Epitáfio×2×Lee

By KimLeah04

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A morte de Siyeon seria cruel, porque seria vivida em etapas. A principal delas, a morte de sua esperança, já... More

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Epílogo - Epitáfio

Recomeçar

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By KimLeah04

[Re. Co. Me. Çar. - verbo transitivo direto e transitivo indireto]

Começar de novo; refazer depois de interrupção; retomar.

_______,,_______

Acaricio a pasta de plástico em meu colo, meus dedos indo e voltando por suas elevações, brincando com o elástico. Puxo um pouco e então volto a me retrair. Deixo-a como está por um segundo ou dois, mas estou ansioso demais para não ceder à tentação de usar o simples objeto como passatempo, um distrator para o caminho de volta que me parece o dobro do percurso que nos levou ao hospital.

Dentro dela estão os papéis que podem mudar total e drasticamente tudo... alterar para sempre essa situação. Nunca antes para mim folhas impressas tiveram tanto significado, mas agora é como se elas fossem uma versão maior de tudo aquilo que eu um dia considerei importante; como se as almofadas de Van Gogh e os desenhos no teto do antigo quarto de Hee, minhas tintas de aquarela e texturas para cabelo, meu portfólio de desenhos e a manta fofa que tenho desde bebê - todas essas coisas se fundissem e dobrassem a sua influência sobre mim, na forma de folhas impressas de papel. Sorrio sozinho, dedilhando a superfície de plástico, lendo mais uma vez o cabeçalho da primeira página, visível para mim pela transparência do meio que as protege e abriga.

Hospital Geral de Seoul.
Divisão Médica Oncológica.
Seoul, 15 de fevereiro de 2019.

Do médico responsável, doutor Im Jeongin. Sobre a paciente Lee Siyeon, relativo à solicitação de testagem para a doação de medula óssea, pelo requerente Lee Taeyong...

Logo abaixo, uma descrição tão ou mais detalhada do que a me foi feita por Seonghwa, segundos depois de minha fala. É verdade que ele levou seus minutos para absorver as minhas palavras, mas não muito depois se moveu, sentando-se ao meu lado e chamando minha atenção para si com um pigarro baixinho; voltei-me para ele, novamente desviando os olhos para o chão, me mantendo atento no que dizia ao máximo que pude. Aparentemente, meus cinco minutos de coragem reunida tinham se esvaído, e o apelo irresistível que o piso branco polido exercicia sobre minha visão estava mais uma vez lá, cantando para mim como uma sereia da Odisséia. Eu odiava o livro, mas gostava de algumas pequenas coisas nele, aqui e ali. Como as sereias. Como o fato de que tudo acabava bem para Odisseu no final. Tudo sempre acabava bem nas histórias, isso as fazia serem melhores do que a realidade.

Seonghwa pareceu não saber bem como começar, e tiro essa dedução do fato de que ele estava cruzando e descruzando as mãos repetidas vezes, entrelaçando e relaxando os dedos, como se não soubesse o que falar. Faço muito isso. Na maioria dos casos, apenas desisto de construir uma linha de raciocínio e rezo para que as pessoas captem o sentido do que quero dizer, como elas repetidamente me obrigam a fazer sem ao menos perceberem. É tão exaustivo tentar adivinhar o que querem, quando elas não colocam as palavras certas em uma frase... penso que se todos fossem mais gramaticalmente corretos, diretos naquilo que desejam, então tudo se tornaria um pouco mais fácil para eu desvendar. Felizmente, nem Hwa nem Hongjoong pareciam muito dispostos a jogar adivinhações ou qualquer coisa do tipo, porque logo mais falaram, suas vozes vacilantes como se temendo uma reação negativa minha. Sou a pessoa mais pacífica que conheço. Mas eu não conheço bem muitas pessoas...

- Não é tão simples assim, Taeyong. - começou o mais velho, e embora eu não olhasse diretamente para o seu rosto sabia que ele estava olhando para mim. Seus olhos pesavam sobre meus ombros como pesos de uma tonelada. - Para começo de conversa, você precisa ser compatível com ela. Precisamos de compatibilidade total para assegurar que o organismo dela não rejeite a medula e isso acarrete problemas mais sérios... - sua voz tornou-se um tanto mais arrastada nesse ponto. Tristeza, talvez? Às vezes não consigo distinguir muito bem as emoções, também. Mas talvez fosse receio... medo...

