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By romncexkarl

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By romncexkarl

Lucas me deixa na porta de casa com um beijo no rosto. Subo até meu quarto e tiro a regata com dificuldade, pois minha pele já arde devido à queimadura de sol. Visto uma camiseta qualquer e prendo os cabelos em um rabo de cavalo malfeito. Na minha mente martela: ele é apenas um jardineiro.

Um profissional. Não há nada com o que se preocupar. Tento acreditar em mim mesma.
Desço até a cozinha, abro a geladeira e tateio em busca de uma garrafa.

Sirvo um copo com limonada, deixando transbordar um pouco, e me sento no sofá da sala.

Espero. E espero mais um pouco. Quem foi o gênio que inventou a espera?

A casa toda está em silêncio e, pela primeira vez, isso não me incomoda. A ausência de qualquer som é tão colossal que, quando dou um gole na limonada, posso escutar o líquido descendo pela garganta. Penso em ligar a tevê apenas para ter o som como companhia, mas, enquanto decido, a campainha toca.

Fecho os olhos e me levanto, largando o copo na mesa de centro em frente ao sofá.

Ok, Camila. Aqui começa a sua vida de garota independente.

Caminho até a porta, respirando fundo antes de abrir.

— Boa tarde — cumprimenta a voz masculina.

Mamãe tinha avisado que se tratava de um rapaz, porém eu ainda esperava que talvez pudesse aparecer uma senhora de uns 70 anos, usando chapéu e com uma cesta de vime nas mãos, com algumas mudas dentro. Eu sei... me iludir é o meu hobby predileto.

— Boa tarde — falo, olhando para o chão na tentativa de esconder logo de cara a minha dificuldade em reconhecer seu rosto. — O jardim fica lá nos fundos, é só seguir por este corredor e abrir a última porta.

— Muito obrigado.

Escuto o cara dar um passo para frente, cruzando a porta.

— É uma bonita casa...

— Obrigada, eu acho. Quer dizer... A minha mãe diria “obrigada”.

Levanto o olhar na direção dele, mas viro o rosto logo em seguida, olhando para o lado oposto. Dentro de mim, uma dúzia de calafrios percorre cada canto do meu corpo.

— Você precisa de alguma coisa? — pergunto.

Observo-o negando com a cabeça. Não consigo definir o formato do seu rosto, muito menos se aquele borrão embaixo é uma barba rala ou não.

Percebo que o cabelo é volumoso e tento desenhar na minha mente as ondas que aqueles fios formam.

— Será que você pode me acompanhar? — ele pergunta, fazendo eriçar os pelos de meu braço nu. — Apenas para trancar a porta do quintal.

— Como?

Não entendo de imediato.

— Você me tranca lá e eu fico trabalhando. Quando terminar, bato na porta e você abre — explica. — Não quero que pense que vou roubar alguma coisa da residência, muito menos me aproveitar da situação.

Posso sentir minhas bochechas ficarem vermelhas.

— Como você...?

O pouco da minha visão parece notar um sorriso nos lábios dele.

— Acho que a minha profissão exige que eu seja um pouco detalhista. E sensível, talvez... — ele fala meio sussurrando.

De certo modo, me sinto mais relaxada.

— Está tudo bem. Dizem que os jardineiros são fiéis, não? — Solto uma risadinha e ele me acompanha.

— Se você insiste...

Escuto mais um passo.

— Ei, posso contar com a sua ajuda? Sua mãe me deu liberdade para fazer o que quisesse, desde que o quintal de vocês ficasse bonito. Trouxe três variedades de flores. Quem sabe você pode me ajudar a escolher qual gosta mais.

Ele fala rápido demais e está agitado. Porém, sua voz também é suave e graciosa. Cerro os dentes.

— Eu não acho que posso ajudar... — falo baixo. — Eu não... conheço... as flores.

Tento de tudo para não deixar em evidência o fato de que é impossível eu saber qual é a mais bonita. A última vez que vi uma flor na minha vida eu tinha menos de 7 anos.

— E por que não? — ele quer saber, insistindo. — Vamos... é só sentir o aroma!

Aquela frase me atinge em cheio. Na minha cabeça, a única forma de diferenciar uma flor da outra seria olhando para elas. Porém, o jardineiro me apresenta uma segunda opção, muito mais agradável e, por sinal, sensível.

— Tome, pegue esta.

Sinto sua mão pegando a minha e colocando uma flor sobre ela.

