeira, sedenta por ação. Olhei a folha do passado traquinando diante da retina, vez por outra. Na madrugada escolhida, fui vencida pela moral plantada pela voz e regada pelo exemplo do agir. Não estaria aqui descrevendo tal petardo se tivesse dado escuridão ao dia que parecia querer vir ensolarado. Não perdoei o inimigo, em tom brando e astuto, porém, confiei minha justiça aos olhos do além-nuvens. Escolhi livremente, após muito debater aquilo que pensara ser o merecimento da vida por minhas ações e reações.

Todo personagem tem um esboço que é o mesmo que tive no semear do óvulo. Irei correr os dedos nos fios leves dessa estrutura que é minha busca, minha sedenta busca por algo a contar. 

Fragmentos de SantinoWhere stories live. Discover now