Garotas Rebeldes em Combustão

By emeemys

234K 33.1K 38.6K

Nina Avante tem um plano: até o fim do ano, ela vai revelar aos pais que não pretende continuar naquilo que e... More

1 - combustão
3 - colecionadora de ideias descartáveis
4 - super-homem
5 - beijos de festa são superestimados
6 - caixas de fósforos jogadas no chão
7 - uma banda chinfrim de garagem
8 - somos ou não garotas rebeldes?
9 - vermelho brilhante
10 - eu nem gosto de filmes tanto assim
11 - garotas hipócritas
12 - até o clark kent precisa dormir
13 - batons de baixa qualidade
14 - epifania
15 - as irmãs avante não bebem chá
16 - péssima em seguir roteiros
17 - terráquea fora da terra
18 - fogo tem tudo a ver com rebeldia
19 - precisamos de alguém no teclado
20 - se eu quebrar as regras
21 - videoclipe
22 - sintonia
23 - não sabemos dar autógrafos
24 - eu definitivamente beijaria frida tropelia
25 - ressaca moral
26 - garotas orgulhosas
27 - listas inacabadas
28 - velha laguna não tem lagos
29 - garotas mentirosas
30 - em mar aberto
31 - toda banda que se preze tem um comeback
32 - o maior show que essa cidade já viu
33 - pizza de quatro sabores
34 - garotas rebeldes

2 - ritual das noites de sexta

11.2K 1.2K 936
By emeemys

PRECISAR AJUDAR O irmãozinho da Iara num trabalho da escola foi a desculpa da vez, e eu subo as escadas do meu prédio deprimente com respostas já prontas bem na ponta da língua. Entro no apartamento 304 pouco antes do sol ir embora, mamãe sentada no banco do nosso piano de cauda enquanto assiste algum programa aleatório de TV. É óbvio que ela não parece confortável, mas sabe muito bem que não tem o direito de reclamar.

Meus pais decidiram vender o nosso sofá há uns cinco anos, porque não tínhamos espaço para mais um piano na casa, ainda mais para um de cauda. Realmente acharam que valia a pena espremê-lo na nossa sala de estar, como se a porcaria de um sofá não fosse nos fazer falta. Eu sou a única que tem coragem de admitir que isso foi um erro, e um dos grandes. Sinto muita falta do nosso sofá de três lugares, mesmo que eu ame a droga desse piano.

— É a terceira vez só essa semana que você chega tarde, Nina — reclama mamãe, desligando a TV e apoiando os cotovelos na tampa fechada do teclado. — Acho que precisa repensar se entrar na banda da escola foi uma boa ideia.

Faço uma careta, largando a mochila no chão e indo até a cozinha.

Aparecer com algumas mentiras foi necessário desde que comecei a trabalhar na Ardentia, já que mamãe nunca aceitaria uma filha focada em outra coisa que não seja sua futura carreira como pianista e tudo o mais. Eu bem lembro quando Carmela disse que iria arrumar um emprego nas férias na loja de discos em frente ao Ardentia, e papai ficou furioso, mesmo que ela fosse trabalhar com música de qualquer forma. Não quero nem imaginar caso eu precise um dia contar a eles que trabalho em uma locadora, porque eu gosto pra caramba de lá. Não estou disposta a abrir mão de um salário considerável e de todos os meus filmes alugados de graça.

Então, três meses atrás, cheguei em casa dizendo que tinha entrado na banda da escola, o que me permitiria treinar o piano todos os dias. Mesmo com uma cara feia, mamãe aceitou, o que até foi uma surpresa. O único problema é que, teoricamente, os ensaios só funcionam até as três da tarde, e meus pais sabem disso já que precisei trazer um panfleto falando da droga da banda estudantil. E certo que há dias em que eu saio mais cedo da Ardentia, mas há exceções como hoje. Me especializar em desculpas esfarrapadas acabou virando uma necessidade, mas sabe, até que sou boa nisso. Eu bem poderia dar umas aulas pro Seu Arlindo.

— Não é culpa da banda, mamãe — retruco, abrindo a geladeira e começando a preparar um sanduíche. — Mas o Cauê precisava de ajuda em português. Eu não ia dizer não.

— A Iara não podia ajudar sozinha?

Faço outra careta.

— Podia, mas como você sempre diz, duas cabeças pensam melhor do que uma. — Dou uma mordida no pão, torcendo pra que ela não continue insistindo nesse papo. — Qual é, mãe? O Cauê me vê como uma irmã e eu não tenho coragem de dizer não pra ele. E de qualquer forma, a Iara me deixou em casa. Eu tô viva, não tô?