— Cheire. É um lírio.

Levo a flor até o nariz. O aroma é agradavelmente delicado.

— Gosta?

Concordo com a cabeça, ainda assustada.

— Essa outra se chama frésia, da família das Iridáceas.

Troco pela flor que tenho nas mãos. Esta, em especial, exala um cheiro doce.

— E, por fim, trouxe rosas.

— Não — rejeito de imediato. — São muito comuns.

— Boa observação, garota. E então, já temos uma escolha?

Seguro as flores, uma em cada mão. Cheiro-as novamente.

— Se você preferir, também posso misturar as duas.

— Acho que não. Gostei dessa de nome estranho.

— A frésia? É a minha preferida.

Sorrio.

— Certo, vou começar a trabalhar. Última porta do corredor?

— Eu acompanho você — falo, mudando de ideia. A não ser que ele seja uma pessoa muito esperta, a primeira impressão é de que ele é um cara amigável e pacífico.

Caminhamos pelo longo corredor. Estico a mão para tocar na maçaneta da porta dos fundos e ele faz a mesma coisa. As nossas mãos se encontram, uma em cima da outra.

— Desculpe — ele diz.

Abro a porta e saio para os fundos. O sol toca minha pele novamente, queimando cada parte. Desta vez, despreparada, estou sem os meus óculos de sol.

— Bem, é isto... — Aponto para o quintal.

— Não está tão mal.

— Sério?

— Ok, mentira. Está bem ruim mesmo.

— Se você diz, eu acredito. – É o que tenho que fazer na maioria das vezes:
acreditar no que as pessoas dizem.

— Tem certeza de que não precisa de nada?

— Não, está tudo bem.

Fico parada, com as mãos nos bolsos do meu short jeans. Após alguns segundos, dou um passo para trás.

— Bem, vou entrar. Se você precisar de alguma coisa...

— Eu bato na porta.

— Ou você pode me chamar... meu nome é Camila.

Sorrio sem mostrar os dentes.

— E quem é Delia?

Fico perdida por uns segundos, até me lembrar que atrás de mim uma placa de madeira está fixada na parede com os dizeres “Jardim da Delia”. Vovó a pendurou para que lembrássemos que ali era o seu lugar favorito.

— Minha avó. Ela faleceu há alguns meses e simplesmente amava este lugar.

— Eu sinto muito... O nome dela se parece com Dália — ele observa. — É uma outra flor.

Volto a sorrir do meu jeito tímido.

— Obrigada.

Dou alguns passos para trás, deixando de enxergar a sombra de seu rosto.

Entro em casa novamente, indo até a cozinha para pegar um novo copo de limonada. O líquido estupidamente gelado entra em choque com o meu corpo aquecido. Durante um ou dois minutos, me recordo do jeito que o jardineiro me apresentou às flores.

Certo... penso nele mais do que por um ou dois minutos. Bem mais... E, enquanto penso, percebo que a visita daquele estranho não é tão ruim assim.

Eu estou bem.

Vou até meu quarto, pego um livro, meus óculos fundo de garrafa (que eu faço questão de usar somente para leitura) e minha lupa.

Sento na escada perto da porta dos fundos e encontro a página marcada para leitura. As letras em tamanho gigante, aumentadas pela lupa, são suficientes para que, com o auxílio dos óculos, eu consiga ler. Obviamente demoro bastante para chegar ao fim de cada página, mas não me permito ficar longe dos livros apenas por ser uma tarefa difícil.

Antes de começar a ler, paro para pensar que talvez eu não tenha me certificado o suficiente sobre o jardineiro ser, de fato, o cara contratado pela minha mãe. Mas... quem mais bateria na porta carregando flores?

Deixo a neurose de lado e tento ler as primeiras palavras da página. Pela fresta da janela da sala, uma leve brisa solta uma mecha que escapa do rabo de cavalo. Enquanto a ajeito, tento me lembrar do rosto dele, e pareço, por um ou dois segundos, velejar nas ondas do seu cabelo.

Preciso parar de pensar nele.

Pela intensidade da luz ofuscante, posso perceber que o entardecer se aproxima. E o pôr do sol penetra pelas janelas da casa, espalhando-se pelos corredores. Quando o final do capítulo que estou lendo se aproxima, decido sair de casa para verificar como estão as coisas. O jardineiro aparece do meu lado.

— Hum, Charles Dickens. — Aponta ele, olhando para o livro.