- Para fazer o exame os médicos precisariam de autorização dos seus pais ou do seu tutor legal. - foi a vez de Hongjoong levar um pouco de água fresca para apagar a fogueira da minha animação. A palavra "pais" fez surgir uma bolha ácida em meu interior. Me causa ansiedade e desconforto pensar em ter de pedir algo aos meus progenitores, em especial algo de tal magnitude. Não reagiriam bem, no mínimo. Eles não gostam da maior parte de minhas ideias... mas convenhamos que essa era a mais importante, mais importante do que todas as outras. Eles não poderiam simplesmente recusar. - Testam o nível de compatibilidade entre vocês, e se houver correspondência suficiente então ambos serão encaminhados para a cirurgia.

Cirurgia...

Olhei de relance para Siyeon, a parede de vidro me permitindo acompanhar as linhas ascendentes e retas traçadas pelos aparelhos que monitoravam seus sinais vitais. Depois voltei-me para mim mesmo, para minhas mãos cobertas de pequenas, finas e pálidas cicatrizes. Pensei em como seria ter de passar por um novo processo de recuperação, em entrar novamente com um tubo de sedação preso à veia ou à garganta, estiletes e agulhas doloridas.

- Como é o transplante? - perguntei num fio de voz. Meus dedos se curvaram, o fantasma da queimação em meus nervos enviando um "olá" tímido para meu sistema nervoso central.

- Em outras situações seria um processo mais longo...  incluiria um pós operatório e um período à mais para que tudo fosse esclarecido entre as partes participantes. Mas como a Siyeon já está há algum tempo na fila para doação isso acaba se tornando um pouco menos complicado. - iniciou Seonghwa. Me mantive imóvel enquanto ele falava, não desviando um único décimo de minha atenção de suas palavras. - É um processo mais simples do que a maioria pode imaginar, principalmente quando o paciente já está em tratamento e a quimioterapia faz parte da rotina; os medicamentos utilizados tem a função, resumidamente, de destruir as células com problemas e minimizar sua quantidade no sistema circulatório da pessoa doente. Com o número de pontos afetados reduzido, tem-se um controle maior do quadro geral, evitando que a AML avance para órgãos vitais. Mas a quimioterapia sozinha algumas vezes não pode fazer muito no que toca ao combate efetivo da leucemia, e por isso o transplante é necessário; por lógica, é mais fácil encontrar um doador compatível entre os membros da família... a possibilidade de haver alguém com as características corretas entre irmãos e primos, por exemplo, chega à 25% - o que é muito se considerarmos a pouquíssima quantidade de pessoas que se dispõe a doar, nos bancos de medula óssea.

- Você tentou ser o doador? - a pergunta escorregou por meus lábios sem nenhuma maldade, mas me foi óbvio, mesmo com meu cérebro lerdo e inexperiente no que diz respeito à interpretações, que o mais velho ficou um pouco chateado enquanto proferia sua resposta. Encarava-o parcialmente, meus olhos focados sobre o espaço de pele entre seu lábio superior e o nariz, de modo que vi o movimento afirmativo de sua cabeça.

- Me prontifiquei no instante em que soube que ela precisaria de um transplante. Fiz os exames no mesmo dia, mas descobri que não sou compatível. O Hongjoong também fez, mas o resultado também foi negativo. - girou minimamente o rosto da direção do menor; o Kim assentiu devagar, sua mão pousada sobre o ombro do namorado. - Não há nenhuma pessoa em nossa família que possa ajudá-la, nem mesmo entre os amigos mais próximos e que se dispuseram a doar. Estamos na fila por um doador há quase um ano, mas até agora não surgiu ninguém.

- Seria um verdadeiro milagre se a pessoa da qual a Siginie precisa for você, Taeyong. - completou Hongjoong, a voz tingida com uma animação idêntica àquela que explodira em meu interior quando a resolução me atingira em cheio. Encarei o nada por um momento, minha mente com uma tela em branco, viajando no tempo para a fala de minha irmã, no primeiro sonho que tinha tido com a mesma, anos atrás.

"- Há pessoas que precisam de você, Yongie... Você vai descobrir isso... em breve..."

Era isso que ela queria dizer, quando justificara o fato de eu não poder ficar com ela, com Johnny, naquele momento? As pessoas que precisavam de mim... Tinha me perguntando uma centena de vezes quem seria louco o bastante para precisar da minha ajuda, logo eu, que nunca sabia o que fazer e quando fazer para mim mesmo e menos ainda quando precisava fazer por outra pessoa. Tinha criado pequenas expectativas ao conhecer Seulgi, e me questionara por um segundo se era ela a pessoa que precisava de mim. Mas olhando para os lados naquele momento, eu via o quão mais profunda era aquela necessidade.