A vejo revirar os olhos, permanecendo calada enquanto mantém a pose, sentada no banco desconfortável do piano que não substitui um sofá.

O papai brinca constantemente sobre o temperamento forte da mamãe. Há pessoas que se consideram oito ou oitenta, mas, como a gente costuma dizer, dona Ângela é oitenta e oito. Como o número de teclas de um piano, minha mãe é o extremo do extremo, e por mais que em algumas situações isso seja interessante, algumas vezes chega a ser um tanto chato.

Ela me mataria caso descobrisse o que faço todas as tardes.

Antes que mamãe tenha a chance de dizer alguma coisa, eu devoro o restante do sanduíche e busco a minha mochila, me trancando no meu quarto em seguida. Fins de tarde deprimentes pedem por ações deprimentes, então, com um suspiro longo, me jogo na cama e passo a encarar o teto pelo que parece horas. Vejo a noite enfim dar às caras, as sombras largas sumindo à medida que a luz que entra pela janela vai sumindo também.

O meu quarto está virado e eu tive a sorte de ainda não ser pega pela mamãe. Tem algumas roupas — limpas — espalhadas pelo chão, assim como algumas partituras antigas que precisei estudar sei lá há quanto tempo. A única parte consideravelmente no lugar é a minha escrivaninha, onde o meu caderno de roteiros está escondido na segunda gaveta. Sei que não é um esconderijo muito bom, longe disso, mas não é como se eu tivesse muitas opções. Ao menos se eu mantiver a mesa arrumada, meus pais não vão encontrá-lo. Espero.

Meu roteiro é só mais uma coisa na lista de passatempos-sem-importância para eles. É sempre a escola e as aulas de piano em primeiro lugar — ambas são igualmente importantes nessa droga de casa. Focar a minha atenção em qualquer outra coisa além disso é uma perda de tempo, para não dizer suicídio.

É por isso que faço tudo escondida.

E não é como se eu quisesse, mas, novamente, não tenho muitas opções.

Me forço a levantar quando uma brisa fria entra pela janela. Caminho até ela e a fecho, deixando apenas a cortina aberta para a pouca claridade da noite continuar entrando, e percebo que o meu vizinho de janela está com suas luzes acesas, lendo alguma coisa na cama. Queria muito saber que livro é.

Caminho de volta até a mochila, buscando o celular e meus fones de ouvido, e volto a me deitar com Lorde tocando no Spotify. Antes que alguém apareça à porta me chamando para o jantar, eu me permito fechar os olhos e tirar um cochilo pra lá de merecido.

Como todos aqui gostam de acreditar, fazer parte da banda estudantil parece me deixar bastante cansada.

A PIPOCA FRIA já faz parte do ritual das noites de sexta-feira, e não acho que estou muito disposta a mudar isso. Depois de me certificar que mamãe e papai dormiram, eu fecho a porta do meu quarto com cuidado e ligo a televisão velha, a pondo no mudo como de costume.

Todos os passos do ritual são sagrados e precisam ser executados com precisão. Espalhar as almofadas na cama, posicionar o balde de pipoca ao lado do copo de refrigerante e ligar o ventilador de teto — para a minha sorte, muito barulhento — fazem parte do ritual. Dar uma batida de leve na TV de tubo também. Ela só funciona perfeitamente depois que batem na tela, uma forma bizarra de acordá-la, o que eu considero fascinante. Ainda que eu amasse ter uma TV nova no meu quarto, gosto dessa e dos passos no ritual que ela traz, além de deixar todos os meus filmes com uma imagem envelhecida, como um filtro vintage do Instagram. Estilo.

Ligo o aparelho de DVD e ponho o filme escolhido da noite. A pipoca parece mais fria do que o normal, mas não me importo. Eu sempre a faço enquanto meus pais ou Carmela ainda estão acordados, porque tenho medo de ficar perambulando sozinha no apartamento depois que todos vão dormir. Talvez eu seja maluca por sustentar essa paranoia desde os meus doze anos, mas, mesmo agora aos dezessete, eu sei que tem algo de errado na minha casa, e o piano de calda que levou embora o nosso sofá com certeza tem culpa no cartório.

Droga. Acho que ver O Iluminado uma hora dessas não me ajuda muito a me livrar desses pensamentos idiotas.

Dou um gole no refrigerante antes de sentir o meu celular vibrar, ele escondido entre os meus lençóis bagunçados. O encontro perto das almofadas e leio a mensagem da Iara antes de desbloquear a tela:

acabei de sair da casa do juliano e adivinha o que ele me contou?