— É...

— Não gostei muito de Casa Abandonada. Experimente ler Grandes esperanças depois. Foi escrito durante a Era Vitoriana, e acho que Dickens estava mais inspirado.

— Você... lê? — faço a pior das perguntas. — Quer dizer... você gosta de Charles Dickens?

— Não sei se é o meu preferido, mas está perto de ser.

Não respondo. Na verdade, não sei direito o que pensar. Não estou muito acostumada a conversar com estranhos. Geralmente, minhas conversas são com Lucas, meus pais, e algumas poucas amigas. E não tenho o costume de falar sobre os meus livros com ninguém.

— É o seguinte... não deu para terminar o trabalho. Acho que vou precisar de mais alguns dias. Desculpe a indelicadeza, mas o quintal de vocês estava uma desgraça. Fazia tempo que ninguém cuidava do jardim. Eu ainda nem comecei a plantar as mudas e as sementes.

Droga.

— Tudo bem. Como você quer fazer?

— Volto amanhã no mesmo horário. Pode ser?

Concordo com a cabeça e forço um sorriso. Fecho o livro e, de repente, quero manter o jardineiro por perto e evitar que eu afunde no silêncio outra vez.

— Não perguntei o seu nome ainda — puxo conversa quando percebo que ele se afasta. — E minha mãe também não me disse, quando avisou que você viria... ela costuma ter a memória fraca.

Ele solta um risinho e me pergunto se, sem intenção, fui engraçada. Talvez ele esteja rindo de alguma outra coisa que não posso ver.

— Meu nome é Shawn.

Sorrio.

— Obrigada por trazer de volta o nosso jardim.

Ele está parado na minha frente, o jeans rasgado e sujo de terra – posso ver com a minha bendita visão periférica.

— Obrigado por trazer de volta a minha vontade de reler Dickens — ele responde.

~~~

A manhã de domingo chega depressa, e assim que acordo me sinto um desastre. Meus olhos pesam por ter dormido pouco e meus ossos doem pela quantidade de vezes que me virei na cama durante a noite. Eu poderia dizer que acordei no meio da madrugada, assustada por ter sonhado outra vez com o mesmo cara, porém nem sei se cheguei a dormir.

Dessa vez, não foram necessárias tantas noites para que ele voltasse a aparecer em meus sonhos. Eu consigo senti-lo, como se ele estivesse perto de mim. Mesmo sem saber seu nome ou paradeiro, de alguma forma, ele já faz parte de mim.

Mais tarde, Lucas chega para me fazer companhia. Estamos sentados no telhado de casa, próximos da janela do meu quarto. Nunca gostei de coisas fáceis, e sempre acreditei que alguém que vive constantemente sem desafiar-se não detém muito crédito. Acho que é por isso que, de todos os lugares da casa, o meu favorito é o mais complicado.

Compartilhei meu lugar preferido com Lucas quando ainda éramos crianças, e ele veio morar a umas cinco quadras da minha casa. Nos tornamos melhores amigos imediatamente, talvez porque eu o tenha atropelado com meus patins. Naquela época minha visão ainda era perfeita, mas não vi quando Lucas cruzou meu caminho com seu skate, e o resto é só uma longa história que envolve machucados e pais desesperados por pouca coisa.

— Onde você conseguiu todos esses livros?

Estou passando a mão pela pilha de exemplares que ele deixou no batente da janela atrás de nós.

— Ah, eu meio que conheço a nova atendente da biblioteca pública...

— Você a beijou, na verdade.

— É obvio.

Escuto-o folhear algumas páginas, até que encontra algo que parece agradá-lo.

Como você imagina... a Muralha da China.

— Sério? Essa é fácil demais... — Olho para o horizonte e penso no lugar. — Um grande muro sem fim, talvez com uns três metros de altura?

Lucas ri.

— Três metros de altura, Mila? Isso é o tamanho do muro da minha casa.

— Tá, tá... Uns quinze então.

— Não exagera!

Desisto.

— Você está com uma imaginação muito ruim hoje, hein? A Muralha da China tem quase oito metros de altura.

— É a metade das duas alturas que eu falei!

— Cinco pontos nessa rodada. E são pontos de consolação.

Pego um dos livros atrás de mim e percebo que ele está em braile. Aprendi a ler de maneira codificada quando entendi que é muito mais rápido do que usar a lupa, apesar de eu preferir tentar enxergar as letras como elas verdadeiramente são. Passo com rapidez as páginas do livro recheadas com pontos turísticos de vários lugares e acabo parando do outro lado do mundo.

— Como você imagina a Cidade Proibida, em Pequim? — pergunto.

— Humm... um monte de casinhas e personagens de mangá comendo temaki?

Viro o rosto para o Lucas.

— Você é muito pior do que eu! — Começo a rir. — Vou te dar uma chance. Como você imagina os elevadores na China?

Sei perfeitamente que ele não faz ideia do que estou falando.

— Bom, os elevadores de lá devem andar a 200 quilômetros por minuto e provavelmente adivinham o andar que você quer ir, sem precisar apertar botão algum.

— Ah, claro, e eles também são redondos.

— É sério?

— Claro que não! — Bato com o livro fechado no ombro dele, rindo da sua cara. — Os elevadores são iguais aos daqui, ok? Têm botões e o mesmo formato. A diferença é que a maioria não tem andares com o número quatro.

— Como assim?

— O quarto andar, o décimo quarto, o vigésimo quarto... simplesmente não existem. Ninguém gosta muito do número 4 por lá. O som da palavra “quatro” é bem parecido com o som da palavra “morte”, na língua deles. E eles são bastante supersticiosos.

Lucas suspira do meu lado.

— Alguém já contou para eles que mesmo não colocando o botão de quarto andar, o quinto andar ainda é, automaticamente, o quarto andar?

— Deixa de ser chato. Eles só têm... medo, eu acho.

— Medo do quê?

— Da morte.

Meu melhor amigo ri. Permaneço com o livro nas mãos, e naquele instante tento dar um significado para a morte.

— Viver com medo da morte é como não viver — ele teoriza.

— Acho que as pessoas não têm medo da morte em si — dou a minha versão. — Elas têm medo de se afastar das pessoas que gostam, de perder tudo aquilo que levaram a vida toda para conquistar.

Silêncio.

— Você está certa, Mila. A morte mata o sentido da vida. É disso que as pessoas têm medo...

— De que elas deixem de encontrar o sentido das coisas?

— Pior... as pessoas têm medo de deixar de encontrar o sentido da vida.

