Capítulo 4-Castigo

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Com um enfermeiro segurando cada ombro meu, fui levado até a sala da enfermeira chefe. O medo me gelava a espinha e a sensação do meu punho contra a pele clara de Eduardo não me saía da cabeça.

Eu sabia que não estava bem, devia ter ficado no quarto. Eu já tinha de estar acostumado, mas cada vez que algo assim acontecia eu só ficava mais assustado e com mais medo de mim mesmo.

Atravessamos o aparentemente infinito corredor até chegarmos numa porta de madeira rústica. Seu verniz estava descascado e ela fez um barulho horrível quando foi aberta.

A sala era enorme e fria. Na esquerda havia uma prateleira de livros que ia do chão até o teto e todos eles possuíam títulos como "Mentes Inquietas" ou "Estudos Sobre A Histeria". À direita viam-se pinturas, um quadro com anotações e algumas cadeiras.

No fundo da sala, quase sumindo naquela imensidão branca, havia uma mulher debruçada na mesa com o olhar duro e expressão cansada.

-Obrigada, garotos. –Ela disse quando os homens vestidos de branco me empurraram para dentro.

-Sempre às ordens, Keitlyn.

Fecharam a porta e ela se voltou para mim, me analisando com os olhos verdes:

-Se metendo em encrencas de novo? Achei que já tivesse passado dessa fase. Já está aqui há dois anos, francamente!

Encarou os livros e suspirou, alisando a saia secretária preta como se esperasse por uma resposta.

-Sabe, acho que você nunca foi realmente castigado...Ana protege demais os internos da ala B. Infelizmente, hoje não é o seu dia de sorte, garoto. Você e essa novata passaram dos limites.

Apenas fiquei em silêncio, encarando o chão.

Ela caminhou lentamente até a mesa, o barulho dos saltos ecoando no cômodo espaçoso. Mexeu nas unhas tingidas de azul marinho, jogou os cabelos cacheados para trás e apertou um botão no interfone.

-Senhora Keitlyn? –A voz de Ana soou do outro lado da linha.

-Pode pedir para que os rapazes levem o Leo e a novata para o castigo ainda hoje?

De onde estava pude ouvir a enfermeira engolindo em seco, era capaz imaginar seu rosto enrugando de preocupação.

-S-Sim senhora.

Até ouvira falar sobre o castigo, mas nunca conhecera alguém que fora para lá. Eu sequer sabia bem o que era, só sabia que a fama não era boa. No geral, eram mais os pacientes da ala A que precisavam ser punidos. 

Pensando nisso, me senti uma ovelha negra. Um dos poucos pacientes da ala B que se meteu numa confusão tão brava que precisou ir para o castigo. Que pessoa de merda eu era.

Keitlyn colocou o telefone no gancho e me lançou um olhar vitorioso.

-Pode voltar ao seu quarto e certifique-se de não se meter em mais confusões. Os enfermeiros o buscarão mais tarde. Boa noite.

-*-*-

Menos de uma hora depois eu fui conduzido novamente pelos corredores agora já escuros e sombrios.

Paramos em frente a um quarto de porta aberta. O breu era total. Observei todo aquele espaço vazio – sem cama ou qualquer móvel- enquanto era jogado para dentro.

Com um estrondo a porta foi fechada e eu olhei ao redor, apertando os olhos para tentar ver algo. Eles pareciam se recusar a acostumarem-se com o escuro. A situação toda era assustadora.

Eu me sentia mal. Havia dado um soco em um senhor de quase noventa anos! Que tipo de monstro eu era?

Apesar de tudo, eu realmente não me arrependia de ter tentado ajudar. Apenas odiava-me por ter perdido o controle novamente ao invés de achar outra solução. Eu sempre fora um cretino maluco, no fim das contas.

Um estado profundo de tristeza me abateu novamente, muito pior do que durante a manhã. Todas as lembranças embaralhadas na minha cabeça passaram diante dos meus olhos.

Antes que eu pudesse pensar em mais alguma coisa, ouvi barulhos do lado de fora.

Passos. Gritos. Mais passos. Súplicas.

Demorou para que eu conseguisse entender o que a voz desesperada clamava, mas foi possível quando o tumulto passou em frente à porta.

-Não, por favor! Eu sinto muito, não fui eu! Vocês tem que me ouvir! -dizia uma voz feminina, embargada pelo choro.

Logo ouviu-se um estrondo e então uma porta sendo fechada. Mais gritos ecoaram, seguidos de fungadas e soluços.

Ouvi atentamente por algum tempo, até reconhecer a voz, até entender. Até perceber que era Rafaela na sala escura ao lado.

Ela chorava e esmurrava a porta de metal.

Imediatamente encostei o ouvido na parede e falei alto, na esperança de ela me ouvir.

-Rafaela?

Ela calou-se e demorou a responder:

-Eu...

Sua voz soava distante e fraca. Eu deduzia que, depois daquela gritaria,  já não lhe sobrava voz alguma.

-Você está bem? – Eu tentei transmitir calma.

-Acho que sim...Eu...Eu não quero ficar aqui.

Um silêncio constrangedor instalou-se. Eu podia ouvi-la fungando. Precisava distrai-la, não queria que chorasse ou continuasse com aqueles barulhos infernais.

Estranhamente a tristeza que sentia se esvaiu, dando lugar à preocupação. Repentinamente já não importava mais se eu estava bem, só queria que se acalmasse.

-Eu vi a sua pintura, ficou mesmo muito boa. –Busquei rapidamente qualquer assunto em minha cabeça para distrai-la.

-É o meu namorado.

Tomei um susto ao ouvir isso. Aquela figura no quadro parecia totalmente absurda e sombria. Jamais imaginaria que alguém daquele jeito existisse de verdade.

-Ah... E sente falta dele?

-Muita. Quando coisas ruins como essa acontecem, é sempre ele quem me ajuda...

Como eu deveria responder àquilo?

-Logo é o dia das visitas, acha que ele vem te ver?

-Ele prometeu. -Suspirou.

E, mais uma vez, se fez silêncio. Mas, felizmente, ela o quebrou:

-Eu ainda não entendo muito bem como as coisas funcionam por aqui. É confuso.

-Na verdade não... Nós dormimos, comemos, às terças vamos à sala de artes recreativas e, uma ou duas vezes por semana, temos consulta com o Dr. José Renato. Não quebre essa rotina e tudo ficará bem.

-Nunca estive num lugar assim antes.

-Com o tempo você se acostuma, passa ver o lado bom das coisas...Ou tenta.

-Eu estou com medo.

E foi então que percebi que não havia uma serial killer do outro lado da parede, mas sim uma garota de dezesseis anos assustada e confusa. Como poderia alguém assim ter matado tanta gente?

Bom, talvez eu mesmo soubesse a resposta, só não quisesse admitir.

-*-*-

Oi povo lindo, tudo bom?

Gostaram dessa primeira interação entre os dois? Acho que, fora a dança na sala de artes recreativas, foi a primeira vez que conversaram.

O que estam achando da Rafa? Até que ela é boazinha, né? Hehe, não se iludam muito não.

DevaneiosWhere stories live. Discover now