Tomei coragem para erguer o rosto um pouquinho, as olheiras pálidas e não notadas antes ao redor dos olhos de Seonghwa fazendo-se mais claras para mim. Quantas noites ele havia passado em claro, aguardando por uma ligação do hospital avisando de uma doação compatível? Quantas vezes tinha se debruçado sobre uma cama de hospital para cuidar da irmã, sussurrar-lhe palavras de apoio e garantir que tudo ficaria bem, ainda que ele próprio não pudesse ter essa certeza? Quantas vezes tinha se desesperado, se culpado - como eu - de alguma coisa pela qual não era responsável?

E quanto à Hongjoong? Como eu poderia imaginar as vezes em que ele fora o ombro de apoio do mais velho, acolhera suas lágrimas de dor e de medo em meio ao destino incerto, abdicando dos momentos doces e melosos que se supunham estender-se como rotina à todos os casais, para prestar-lhe apoio em meio ao estado grave da irmã? Por quantas vezes teria sacrificado a si mesmo, ao relacionamento que tinham para que fosse dada a prioridade à Siyeon, muitas vezes mais necessitada de atenção e de cuidados? Por quantas vezes não pensara em terminar o namoro, apenas para não se ver tendo parte em algo que a priori não era da sua conta, mas agora inteferia tão profundamente em sua vida? Quanta força de vontade era necessária para abdicar a si próprio em favor de outros?

E Siyeon... doía-me o peito, o velho coração morto e oco de sentimentos, fantasmas de batimentos errando sua própria cadência enquanto eu cogitava... cogitava a dor da juventude perdida. Tivera eu um pouco disso, era fato, mas nada que se comparasse ao que ela vivenciava. Eu tinha visto a parte mais crua da morte, a direta, a precisa e que não permite despedidas. Ela a vivia diariamente, numa tortura sem fim e de começo desconhecido e impreciso, um vicioso ciclo de acordar e quedar-se ao sono, despedir-se a cada segundo de algo que se amava, por não ter a certeza do instante exato da partida. Era doloroso de pensar, e deveria ser mil vezes mais para quem o vivia.

E havia eu.

E havia a possibilidade de que eu fizesse alguma coisa...

A possibilidade de mudar o que estava acontecendo.