é sério que vai me contar fofocas do seu namorado uma hora dessas?, digito com uma mão só, enfiando uma porção de pipoca fria na minha boca.

sim, nina, porque você é a minha melhor amiga e preciso contar isso pra alguém!, ela responde, eu lendo sua mensagem devagar porque ainda tento manter a atenção no filme. acredita que aquela invejosa da daniela veio dar em cima do ju numa festa na semana passada?

Conversar com Iara não faz parte do ritual das noites de sexta, ainda que às vezes aconteça. Mas prefiro não pausar o filme. Já me arrisco o suficiente os assistindo no volume oito da TV velha, e não posso me dar ao luxo de prolongar ainda mais o meu tempo nele. Mamãe costuma acordar para usar o banheiro antes das três, e não devo estar com a televisão ligada. Seria um adeus definitivo ao meu ritual, e com certeza ao meu emprego.

Faço uma careta enquanto digito uma resposta, ainda que eu não esteja muito a fim de lidar com o drama da Iara essa hora da noite.

acho que você precisa parar de atacar a garota sem saber de toda a história. imagina se não foi o seu namorado que deu uma brecha, pra começo de conversa?

Ela visualiza e não responde, o que me faz largar o celular e voltar para a pipoca. Talvez eu esteja errada, mas atacar a imagem do Juliano sempre que posso é, ainda que não faça parte do ritual das noite de sextas, um evento tão importante quanto.

Acabo a pipoca antes da metade do filme, e preciso abaixar ainda mais o volume quando efeitos sonoros dramáticos, clássicos em filmes de terror, começam a tocar. Carmela dorme no quarto ao lado e não posso arriscar chamar a sua atenção. Ela me entregaria para o papai e a mamãe sem pensar duas vezes.

você fala como se não conhecesse a fama da dani, Iara responde depois de meia hora de vácuo, o que me faz revirar os olhos no mesmo instante antes de bloquear novamente o celular. Não vou responder a isso.

O filme acaba antes que eu perceba, me deixando um pouco bolada e sem vontade alguma de sair da cama, e só consigo pensar em como Lennon tem um puta bom gosto. Ainda que eu não o conheça, nunca o tenha visto e não faça ideia de quem ele seja. Mas, sabe, eu acredito que dá pra saber muito de uma pessoa conhecendo o seu gosto por filmes. E com esse garoto, não é diferente. Até hoje eu não vi uma de suas indicações que não tenha sido no mínimo boa pra caramba. E qual é? Qualquer um com esse nome já nasce imediatamente interessante. É nome de astro do rock. Simplesmente incrível.

Desligo a TV e ponho o balde de pipoca na mesa de cabeceira — óbvio que só levarei para a cozinha amanhã de manhã. Me ajeito melhor na cama e penso em filmes extraordinários, no meu roteiro escrito pela metade e em como eu preciso urgentemente terminá-lo. Penso no meu vizinho de janela e em como tenho que descobrir qual livro ele estava lendo. Penso na coitada da Daniela Albuquerque e em como ela não faz ideia de que se meteu em uma futura confusão com a Iara — por culpa total do Juliano. Penso até em Frida Tropelia e na sua bicicleta vermelha pegando fogo, e em como ela seria uma boa protagonista para um filme de ação. Frida, não a bicicleta. Se bem que até ela seria uma personagem interessante.

— Ei!

Escuto a voz atravessar o meu vidro e me levanto com um sorriso inevitável. Ainda que já passe das duas da manhã, não estou nem um pouco cansada. Abençoados sejam os cochilos rápidos antes do jantar.

— E aí, Lionel? — cumprimento meu vizinho, abrindo a minha janela e me apoiando no parapeito. — Já não devia tá dormindo?

— Tava terminando um livro incrível. Não consegui parar de ler.

Assim como minha amizade com a Iara, não sei como Lionel e eu acabamos amigos. Talvez porque nossas janelas ficam de frente uma para a outra e porque nos conhecemos desde sempre, mas sei lá. Acho que esse jeito fofo dele atrai todo mundo, então foi meio inevitável não me tornar amiga dele. E ainda que eu reclame que meu quarto é o único cômodo sem vista para o mar nesse apartamento, não é como se eu odiasse tanto assim compartilhar a vizinhança de janela com esse garoto. Sempre batemos uns bons papos, e isso é, tipo, o máximo.

— Qual foi o livro da vez?

— Dom Casmurro.

Solto uma risada.

— Acho muito fofo como você tá consumindo só agora todas as coisas que deveria ter consumido, sei lá, durante a vida inteira.

Ele faz uma careta, jogando alguns fios dos cabelos exageradamente ruivos para trás.

