Capítulo 2 - Raio de Felicidade

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E lá estava ela,apoiando a cabeça nas mãos, parecendo tranquila e ao mesmo tempo deslocada. Encarava as flores lá fora como se assistisse a um interessante filme de romance. Estava estranhamente calma, talvez ainda sob o efeito de sedativos.

Desviei olhar e voltei a morder meu pão com manteiga.

Logo que acabei de comer fui até uma das estantes de livros e voltei a ler "Neuromancer" como fazia sempre naquele horário.

Eu já havia lido aquele livro quatro vezes, mas sempre o recomeçava apenas para não perder o hábito. Afinal, se você muda de livro hoje, amanhã pode mudar de comportamento, de vida, de personalidade, de consciência.

Em poucos minutos eu fui interrompido por Eduardo, que acomodava-se ao meu lado no sofá.

-O que você achou da novata, esquentado?

Ele me apelidara assim durante minha primeira semana no São Gabriel, quando eu ainda estava me acostumando e acabei perdendo o controle várias vezes. Os episódios eram até engraçados: Eu ficava ora deprimido,esmurrando as paredes,ora totalmente eufórico, sem conseguir parar no meu lugar.

-Eu não falei com ela, e o senhor?

-Não falei e nem quero. - Ele disse, fingindo um arrepio.

Eduardo era um senhor de pele branca e olhos claros. Os poucos cabelos que ainda tinha eram grisalhos e a história que contavam sobre ele era que, ao ser mandado para casa mais cedo da segunda guerra mundial devido aos problemas de saúde, chegara e encontrara a família morta. Depois de diagnosticado com depressão reativa, não demorou para cometer homicídio qualificado e ser condenado a passar vinte anos aqui.

-Ué, o que se passa?- Estranhei o comportamento dele referente à recém-chegada.

-Você não ficou sabendo? Ela estava sendo procurada no estado inteiro.

-Mas todos os internos são assassinos...Esse é o propósito do São Gabriel, não?

-Sim, mas...Essa aí parece realmente perigosa. Eu li os jornais! Ela estava foragida desde os quatorze anos e já matou quatro pessoas brutalmente, sendo que todas elas estavam ligadas ao colégio onde ela estudava.- Arregalou os olhos azuis e balançou a cabeça para cima e para baixo.- Eles a deviam ter mandado para a cadeia!

-Acho que você está sendo influenciado...Se tivesse de ser mandada para a cadeia, ela teria sido mandada. É simples.

-Garoto inocente! - Forçou uma risada - Ela vem de uma família rica, esse povo faz o que quer e quando quer. Não deve ter custado muito livrar a filha dessa...Não, não para os Garcia.

-Você não acha que está exagerando?

-Sabe o que eu acho? Que ela veio para transformar esse lugar num inferno! Só está quieta assim por enquanto, para que nos aproximemos dela...Ela acha que me engana. Abre esse olho, esquentado, abre esse olho!

Dei de ombros enquanto ele se afastava, voltando minha atenção ao livro.

Eu não queria tirar conclusões precipitadas sobre a novata, mas admito que Eduardo conseguiu me assustar um pouco.

-*-*-

Depois do café da manhã fomos para a sala de artes recreativas, como fazíamos sempre às terças.

Era um lugar claro, com as paredes coloridas e cavaletes e instrumentos espalhados por todos os cantos. Haviam potes de tinta empilhados, fitas coloridas no chão e cola sobre as mesas. Tínhamos tudo que precisávamos para criar trabalhos artísticos e deixar a imaginação fluir, exceto tesouras.

Dona Bernadette pegou o tricô, Eduardo sentou-se perto da janela e eu fui de encontro ao violão.

Até hoje acho que aquela sala tinha algo de especial. Todos ficavam mais felizes ali dentro, fazendo o quer que fosse.

Já estávamos todos entretidos quando Rafaela chegou, desfilando com olhos cansados, parecendo não prestar atenção enquanto Ana lhe explicava como tudo funcionava.

-Então, você pode escolher o que quer fazer aqui durante uma hora toda terça.

A enfermeira sorriu para a garota e piscou os olhos negros, como se perguntasse se ela havia entendido. Sem obter uma resposta, se virou para nós e perguntou:

-Como estão hoje, pessoal? Eu tinha combinado alguma coisa com vocês na semana passada, né? O que era mesmo...?

-Você disse que o garoto ia tocar alguma coisa. - Eduardo lembrou.

-Oh, verdade! Tudo pronto,Leo?

Eu assenti enquanto me sentava numa das cadeiras de frente para todo mundo, com o violão a tiracolo.

Enquanto isso Rafaela passeava por entre as mesas, parecendo confusa. Parou em frente a um cavalete e encarou a tela em branco. Depois andou buscando tintas, pincéis e lápis. Parecia atarefada carregando tudo aquilo nos braços, sem dizer uma palavra sequer.

Passei o dedo pelas cordas, fazendo a introdução e respirando fundo. Eu amava cantar, era um raio de felicidade naquela escuridão em que eu me encontrava dia após dia.

Todos balançavam a cabeça no ritmo da música, sussurrando a letra. Podia chutar que sentiam-se compreendidos e reconfortados como eu. Provavelmente a letra tinha significados completamente diferentes para cada um de nós, mas essa era a melhor parte.

Até Rafaela cantarolava baixinho enquanto pintava concentradamente.

De olhos fechados, eu podia imaginar que eu não cantava para meia duzia de loucos, que estávamos entre pessoas normais, tocando uma música normal. Eu me lembrava de ter tido alguns momentos assim antes de fazer tudo o que fiz e ir parar no manicômio.

Passeei pela sala com o violão nos braços, girei Bernadette numa pirueta - fazendo-a dar uma risada constrangida que só as velhinhas sabem dar- e espiei a pintura da loira.

Era um homem com o rosto quase completamente escondido por um capuz roxo e preto. Tinha um ar sombrio e expressões frias. Ele parecia encarar Rafaela enquanto ela retocava seus olhos. Ela parecia muito determinada e, devo confessar, havia ficado muito bonito.

Mesmo assim me acompanhou sorrindo e dançou ao som da música, feliz. Bateu palmas, riu e acabou me sujando com tinta preta. Toda aquela aura ruim que ela possuía alguns minutos atrás havia ido para o espaço, substituída por sua expressão de alegria.

Talvez fosse a música ou a energia especial que aquela sala tinha, mas aquela foi a primeira vez que vi Rafaela descontraída desde que chegara.

Ao longo das outras semanas ela terminou a tal pintura e Ana a ajudou a expô-la na numa das paredes da sala, onde está até hoje.

-*-*-

Oi pessoas lindas que eu amo!
O que acharam desse capítulo TÃO FOFINHO? :3 E qual música vocês imaginam o Leo tocando? Comentem que eu quero muito saber.
Ah, e digam o que vocês fariam na sala de artes recreativas se estivessem no São Gabriel...Seus louquinhos. <3

⭐ Volto no domingo! ⭐

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