~~~

No início da tarde, a campainha toca e abro a porta para o Shawn, desta vez sinto minhas bochechas corarem. Ele entra e vai direto para o quintal. No fundo estou feliz pelo pai do Lucas ter telefonado, pedindo para ele ir embora.

Algo em mim acha que não seria uma boa ideia o Lucas ficar para ver que estou conversando com um completo estranho.

Durante uma hora, fico andando pela casa, impaciente, procurando qualquer coisa para fazer. Então, uso um copo de limonada como desculpa para ir até ele.

— Shawn?

— Ei, Camila!

Gosto quando ele diz meu nome.

— Eu trouxe... — Estico o copo.

— Ah... — A sua sombra aparece por perto. — Não precisava se incomodar.

— Então... como andam as coisas?

Observo sua camisa amarrada na cintura. Shawn veste uma camiseta clara que, mesmo que eu não consiga ver, já acredito que esteja suja.

— As frésias vão ficar lindas por aqui. Acabei de preparar a terra, já retirei todas as plantas mortas e estou pronto para começar.

— Você se importa se eu ficar aqui? Não estou com vontade de ler hoje.

— Mas é claro que pode ficar! — Ouço alguns barulhos e percebo agitação. — Sente-se aqui.

Ele segura a minha mão e me oferece a cadeira de praia que sempre fica no nosso quintal. Sinto suas mãos bem-cuidadas, apesar do trabalho árduo que ele deve ter ao mexer em toda aquela terra.

— Obrigada.

Percebo-o se afastar.

— Como está o livro, Camila?

— Não li mais depois que você foi embora ontem.

— Não me diga que eu acabei com o seu fanatismo por Dickens?

Rio discretamente.

— É, talvez...

Antes mesmo de ele continuar a conversa, decido tomar a iniciativa:

— Quantos anos você tem, Shawn?

— Vinte e um.

— O quê?!

É a sua vez de rir. De algum jeito estranho, me sinto envolvida pelo som.

— Um pouco jovem, eu sei.

Demais, penso. Na minha cabeça, ele devia ter uns 30 e poucos anos.

— Trabalhar com o que se gosta é bom — ele engata outro assunto. — E trabalhar com transformação é algo inspirador. Sabe, quando cheguei aqui este jardim estava bem ruim mesmo. É meio que minha obrigação só ir embora quando tudo estiver impecável.

