Relato

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Algumas semanas depois do começo do ano e ainda não consigo acreditar que estamos no final do primeiro mês. O tempo passa rápido demais, e isso piora ainda mais quando há rotina, o trabalho e dar o sangue na empresa acaba com a noção do tempo. 

O relógio existe.

O tempo não.

Eu já li isso uma vez e faz total sentido. As noites parecem que encurtaram, e minha ausência na casa cheia faz falta. A barriga de Jenna aumenta cada vez mais, a devoção de Jake a casa também, e a ansiedade de Lucca sobre não saber o que fazer me deixa inconfortável cada vez que percebo sua inquietação na cama, ou varando pelos cômodos da casa. 

Observo L dormir, ultimamente tem sido difícil ver essa cena. Sem faculdade, sem suposto trabalho, fica difícil pra ele conseguir não se concentrar na decisão de ir para a Alemanha, e não posso deixar de negar que venho atrapalhando bastante essa linha de pensamento.  Ouço baterem na porta, desesperadamente. 

Checo o horário no relógio, é de madrugada. Quem ousaria vir até aqui essa hora e de dia de semana? Vou até a porta e tento ouvir do outro lado da madeira qualquer pista sobre quem está do outro lado da parede. Mas a única coisa audível é uma respiração ofegante, quem quer que seja não está nem um pouco tranquilizado. Abro a porta, se continuarem batendo na madeira, acordará o restante da casa, e não é isso que precisam.

"Angel?" ela me abraça, como alguém que pede colo. 

"Você pode me abrigar?" me pergunto se ela pede metaforicamente ou não. 

A levo até o sofá, checo a frente do meu bloco de apartamentos antes de fechar a porta, com certeza não é boa notícia que ela carrega. "Aconteceu alguma coisa?" pergunto realmente preocupada, mas receosa com a curiosidade instigada dentro de mim. 

"A primeira vez que fomos casados foi uma relação boa até. Até Lucca nascer. *Ele começou a se mostrar mais agressivo, qualquer coisa gritava muito comigo, me tratava muito mal, eu emagreci muito, passo mal, tenho problemas nervosos, preciso tomar remédios controlados por causa disso.Ele começou a me ameaçar, eu não podia sair de casa, não podia ter amigos, não podia fazer nada. * Eu fui liberando minha vida em suas mãos, cada vez mais. O que eu sentia mais falta era o poder, o controle sobre eu mesma." ouço com atenção cada frase dita, sei que dói reviver esse passado tão presente, e que provavelmente eu sou a única da qual ela tem coragem de conversar. 

" ** Em casa fui morrendo aos poucos, cheguei no fundo do poço. Sofri assédio moral no trabalho porque as pessoas não acreditavam que eu estava doente. Eu já nem dormia mais no quarto com ele, mas não tinha coragem de deixar o casamento. A violência psicológica causa opressão e uma dependência emocional. Tentei várias vezes sair do casamento, mas eu achava que não conseguiria, que eu era fraca**"  fico horrizada, o modo de como ela conta. Isso é real, isso é emergencial. 

"Você é tão forte" sorrio enquanto as palavras saem flutuando da minha boca, é incrível ver a força que mulheres como Angela possuem. Forças de se levantarem do chão depois de um xingamento ou de violência física. 

"Nada de ruim vai acontecer agora, você está salva" digo enquanto as lágrimas em seu rosto deslizam, eu gostaria que o que eu acabara de dizer fosse verdade. Mas infelizmente, o ódio está presente em todos os momentos da vida de uma mulher, muitas das vezes saem de nossas próprias bocas. Somos ensinadas que devemos ficar caladas, que o sexo feminino fala muito, somos fofoqueiras, sem conteúdo, plena fachada. Sinto vontade de rir apenas por pensar que um dia eu já quis entrar nesses padrões. 

Mas são pessoas como minha sogra que me fazem enxergar a dura realidade que enfrentamos. "Devo acordar Lucca?" ela faz que não com a cabeça, mas sei que por mais que doa em L ver aquela cena, será melhor para ela o colo de seu filho. 

Vou até o quarto e me inclino para acordar carinhosamente Luc, "Sua mãe está aí" ele levanta sonolento, mas logo desperta quando olha para o relógio. Ele caminha rápido demais em direção a sala, como se já previsse o que aconteceria. 

"Mãe" ele diz com a voz embargada, prefiro pensar que é por causa do sono e não da tristeza que invade cada canto do seu corpo. Ela permanece ereta, forte, um porto que faz os maiores navios terem inveja de quem atraca lá. 

É ela quem dá colo ao seu filho, diferente do que pensei ela não cessa. Eles ficam na mesma posição por bastante tempo, eu fico os observando do chão frio, nada é mais desconfortável do que ver a tristeza no olhar de Angela e a rigidez que seus dedos fazem cafuné no cabelo de Lucca. Parece que ela não fazia carinho em alguém a muito tempo. 

"Eu vou te tirar daqui, eu prometo" Lucca diz baixo, mas o suficiente para ecoar na minha cabeça. Qual desculpa darei para faze-lo ficar? Meu egoísmo já ultrapassou muitas barreiras, talvez eu deva ficar quieta apenas tentando entender qual propósito a vida quer me dar. E se meu destino é insistente, eu sou mais. 

Lucca me olha, como se me pedisse permissão, eu não me mexo, mas me solidarizo pelo olhar. "Você vai para a Alemanha comigo, vamos fugir dele" e faz que não com a cabeça, faz um barulho negativo com a boca. "Preciso enfrenta-lo" "Sim. Você poderia, e seria o certo. Porém temos a chance de tentar reconstituir nossa vida, não é melhor do que andar em círculos aqui?" Lucca pergunta indignado a sua mãe, eu não o culpo. Ele não sabe como é ter a justiça contra você. 

Olho para minha sogra, que me olha de volta "Tenho a melhor advogada em mãos, farei o melhor que puder para você. Mas enquanto isso eu preciso que a senhora siga o que seu filho acabou de dizer" "Farei. Obrigada por isso Serena, esse é um presente que ninguém nunca me ousou dar. Justiça" 

Continuamos ali, quietos, os três.

Olho para cima e converso com a minha mãe. Ela me aconchega o suficiente para tentar ser forte diante disso tudo. 

E se há algo que sou. 

É forte.

Se há algo que todas as mulheres são.

É forte. 


( * e ** das falas de Angela, foram retiradas de depoimentos reais de mulheres que sofreram violência de seus maridos. Os nomes não serão exibidos por questão de privacidade e direitos dos sites que publicaram tais artigos) 

FinalmenteWhere stories live. Discover now