Agarrei-a, ignorando as chances de falha porque elas me pareciam insignificante diante da vontade de fazer o que parecia certo.

~~~💎~~~

Seonghwa me deixou em casa com um pouco de dificuldade em acertar o caminho, somente porque eu não era um GPS tão bom quanto havia imaginado. Poderia simplesmente dar-lhe o endereço, mas então eu perderia a oportunidade de ter mais tempo para me preparar para o embate com minha mãe.

Passara-me pela cabeça uma dezena de formas de conseguir convencê-la a me dar a autorização, mas todas acabaram descartadas porque eu no fundo pensava que eram patéticas demais e muito contestáveis para a mente ávida por defeitos de mamãe. Rodando em círculos pelo centro da cidade enquanto eu inicialmente fingia tentar lembrar-me de onde morava, evoluindo aos poucos para uma amnésia um pouco mais verídica e por fim para um esquecimento parcial do local onde residia, ponderei como seria a melhor abordagem para ter com ela. Não conversava muito com minha mãe desde o momento de meu nascimento, quando obviamente não falava; nossas ideias não batiam, nossas personalidades eram opostas e não havia o básico para mediar uma boa relação entre mãe e filho - o afeto. Por muito tempo, o amor tinha sido unilateral, mas por fim eu me cansara de ser tão escorraçado naquilo que sentia que me dediquei, dia após dia, a reduzir o palpitar em meu coração a um grão de arroz que pudesse ser pisoteado e chutado para fora das minhas terminações nervosas.

Enterrei minha relação com minha mãe, e depois minha irmã foi enterrada por ela - juntamente com o que poderia ter restado de humanidade em seu corpo sempre coberto de peças caras e refinadas, que obscureciam a podridão total de seu interior. Talvez todos nós estivéssemos enterrando coisas, por aqueles anos.

Mas eu reconhecia que precisava tentar... mais do que isso, eu precisava conseguir aquela autorização. Era a única maneira... a única forma de fazer o exame, de fazer o transplante. E salvar Siyeon. Eu poderia muito bem engolir um pouco do mal estar com minha progenitora, se isso significasse uma chance de ver Siyeon bem, de uma vez por todas.

Dei finalmente a direção certa para o mais velho, distraindo-me com a vista pela janela enquanto tomávamos o caminho para minha casa. Dispensei sua oferta de me acompanhar até a porta, agradecendo com a voz um tanto trêmula por tudo o que tinha feito por mim. Não encontraria Siyeon sem ele, nem mesmo se procurasse em todos os cantos de Seoul.

- Eu é que tenho que te agrecer, Taeyong. - rebateu. Ele sorriu da minha expressão meio perdida quando tentei compreender o significado daquilo que ele dizia. - O que você está fazendo pela irmã, poucas pessoas fariam por membros da própria família. Siyeon tem muita sorte de ter um amigo como você. É uma pessoa incrível, Tae. Lembre-se disso, sempre.

Observei o carro prata sumir no caminho que levava à saída do condomínio, buscando em minha mente algum resquício ainda que minúsculo que fosse de desconforto pela forma com que ele tinha me chamado. Não permitia que ninguém me chamasse de Tae, desde que Hee havia morrido. Mas, estranhamente, não me sentia estranho. Me sentia renovado, como se alguém houvesse despejado um litro de coragem e autoestima sobre minha cabeça. Parecia certo, mais do que nunca.

Marchei para a porta de entrada com um pequeno sorriso no rosto e um pouco a mais de animação pelo que estava indo fazer. Cumprimentei os empregados que vieram abrir-me a passagem, questionando num murmúrio se minha mãe tinha chegado do trabalho. Está no escritório do segundo andar, foi o que me responderam. Subi os degraus lentamente como costumava fazer, agarrando-me ao corrimão com a mesma força de sempre. Nem mais, nem menos, como a minha frequência respiratória enquanto batia na porta gigantesca de madeira que dava acesso ao escritório de minha mãe. Passou-se um momento, antes que um "Entre" tão baixo que eu quase não consegui escutar fosse proferido. Inspiro fundo. Forço a maçaneta, a porta cedendo gentilmente e me dando uma visão parcial e então total do que acontece dentro do escritório.

Minha mãe está sentada à mesa, os olhos chatos equilibrados sobre seu nariz e os olhos fixos na tela do computador. Há uma pilha de papéis provindos de pastas abertas por toda parte, clipes de papel prendendo maços de folhas aqui e ali, grampeadores de diferentes tamanhos e canetas sem tampa caídas ao chão. Em resumo, é como um pesadelo para meu TOC ascendente. Meus dedos se crispam, dentes se fechando sobre o lábio inferior quando ela ergue as atenções do monitor para me olhar de alto à baixo, como se eu fosse uma peça de exposição.

- Sua escola me ligou. - começa, a voz severa como eu tinha aprendido à associar a ela. - Disseram que você não retornou do intervalo, que tinha matado todas as últimas aulas e saído na companhia de um estranho. Onde estava? - questiona, mas não há nenhum interesse real em sua voz. É apenas seu tom automático, o mesmo que usamos para perguntar sobre o tempo e sobre as probabilidades de uma loteria. É frio e duro como um mármore, mas eu já estou acostumado. Ou ao menos deveria, considerando nosso histórico de relacionamento familiar conturbado.

- Hospital.

Suas sobrancelhas se curvam e ela novamente me avalia, a severidade em seu olhar e faces refletindo-se em sua réplica.