Concordo com a cabeça.

— Você faz o estilo perfeccionista?

— No trabalho, sim. Não tem como não ser.

Permanecemos uns minutos em silêncio. Posso escutar o som da vizinhança e do trabalho dele na minha frente. Alguma sensação estranha ronda meu peito.

Apesar de não saber defini-la exatamente, sei o que me incomoda.

— Chamam de “Stargardt” —quebro o silêncio.

Ainda que tudo esteja parcialmente embaçado, consigo perceber quando Alex larga os seus objetos de trabalho.

— Desculpe, não entendi...

— A minha doença — complemento. — O nome dela é “Stargardt”.

Se existe algo interessante em se ter baixa visão, é o fato de todos os outros órgãos dos sentidos ficarem mais aguçados. Eu simplesmente sei quando Shawn se aproxima, mesmo não enxergando tudo.

— Camila, por que você está me contando isso?

Dou de ombros.

— Sinto a mesma coisa sempre que conheço alguém. É como se as pessoas quisessem saber exatamente o que eu tenho. Como se eu pudesse escutar todos os seus pensamentos... “O que será que aconteceu com ela? Ela não me enxerga nem um pouco? Isso é para sempre?” — digo, gesticulando no ar.

Shawn senta do meu lado e viro o rosto para ele.

— É como se todos quisessem saber e ninguém tivesse coragem de perguntar.

— Bem, eu não estava pensando nisso — ele afirma.

— Eu sei.

Se eu pudesse ver com precisão, diria que ele está sorrindo.

— E como você sabe?

Encho os pulmões e solto as palavras junto com o ar:

— Você foi uma das únicas pessoas que não ficaram passando a mão na frente dos meus olhos, testando se eu consigo ou não enxergar.

— As pessoas fazem isso mesmo?

É a minha vez de rir.

— Pessoas podem ser malvadas — digo.

— Concordo com você, além de malvadas, muitas pessoas são cegas, e outras só se recusam a ver...

Silêncio.

— Eu posso pedir uma explicação para essa frase?

Shawn se agita mais uma vez ao meu lado e posso sentir isso do mesmo modo que sinto o sol esquentando a minha pele.

— O mundo é cego. Ninguém se importa com a história dos outros. Somos todos videntes para aquilo que nos importa e só isso.

Ele coloca algo nas minhas mãos.

— É uma folha... — explica. — E muitas pessoas a veem apenas como uma folha. Ninguém está preocupado em saber de onde ela caiu, de onde se desprendeu ou fazia parte. Ninguém repara na estrutura da folha e se ela traz algum benefício. Para a maioria das pessoas, é só uma folha.

Por um segundo ou dois, agradeço mentalmente a minha mãe por ter contratado aquele cara. Ele diz:

— E também tem aquela parcela de pessoas que se recusa a enxergar como o outro realmente é.

— O que você quer dizer? — pergunto, mas fico com medo da resposta.

— Nunca falaram nada sobre os seus olhos?

— Bom... — Rio, ligeiramente nervosa. — Já me falaram muitas coisas sobre a minha ce...

— Camila, não. Estou falando sobre os seus olhos. Eles são lindos...

— Mas... — Tento engatar qualquer desculpa para disfarçar a timidez. — Os meus olhos são castanhos...

— Qual é o problema com os olhos castanhos? Por que só os olhos verdes e azuis podem ser notados? Os seus olhos são chocolate. E você já conheceu alguém que não gosta de chocolate?

