10. Farta

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- Provavelmente devia estar mais preocupada… - Murmurei, deitada na minha cama. – Mas parece que não consigo ter outra coisa na cabeça que não seja ele.

O meu teste de Filosofia não tinha corrido assim tão bem e embora, não esperasse uma negativa, sabia que a positiva seria baixa. O mesmo iria acontecer com Português se continuasse com aqueles pensamentos na minha cabeça. As minhas notas costumavam ser medianas. Não era à rasca, mas também nada de excecional. Porém, se continuasse a atirar os livros para o lado, sabia que isso iria mudar.

No entanto, isso não me preocupava naquele momento. Em mente, só tinha uma coisa. Não sabia quando iria vê-lo, dado que trabalhava e marcava alguns ensaios com a banda durante a semana para atuarem na sexta e no fim-de-semana em alguns bares. O local variava com frequência, mas a exigência era sempre a mesma. Encher o local e arrancar uma boa noite de lucros. No meio disso, entrariam os nossos encontros que ele assegurou-me que seriam todos os dias. Como? Não fazia ideia, mas mal podia esperar por uma mensagem sua por isso, quando o aparelho vibrou ao meu lado, quase saltei. Peguei rapidamente e para minha desilusão era apenas a Kiara.

“Olá miúda, que tal esse estudo? Ouve, preciso falar contigo. Posso ligar-te agora sem stresse de haver os teus pais por perto?”. Respondi positivamente e pouco depois, atendi a sua chamada.

- E esse estudo?

- Pouco produtivo. – Respondi honestamente, deitando-me na cama.

- Enquanto estavas no quadro na aula de inglês… Lembras-te do exercício de revisão?

- Sim. – Confirmei.

- As cobras vão lixar-te se não tiveres cuidado.

- Como assim? – Indaguei sem perceber. – Depois do que se passou ontem, até fiquei surpreendida como hoje só me olhavam de cima abaixo, mas fora isso nem disseram nada.

- Pois, mas hoje ouvi várias vezes o teu nome nas conversas delas. Queria ter-te dito logo alguma coisa no fim das aulas, mas saíste disparada da aula.

Sim, pensava que a mensagem do Vasco que não lera durante a aula, dizia algo sobre encontrá-lo no cais outra vez. Porém, não era nada disso. Quando finalmente li o conteúdo da mensagem, esta dizia que não esperasse por ele no cais porque ia estar a trabalhar, mas que nos veríamos depois.

- Estava com pressa para chegar a casa. Tenho muita coisa para estudar. – Era parcialmente mentira. Tinha bastante coisa para estudar, mas essa não parecia ser a prioridade do meu cérebro.

- Seja como for, elas não são do tipo que esquecem uma pessoa quando começam a implicar com elas. Mesmo que só as tenha conhecido durante um ano, eu vi-as atormentar algumas miúdas o ano inteiro só porque era divertido.

- E tu ficaste a ver? – Perguntei secamente.

- O quê?

- Continuaste amiga delas na mesma, não é assim? – Tive medo que a minha voz começasse a tremer a qualquer momento, mas continuei. – Só depois da cena que fizeram comigo é que as deixaste de parte. Mas essas outras raparigas de que falaste, se calhar eram como eu. Não mereciam.

- Nunca fiz lhes fiz mal! Estás parva? Como é que podes dizer estas coisas?

- Mas também não fizeste nada para ajudar, o que é tão mau ou pior do que ter feito alguma coisa. – A minha voz tremeu no final.

- Ligo-te preocupada contigo e tu vens com estas merdas… Ok. Fica bem. – E desligou.

A mão que segurava o telemóvel tremia. A minha garganta secara, mas tinha falado a primeira coisa que me tinha vindo à cabeça. Não queria falar da Sandra ou da Júlia. Queria afastar qualquer memória que tivesse delas e no entanto, elas ou alguém sempre me lembrava da sua existência. Isso irritava-me e aquela conversa, recordara-me a tarde passada na companhia do Vasco. Ele também tinha feito um comentário acerca da passividade da Kiara que devia ter visto injustiças antes, mas só agira comigo. Ele tinha falado que ela não era assim tão diferente de todos os outros que viram e ignoraram. Afinal, ignorar o sofrimento alheio é sempre mais fácil. A ideia do “não tem nada a ver comigo” instala-se na mente das pessoas e como não contribuem para humilhação, pensam que podem afastar-se consciência tranquila. Poucos se lembram a famosa frase “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas sim o silêncio dos bons” de Martin Luther King.

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