- Você me parece infinitamente bem, infelizmente. - sopra, e então volta-se para o computador. O som das teclas sendo pressionadas enche o lugar por um momento ou dois, mas depois ela se vira para me encarar novamente. - Pode me dizer o que fazia lá?

E apesar dos termos educados, eu sei que não é um pedido. É uma ordem. Não sei se gosto de ordens... geralmente as pessoas tendem a mandar alguém fazer uma coisa ruim, que não queria, que não costuma ser proveitosa para ninguém, além daquele que ordena. Todos estão sempre me dando ordens. Não gosto de nenhuma delas.

- Fui visitar uma amiga. - uma sobrancelha sua se arqueia com a a última palavra. Como se fosse inconcebível para ela o fato de alguém como eu poder me aproximar tanto de outros a ponto de fazer amizade. No começo eu também tinha pensado assim, mas depois de conhecer Jaehyun e Seulgi eu tinha passado a duvidar um pouco mais da verdade por trás do pensamento. Li em um livro que aquilo que atrai as pessoas para perto não é somente sua aparência física, mas todo um conjunto de aspectos que vão desde conseguir manter uma conversa agradável e respeitosa à não falar muito suas opiniões sobre o que elas vestem ou gostam de fazer. Ninguém gosta de uma pessoa que é cem por cento sincera, tinham me dito uma vez. Mas eu sabia que gostavam menos daqueles que falavam coisas bonitas apenas por interesse, sem nenhum sentimento genuíno que os estimulasse a fazer desejos bons. O plástico da pasta entre meus dedos desperta-me para o objetivo da minha interrupção. Estendo o objeto em sua direção, meus olhos perdidos pelo ar, focando qualquer coisa que não seja o seu rosto. - Preciso que assine isso para mim. - dito, as palavras soando surpreendente naturais.

Há um momento de silêncio, quebrado por um riso nasalado e repleto de ironia da parte dela. Meu rosto se curva em confusão por um segundo. Eu não contém nenhuma piada, por que ela está rindo? Não faz sentido...

- Você. - ela aponta um dedo para mim, a descrença em sua fala transbordando como água em um cálice cheio. - Quer que eu te dê minha assinatura? Era só o que me faltava... - resmunga, voltando-se para o computador. O desespero floresce em meu interior, inundando meus sentidos e apagando qualquer nota de tranquilidade que pudesse estar por aqui nos últimos instantes.

Ela está negando. Como eu tinha pensado, ela está negando. Ouvir é muito diferente de pensar, e por isso fico mais agitado. Abro a boca um par de vezes, a ansiedade cortando-me o ar e os murmúrio fracos que se despejam de minha boca. Ela não pode negar... Ela não pode negar... Eu não posso falhar.

- Mas... mas... - balbucio como uma criança, minha voz se perdendo no espaço entre nós como algo menos importante do que o gás carbônico que elimino. - É importante. É muito importante. Você diz... você disse... que eu só te procurasse se fosse importante...

- E você pensou que só por isso eu iria autorizar qualquer porcaria que você viesse me trazer? - ela rebate. Há ironia, mas eu não consigo processar nem mesmo o sentido literal das palavras. Minhas mãos não param quietas, meu peito sobe e desce e gotas de suor frio escorrem por minhas costas. - O que é isso, afinal? Emancipação? Você finamente quer sair dessa casa?

- É uma autorização para um exame. - digo tudo de uma vez, a frase embolada em todos os fonemas. Provavelmente ela só entende a parte do "exame" e creio que é suficiente para que seu rosto se encha de irritação profunda e pungente.

- Você está ótimo, garoto. Não me venha com nenhum chilique, porque eu não estou disposta a gastar mais um centavo com as suas paranoias. - o brado vem em tom de ameaça, mas eu não estou preocupado em digerir mais uma de suas promessas de me deserdar, de me expulsar de casa ou o que for. Ela não pode recusar... Não pode recusar... porque não é para mim. Não é para mim...

- Não é para mim... - repito, quase inconsciente. Ela me encara com confusão se juntando ao olhar furioso. Me pressiona silenciosamente por mais explicações, e eu preciso de toda a minha força de vontade e coragem para dizer as palavras, fazer meus pensamentos se converterem em frases que sejam inteligíveis. - Siyeon... minha... amiga... Ela precisa de um transplante de medula. E eu posso ser o doador. Eu quero ajudar. Eu posso ajudar. Mas como sou menor de idade... Eu... preciso de sua autorização... os papéis... eles são pra isso. - minha voz treme, vacila e estou certo de que tudo o que acabei de dizer não faz o menor sentido, se ela não tiver o mínimo de vontade de me compreender. Eu sei que ela pode simplesmente me ignorar, gritar para que eu saia de seu escritório e me colocar para fora sem um único centavo no bolso, apenas por julgar que eu a estou irritando. Mas eu não estou preocupado com o que ela pode fazer contra mim... desde que assine esses papéis.

Não consigo me lembrar da última vez que rezei fervorosamente para alguma divindade, mas de repente me vejo fazendo exatamente isso. Rezando, ininterruptamente, desesperadamente para qualquer entidade que se mostre disposta a me ouvir, para que ela tenha ao menos um pouco de vontade em seu interior para aceitar... para me ouvir, uma única vez em toda a sua vida. Eu não me lembro de pedir nada a minha mãe, desde que percebi que ela não me amaria nem mesmo se eu suplicasse. Aprendi a não lhe pedir nada, porque ela tinha um prazer insano em negar, e tinha vivido muito bem com isso, até aquele então.