O piano do Lionel é a corrida. Por isso, assim como eu, ele também precisa dar uma de rebelde de vez em quando, o que na maior parte do tempo se resume a ler ou assistir alguns seriados escondido. Quando seu pai descobriu que ele sabia correr rápido, treinar pesado o filho único virou o seu principal objetivo, o que impossibilitou o meu vizinho de janela de aproveitar muitas coisas. Por exemplo, Lionel só chegou a assistir as três temporadas de Stranger Things no início desse ano, o que até pra mim foi um choque.

Mas bem, pelo menos ele sabe correr melhor do que eu.

— Não tenho culpa por não conhecer tanto da literatura brasileira quanto eu gostaria — ele diz, uma expressão aborrecida e ao mesmo tempo fofinha no rosto. — Mas e você? Já não devia tá na cama?

— Teoricamente, sim — respondo, sorrindo mostrando os dentes. — Mas sabe, acho que perde toda a graça se eu acordar às sete sem estar com sono. O cansaço precisa tá lá, entende? Faz parte da essência das manhãs de sábado.

— Aula de piano?

Assinto, soltando um suspiro.

— Para o meu desespero.

— Tenta dormir, então, Nina — ele sugere, sorrindo um pouco e deixando as suas covinhas fofas aparentes. — Prometo torcer pra acordar cansada, se isso for mesmo importante pra você.

— É sim, muito importante. Tipo, importante pra caramba. — Também sorrio, já com uma das mãos na minha cortina. — Boa noite, Lionel.

— Boa noite, Ninazinha.

Assisto meu vizinho de janela fechar sua persiana, e eu volto para a cama com os passos mais arrastados do mundo. Deito a cabeça no travesseiro sem um pingo de sono, meu corpo parecendo ter mais energia do que nunca.

Noites de insônia são uma droga, e quando essas noites em especifico são noites de sexta-feira, parece que tudo fica ainda pior. Porque amanhã é sábado e eu não pisarei na Ardentia Locadora. O que significa que estou presa em casa, aos meus pais, aos nossos cinco pianos e todas as aulas de música que me perseguem como os malditos fantasmas dessa casa. E eu não tô a fim de passar três horas na frente das oitenta e oito teclas, sentada naquele banco desconfortável que não substitui um sofá, tocando sei lá o que a Mulher-Oitenta-E-Oito, vulgo mamãe, me obrigue a tocar. Porque eu não sou como meus pais ou muito menos como a Carmela, ainda que por muito tempo eu tenha desejado ser. Só não sei como — ou quando — vou ter coragem de lhes dizer isso.

Aposto que esse é o tipo de problema que Lennon nunca teria. Seus progenitores devem ser o máximo, já que deram ao filho um nome como esse, original e com tanta personalidade. Ele deve escutar rock and roll o dia inteiro, acordar em um horário não-cruel aos sábados e ver todos os filmes alugados sem precisar escondê-los. E eu sei que posso tá soando como uma invejosa ingrata, mas não vou fingir que não sonho todos os dias em ter uma vida bem diferente da minha. Uma vida movida por rock and roll, horas de sono mais extensas e filmes alugados sem medo, por exemplo. Que baita sorte.

E droga, pensar nessas coisas deixa o meu cérebro ainda mais acordado, me fazendo desejar que amanhã seja qualquer outro dia, que não um maldito sábado. E pensar que preciso acordar cedo só me faz não conseguir dormir, de jeito nenhum.

Me movo na cama, jogando os lençóis por cima da minha cabeça quando ouço os passos no corredor, mamãe indo até o banheiro, sua espécie própria de ritual. Encaro o meu celular só pra ter certeza. Três da manhã, em ponto. Que porcaria.

Acho que sou a única adolescente na face da terra que torce com todas as forças para que a segunda-feira chegue logo.

Continue Reading

You'll Also Like

10.5K 781 35
Quem explica o amor? "Amor não se explica em palavras, ele é vivido em atitudes." O amor é inexplicável, da mesma forma que as estrelas que vagam pel...
46.6K 5.8K 46
Nicole tem uma paixão e ela se chama Mabel Fernandez. A guitarrista da banda mais falada da cidade, despertou sentimentos no coração fatigado da skat...
82.6K 4.8K 59
Você já imaginou ter duas vidas? Ser duas pessoas ao mesmo tempo? Aposto que sim. Mas entre pensar e viver havia uma distância muito grande, acredite...
1K 83 12
Nesta história de descendentes irei contar na versão que não seria aceita pela Disney,assuntos que não foram e nem seria abordados pela mesma, então...