1

13 3 4
                                    


Eu a segui até chegarmos perto do Palácio das Enguias, Rua da Cruz Preta. Não acreditei que uma mulher jovem com aquele tipo físico, pudesse sozinha arrastar dois homens fortes como eles, sem parecer fazer grande esforço. Neblina densa desde onze da noite e já eram quase quatro da madrugada, meu conhaque estava no final, alguns vadios restavam ébrios perto da Praça das Estátuas e um canto de aves anunciando algo de estranho repercutia ao leste. Ela parou por um instante e não a vi durante trinta segundos, mais ou menos. Achei, sinceramente, que ela fosse me interpelar por ter percebido meus passos em seu encalço há tantas quadras, mas, quem sabe numa próxima vez. Ela parecia preocupada demais para ter repentinos avisos, de nada naturais, sob minha presença ali.

Eu tinha meu casaco aberto pelo calor que o conhaque proporcionava, minhas mãos aquecidas ora dentro da calça, ora no sopro de minha boca machucada pelo soco de um idiota. Sim, eu sei, não sou um exímio perseguidor, ou educado como um cavalheiro da Corte D'Oeste, mas estava lá, sendo sombra da estranha mulher. Os ventos pareciam uivos por vezes, nas frestas das portas e janelas e sabe mais o que poderia transformar a passagem da natureza semelhante a um grito. O conhaque estava ainda descendo goela abaixo, me aquecendo e fazendo meus instintos parecerem mais que fogo, me abaixei, quase deitando, para tentar olhar com mais proteção para aquela cena. 

Ela amarrou os pulsos dos homens, pendurou-os de ponta cabeça na estátua do Crânio que Verte Vinho, vendou-os, amordaçou-os e quando achei que ela estava se virando em minha direção só senti mais um vento, um perfume convidativo que trazia recordação das mandarinas sicilianas e uma neblina intensa como a jorrar das nuvens. Sem conhaque, somente com visão parcial do que ocorria e com muitas dúvidas para pestanejar. Não quis levantar e tentar olhar mais de perto. Esperei calmamente... 

Alguns minutos depois, um vento abrupto fez a neblina se dispersar como num susto e pude ver os dois homens novamente, sem mais saber da estranha. Durante o tempo da espera não ouvi passos nem percebi vulto ou sombra. Tentei recordar, enquanto caminhava em direção da estátua do crânio, se ela poderia ter sido avistada por mim algum dia. Ou se aqueles movimentos feminis poderiam ter alcançado qualquer taverna ou hospício que havia eu frequentado até então. Nada.

Não tive medo, talvez por consequência do conhaque. Só quis avançar com cautela percebendo os ruídos das ruas, das casas, do submundo que abaixo de mim teria ratos, morcegos e fugitivos. Eles respiravam desacordados. Moedas colocadas nos olhos amordaçados. Mãos arrastando no chão. O que teriam feito para vir parar no final da Rua da Cruz Cinza, em tal estátua perto da praça central do bairro?

Não havia bilhete ou símbolo, só aquele perfume no ar, os corpos ali respirando como num sono mais que profundo. Nada que pudesse servir de mensagem maior aos desavisados, aos estranhados aquele acontecimento. A neblina cessara como se fosse os cabelos dela indo embora, os pios das aves aumentavam ao longe e quando olhei para trás, apenas um homem bêbado adentrando o local que eu havia passado. Na Praça das Estátuas, do outro lado, três jovens carregando garrafas que pareciam de vinho. A moça segurando a intimidade de um e pedindo algo em sua boca. Foram por um lado, me fui noutro.

Fragmentos de SantinoWhere stories live. Discover now