Mas agora é diferente. Eu me sinto impotente, pequeno e frágil como um inseto enquanto ela me encara, os olhos faiscando de irritação, de confusão e de uma maldade que parece intrínseca à ela como a própria pele. Minha voz morre e não há outro som no escritório para ai menos tentar encher esse vazio inesgotável. O desespero volta a tomar conta de mim, com maior intensidade. Por que ela não diz nada? Por que me tortura com o silêncio? Por que não se posiciona?

- Você sinceramente acha que pode ajudar alguém? - sibila, a voz escoando em um timbre desagradável como o fel. Retira os óculos, pousando a armação frágil sobre uma das pequenas pilhas de papéis. - Logo você... que não consegue sequer ajudar a si mesmo. - continua, no mesmo tom. Meu coração erra uma batida, um músculo se contraindo e espasmando enquanto ela fala. Cruel e fria, ela se levanta, caminhando até mim em passos lentos e firmes. - Olhe para você, menino. É patético, tanto que me inspira pena... Eu olho para você todos os dias e me pergunto que pecado cometi em outra vida para ter que lidar com um estorvo como você.

Para diante de mim, mas meus olhos não estão sobre ela. Olho para o chão, não porque me sinto inferior. Porque não sou inferior a ela. Não sou menor, como ela quer me fazer parecer. Minha mãe me odeia, sempre me odiou, e é por isso que ela faz questão de me puxar para baixo, em todas as vezes que se dirige a mim, que diz algo voltado para mim, que olha no meu rosto. Ela está sempre me dizendo coisas desagradáveis, mas no fundo eu sei que é para tentar ocultar o fato de que ela própria é uma pessoa ruim, podre por dentro e desprovida de qualquer sentimento. Por muito tempo considerei que fosse algo exclusivo à minha pessoa, mas agora, enquanto ela diz na minha cara que não se importa se uma pessoa vive ou morre por uma simples assinatura sua, eu me pergunto se ela não é assim com todos. Se ela não era assim com Hee. Minha mãe talvez não amasse minha irmã, não me ama e nem a nada porque ela não possui essa capacidade. E se é assim, eu sinto muito por ela.

- Se me despreza tanto, porque não me corta da sua vida de uma vez por todas? - as palavras são tão petulantes que não agredido que são minhas, tão logo elas me deixam os lábios. Ela também não parece acreditar, um arquejo baixo deixando sua garganta quando ergo o olhar. Nunca a encarei de frente, como agora, e estou igualmente surpreso que o consiga fazer; os olhos dela refletem minha imagem, as linhas faciais denunciando uma irritação que não é humana, uma repulsa que já não me fere mais. Ela pode ser minha mãe, mas não significa nada mais do que isso para mim. É minha progenitora, mas não ocupa nenhum lugar em minha vida, como eu que sou seu filho não tenho espaço na sua. - Será bom para nós dois. Também não quero mais ficar aqui. Perguntou se eu queria me emancipar, e eu quero. E preciso assine esses papéis, porque uma pessoa importante pode morrer... - balanço a cabeça por um segundo, a correção me vindo à mente em uma fração de segundo. - Uma pessoa importante pra mim pode morrer. E eu não vou deixar isso acontecer de novo.

Empurro a pasta em sua direção, sua mão a agarrando por reflexo. Afasta-se um passo de mim, andando em círculos pelo piso do escritório enquanto desliza o elástico, as folhas sendo passadas rapidamente enquanto avalia o conteúdo delas. A adrenalina baixou e agora me vejo de volta o meu estado natural. Mas apesar disso, há uma sensação curiosa em meu interior, advinda do meu momento de coragem em enfrentar o meu maior obstáculo: minha própria mãe. É como um borbulhar, como se uma lata de refrigerante agitada houvesse sido aberta em meu interior e agora o líquido processado e repleto em gás fizesse cócegas em meus órgãos internos, chegando ao coração. O órgão morto se banha nela, palpitando uma vez e distribuído o vetor de sua salvação por todo o meu corpo; entre um pulsar e outro, sinto que está novamente quente, novamente vivo, o oco deixado pela morte de Taehee e pela partida de Seulgi sendo preenchido com algo novo, com uma disposição nova.

Analiso-a, curioso, demorando um pouco a distinguir que são notas agudas de felicidade.

- Muito bem. - a rendição em tom irritado vem juntamente com um olhar cortante em minha direção. Ergo um pouco o rosto, vendo o momento em que ela se desloca de onde está para sua mesa; apanha uma caneta ao acaso, passando as páginas da autorização e floreando com a caneta sobre os rodapés. Por fim, coloca todas as folhas de volta à pasta, estendendo-me o objeto com uma carranca. O seguro com ambas as mãos, apertando-o junto ao peito como um verdadeiro tesouro, um sorriso satisfeito em meu rosto, grande como nunca antes ela deve ter visto, porque me encara como se eu fosse um lunático.

Talvez eu seja, mas não faz mal.

Não faz mal que eu seja diferente. Não faz mal que as pessoas não me vejam como uma pessoa normal, porque eu não sou. Eu sou eu. Sou o Taeyong e só isso... só isso me parece o bastante, agora. Isso, e saber que sendo quem eu sou, exatamente como sou, posso ajudar alguém que amo.