E então eu sorrio.

~~~

Obviamente, Shawn e eu falamos sobre coisas banais, desde o clima até a nossa playlist favorita no Spotify, mas, aos poucos, nossas conversas tomaram outro rumo e acabamos concordando sobre diversos assuntos. E não sei bem explicar o porquê, mas isso me deixa muito feliz.

Nem sinto a tarde passar e permaneço sentada na mesma cadeira enquanto escuto Shawn trabalhando e conversando comigo. A única vez que saí do jardim foi para buscar meus óculos escuros que, segundo o médico, ajudam a retardar a minha doença.

Torço para o sol não se pôr, mas existem algumas coisas na vida que nós simplesmente não podemos evitar. No fim do dia, Shawn arrumou suas coisas e foi embora. Me despedi dele e minutos mais tarde a campainha tocou novamente.

— Eu trouxe pizza. Tá com fome?

Cerro um pouco os olhos para tentar enxergar Lucas segurando uma caixa de pizza enorme.

— É domingo e eu não dormi nada durante a noite passada, Lucas.

Posso sentir sua decepção. Então, dou dois passos para trás, permitindo que ele entre.

— Certo... estou indo embora.

Ouço a porta bater.

— Lucas!

A droga do silêncio me invade e percebo que nem sempre é uma boa ideia brincar com o meu melhor amigo. Lucas se ofende muito fácil. Engulo minha ignorância e caminho devagar até as escadas. Quando piso no segundo degrau, escuto aquela voz familiar:

— Você pensou mesmo que eu iria embora?

— Eu te odeio, Lucas. — Suspiro, relaxando meus ombros.

— Ah, deixa disso. Você está morrendo de fome que eu sei. E eu trouxe pizza. Logo... você me ama.

— Bem pouco...

Lucas agarra meu corpo leve com o seu braço esquerdo e me puxa da escada. Na outra mão, ele carrega a caixa de pizza. Sua força me impressiona há meses, e o tamanho de seus braços também. Lucas anda malhando nas horas livres (e isso quer dizer todo o tempo em que seu pai não o obriga a estar na loja de ferragens da família), e às vezes fica difícil identificar aquele garoto miúdo que eu conheci quando era criança.

— Você só faz isso para eu apalpar seu braço outra vez e constatar que a circunferência é maior que a minha cintura.

— Eu bem que estou precisando de alguns elogios. Você acha que malhar é fácil?

— É melhor desistir. Eu não elogio ninguém.

— Cara, como eu odeio capricornianos!

Sentamos no chão da sala, ao redor da mesa de centro, e escutamos música enquanto comemos. Lucas sempre foi um bom amigo nessa história de não se importar em deixar de assistir televisão para apenas ouvir o que as músicas têm a nos dizer. E é claro que nós teorizamos sobre todas elas. É uma abocanhada na pizza coberta de queijo seguida de um comentário.

Uma música começa a tocar no meu celular e eu cantarolo.

— O que é isso? — ele pergunta. — Música nova da Taylor Swift?

— Claro que não! Não tem nada a ver.

Observo com a visão periférica que Lucas pega o meu celular.

— Bom, para mim é tudo igual. Aliás... Mila, que playlists são essas? Eu acho que preciso apresentar músicas boas para você.

— Por que as suas músicas são boas e as minhas ruins?

— Porque as suas têm Taylor Swift e Katy Perry.

Reviro os olhos e bufo em desacordo.

— Chega, me dá meu celular!

— Não!

Largo a minha fatia de pizza sobre o prato na mesa e me jogo em cima dele, que desvia escondendo o celular.

— Lucas!

Escuto sua risada e acho graça da cena também. Ele me segura em seus braços fortes e as minhas chances de alcançar o celular se reduzem a zero.

Quando tento um último movimento, acabo derrubando Lucas no tapete da sala, e caio logo em seguida. Em cima dele...

Posso sentir sua respiração intensa e quente encostando em meu rosto. Com minhas mãos sobre o seu peito, sinto o ar entrando e saindo de seus pulmões.

O perfume dele está de volta: amadeirado, forte. Tão perto, posso vê-lo com mais detalhes. Lucas tem a pele clara como a minha e o rosto liso. Seus lábios são finos e eu jamais saberia dizer qual a cor dos seus olhos. Por último, observo o cabelo escuro e muito bem penteado.

— Aqui está o seu celular...

Lucas encosta o aparelho nas minhas mãos na mesma hora em que, rapidamente, tento me levantar. Invento qualquer coisa:

— Vou ao banheiro...

Anos de amizade são o suficiente para que Lucas saiba que estou apenas dando uma desculpa idiota.

— E eu vou embora, já está ficando tarde. Precisa de alguma coisa?

Nego com a cabeça, ainda envergonhada. Antes que eu perceba, Lucas se aproxima rapidamente e beija a minha bochecha.

— Vejo você amanhã...

O único som é o de seus passos, cada vez mais distante.

— Ei, Mila! — ele grita perto da porta.

Caminho até o corredor para que ele possa me ver.

— Não precisa ficar envergonhada. Só imagina: se a Taylor Swift estivesse aqui, nós teríamos acabado de dar matéria-prima para ela escrever uma música nova. A gente seria um sucesso.

Começo a rir, enquanto Lucas vai embora.

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