~~~💎~~~

Meus pés pendem um pouco acima do chão e me aproveito desse fato para brincar com eles. Meus tênis meio gastos são confortáveis e balançam para frente e para trás enquanto minhas mãos fornecem o apoio que necessito para não vir a cair, sem querer. Pode parecer um tanto quanto impossível, mas eu me conheço, e conheço o meu potencial para fazer coisas impossíveis.

Como sobreviver a um acidente de carro, ficar a um fio de perder os movimentos das mãos e desenvolver um talento desconhecido para o desenho.

Penso em minha pasta de couro, recheada de desenhos que outrora pareceram tão importantes para mim. Me pergunto se eles ainda o são, se ainda me inspiram alguma afeição e chego à conclusão que sim. Ainda gosto deles, embora não possuam mais o brilho fantástico que outrora tinham aos meus olhos. Hoje eles são partes do passado... um passado não muito distante, onde eu brincava de esconde-esconde entre as flores e os arbustos do pátio da escola, escondendo-me de tudo e todos menos dela...

Menos de minha musa.

É engraçado pensar nela assim, percebo, porque ela não está mais aqui. Ela não me inspira mais. Se eu parar para pensar bem, acho que não me recordo mais com tanta clareza de seu rosto, não me lembro a sensação que perpassava meu corpo quando eu a via, não sinto mais o mesmo, não vejo mais aquela intensidade. Mas além disso, percebo que não me é angustiante pensar que ela não ocupe mais o mesmo posto em meu coração... penso que não mais recordo com detalhes as nuances de suas feições, mas não me desespero, não me sinto nem um pouco intimidado. É como se Seulgi fosse uma página passada, alguém que no passado me foi muito importante e continuaria sendo enquanto eu vivesse, mas ela não me assombra mais... sua ausência já não significa o mesmo.

Porque minha cabeça está cheia com outras coisas. A mudança, por exemplo.

Descobri que é divertido arrumar caixas, mesmo que não seja tão fácil retirar os objetos de dentro delas depois que são levadas para onde se quer. No longo processo de me realocar, de me encontrar em minha nova casa, creio ter desejado ao menos um milhão de vezes que minhas malas se desfizessem sozinhas, que as roupas e os livros, e as telas de pintura e as almofadas de Hee encontrassem seu próprio lugar, sem que eu precisasse mover um dedo sobre elas. Acho que é a primeira vez que provo tão amargamente daquilo que chamam preguiça.

Não posso no entanto reclamar do apartamento. É pequeno, mas é o bastante para mim. Dois quartos pequenos, uma sala pequena, uma cozinha menor ainda pela máquina de lavar de segunda mão que se espreme entre o corredor e a porta que leva ao terraço. Mas mesmo que fosse ainda menor, um quadrado de concreto no meio do nada, eu ainda o reverenciaria como o melhor lugar do mundo inteiro...

Levara a maior parte de minhas coisas comigo, mais por estar ciente de que não haveria nada que minha mãe pudesse aproveitar dos meus pertences do que por ter um real apego por eles. Entrara uma última vez no quarto de Taehee, e mesmo tendo me despedido de cada ínfima folha de papel por mais de uma vez pareceu-me pouco, e soou  monstruosamente errado o pensamento de largae tudo aquilo para trás. Enquanto deixava a casa onde praticamente tinha nascido e fora criado, agradeci do fundo do meu coração e em silêncio que não houvesse ninguém presente, enquanto eu me dedicava a abrigar o máximo das folhas soltas e dos objetos meio empoeirados em uma de minhas bagagens.

E por mais que pudesse parecer loucura, não me arrependia de levar um pedacinho físico dela comigo. Suas anotações agora enfeitavam o teto de meu quarto, as almofadas pintadas a mão repousavam tranquilamente sobre minha cama, e o porta retratos de sua formatura - aquele cuja foto havia sido tirada por mim, a pedido de Johnny que também fora capturado - preservava-os para a eternidade em minha cômoda.

Eternidade... quanto tempo cabe nessa palavra? Não tenho certeza se alguém um dia se perguntou, mas não tenho deixado de pensar o quão preciosos são esses segundos, cada um deles. A beleza de ser humano está justamente em não saber quando será o último momento, ouvi em algum lugar. E por não sabermos quando será nosso suspiro final, devemos apreciar todos eles... Cada pequeno detalhe, em sua essência única.

Meus pés balançam acima do chão, mas minha cabeça nunca esteve tão voltada para as coisas que acontecem aqui. Nunca estive tão perto das nuvens, sem ao menos fazer um esforço para olhar para o céu. O vento que passeia ao meu redor traz o cheiro de pinheiros de folhas novas, verdes e frescas. A neve de outrora dissipa-se com o calor dos primeiros raios de sol da primavera, a promessa de dias quentes, de céu azul limpo e brisas suaves paira como um estado de espírito totalmente tranquilo e acolhedor. E talvez, só talvez, essa última parte tenha mais a ver comigo do que com a estação em si.

De fato, penso que nunca antes em toda a minha vida me senti tão bem e tomado de tamanha sensação de paz.

Felicidade, é assim que a nomeiam. Pois que seja.

Fe. Li. Ci. Da. De.

- Yongie! Você disse que ia me esperar no portão.

A repreensão vem antes do impacto contra meu ombro. Paro o balanço com os pés, levando uma das mãos ao local afetado. Não dói e isso, juntamente com o contato suave de seus lábios sobre minha bochecha, justifica o sorriso pequeno que surge em meu rosto. Sinto minha pele esquentar, por mais que o ato não me seja totalmente novo. Apesar de ser avesso ao toque, a pele dela não é algo que me deixe intimidado. É suave e macia, delicada como uma folha de papel de seda.

- Eu me distraí. - respondo, e ela suspira. Seu punho fechado relaxa, e ela toma impulso para se juntar à mim. Seus pés ficam ainda mais distantes do chão do que os meus, e eu acho isso simplesmente adorável. Recosta-se contra o meu corpo em silêncio, a cabeça sobre meu ombro, a respiração soprando contra meu pescoço. - Seu irmão acha que isso é loucura.

- Seonghwa não tem que achar nada. Somos maiores de idade. E o lote era meu para começo de conversa. - retruca, a língua afiada e a voz em um forçado tom de irritação. Não respondo, e meu silêncio é o gatilho para sua indagação. - Você acha que fomos longe demais? - há receio em sua fala e isso me faz pensar por um segundo a mais. Encaro meu colo, nossas mãos entrelaçadas timidamente, repousadas sobre minha coxa. Acaricio as costas da sua com o polegar, indo e vindo sobre a cicatriz deixada pela agulha intravenosa. Está curada, como as que enfeitam minhas próprias mãos, uma linha pálida e fina, que quase desaparece sobre sua pele.

Subindo meu olhar, encontro-me com a outra. O ponto distinto na articulação de seu braço, menor que a cabeça de um alfinete, grande em significado como uma placa de aeroporto.

Cicatrizes do transplante.

Uma marca do passado, uma passagem de ida para uma vida nova.

Ergo o rosto para o lugar em que estamos, a brisa tocando nossos rostos. Os fios curtos de seu cabelo fazem cócegas em meu queixo, mechas castanhas ondulando levemente, livres e lindas como nenhuma outra coisa ao meu perceber.

Meus olhos varrem a imensidão do gramado pontilhado aqui e ali por lápides, os pinheiros verdes imponentes, frágeis portões de ferro... e então de volta onde estamos, para os anjos de mármore que nos direcionam rostos distorcidos em pranto e angústia. O cemitério não me parece mais um lugar triste, penso eu, mas um ponto de recomeço.

- Não. - murmuro, apertando seus dedos dentre os meus. Giro meu rosto em sua direção, nossos olhares se encontrando. Meus lábios se partem em um sorriso, genuíno como nenhum outro que já tenha ornado meus lábios. - Acho que estamos exatamente onde deveríamos estar.

Siyeon fica em silêncio por um segundo. Absorve minhas palavras. E então seu riso ecoa pelo espaço vazio de outra coisa que não seja nós dois.

~~~💎~~~

Oie♡ tudo bem com você? Eu espero que sim.
Fiquei um pouco emocional enquanto revisava, confesso, mas este é o ultimo capítulo de Epitáfio e eu não pude evitar. No entanto, não pensem que as emoções acabaram: ainda temos um epílogo e... quem sabe... um capítulo extra ;)
Nos vemos na semana que vem♡

Magá~

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