Nas Mãos do Diabo [2] O Khaos

By atimewritting

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[FINALIZADA, JIKOOK] Nove anos após sua partida para o Céu, Jimin está diante um novo desafio, dessa vez atri... More

Aviso Infernal
Prólogo, A Missão
|01| A Queda do Anjo
|03| Quem será que matou o prefeito?
|04| Há quanto tempo, Jungkook
[05] Ele lembra.
[06] Beijos, Toques e Armadilhas.
[07] A sede do Diabo.
[08] Ciúmes, Tatuagens e uma mudança de planos.
[09¿] O Cisne Branco.
[10] Ruínas, chaves, toques e uma sensação esquisita.
[¿11] Ele voltou, bebê.
[?12] A primeira vez do Bem e do Mal.
[13] A Transformação do Anjo.
[¿14] Se existem dois, um deve morrer.
[¿15?] Atração entre inimigos.
[16¿?] Saúdam o Rei do Inferno!
NAS MÃOS DO DIABO [3]: APOCALIPSE ESTÁ NO AR!
O Khaos está chegando até você...

|02| Cartas. Cartas. Cartas!

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By atimewritting

AVISO: esse capítulo possui cenas de cunho e linguajar perturbador, sensível!

#AnjoEmApuros

🎲

|02|

Cartas,

Cartas,

Cartas!

"Talvez eu seja o único homem vivo nesta ilha que se lembra dos pássaros. Muitos morreram naquela época; dos poucos que restaram, a maioria deve ter falecido desde então. Por alguma razão, a Providência tem me proporcionado uma vida longa. Não me queixo disso — por que deveria?"

— Frank Baker,

Os pássaros

Há muito tempo, ainda no elevador, de partida do Inferno para o Céu ao lado de Chamuel, o arcanjo benfeitor, tive uma sensação estranha. Meu corpo estava quente, meu pescoço estava dormente, minhas mãos estavam suadas. No começo, acreditei ser ainda uma prova de todo o medo que senti ao viver todo aquele desastre terrível, mas depois passei a perceber que já havia sentido aquela reação mais de uma vez. Quando quebrei a jarra de minha mãe, por exemplo, e fiquei sentado no sofá pelo resto da tarde enquanto a aguardava chegar do trabalho. A mesma sensação estava aqui, fincada em minhas entranhas como uma centopeia de mil patas. Só que no lugar das patas haviam pequenas e finas agulhas furando meus órgãos até jorrar sangue. O frio na barriga era a segunda pior coisa. Mas a pior era o silêncio. Silêncio latente, daqueles que te deixa paralisado e incapaz de pensar sequer em seu próprio nome. Quando era criança e quebrei a jarra cara de minha mãe, não soube como denominar o sentimento agonizante. Quando estava subindo para o Céu no elevador, também não soube.

E quando atravessei os Portões Infernais e entrei no Primeiro Círculo Infernal, percebi que o que passei a vida inteira sentindo, mesmo que pelas coisas mais triviais da infância, foi pavor. E crianças não vivem em pavor, pelo menos a maioria delas. Crianças sorriem, brincam com outras crianças, derrubam um vaso e choram (não porque se sentem culpadas, mas porque o barulho talvez as tenha assustado). Crianças não sentam no sofá da sala à espera de uma boa surra, porque sabem que é o que vão ter quando sua mãe chegar. Mas eu sentava. Quando quebrei o abajur de meu pai, ele me chamou em seu quarto, e era uma noite bastante chuvosa e amedrontadora. Eu o obedeci, já sabia o que iria acontecer. Você sabe que isso é culpa sua, não é mesmo? Ele iria perguntar, a voz tão calma que me causaria arrepios. Não o responderia, apenas balançaria a cabeça positivamente, olhos no chão. Você é uma criança muito danada, Jimin. Ele diria, então bateria na palma de minhas mãos com um cinto e depois me mandaria para meu quarto.

Não gostava de lembrar desses momentos. Às vezes, e isso acontecia involuntariamente, eu acabava confundindo meu pai de verdade com o que havia sido inventado por mim em meu Teste de Redenção. Pensar muito sobre meu passado me trazia medo e o sentimento das centopeias de patas de agulha de volta. Misturar a realidade com o irreal era um de meus maiores hábitos e piores pesadelos. Às vezes eu não sabia o que era real.

Quando olhei o horizonte, após ter me livrado de Cérbero e Quimera e as criaturas sanguinárias, percebi estar correndo um grande perigo. Misturar a realidade com o imaginário tornou-se dez vezes mais difícil, pois o primeiro Círculo era exatamente como havia imaginado em meu Teste.

Sete Círculos Infernais, sendo o primeiro o mais quente e o sétimo o mais gelado. Em meu Teste de Redenção, imaginei o primeiro como uma pequena vila. Uma vila pobre, miserável e pouco acolhedora. Como guardava os Portões Infernais, era a mais quente. Aqui era o primeiro lugar para onde os pecadores são levados após as torturas do Semicírculo Infernal, onde são forçados a enfrentar uma fila anual que determinará o que serão pelo resto de suas vidas. Como ali era onde havia o maior fluxo de pecadores e demônios, certamente era explicável o porquê de ser o Círculo mais destruído de todos os Sete. Ali, as pessoas passavam fome enquanto estavam trancafiadas em celas ou torturadas à céu aberto. Pelo menos, em minha imaginação. Mas aquele Círculo estava diferente. Ainda preservava o mesmo ar de miséria e agonia banhado pelo vermelho do céu e o negro da terra. Bem ali de onde eu estava, na entrada, pude ver onde a vila começava – com suas casas tortas e em terreno afetado – mas antes havia um bom pedaço de barro puro. Barro laranja e fino como areia movediça. Bem antes dos primeiros tijolos da vila começarem a surgir no mar de barro, havia uma pequena placa com os escritos:

PRIMEIRO CÍRCULO INFERNAL – VILA DE UMBRA

O lugar onde você descobre quem você é!

Passando do ponto da placa, um grande tapete verde se estendia ao redor da vila como um muro. Natureza. Não uma natureza morta, como as árvores secas e pretas que imaginei existirem, mas uma natureza viva, verde e quase paradisíaca. Haviam árvores enormes o suficiente para ultrapassar a cortina de nuvens pretas que adornava o céu. Seus troncos eram de um marrom vibrante.

Uma trupe de lagartos infernais passou em fila e em linha reta por uma trilha de lama, sendo guiada por uma criatura de pés pequenos e tronco largo, com uma cabeça excessivamente pequena. Eles pararam na minha frente. A criatura, com seu focinho de rato, farejou meus pés enlameados e murmurou em apreciação com o cheiro, mas quando passou a cheirar meus joelhos – que não estavam tão sujos de lama – começou a rosnar e chiar em aviso de ataque. Os lagartos endureceram as caldas e soltaram suas línguas bifurcadas para fora, raspando as patas de unhas gigantes no chão como touros prestes a atacar.

— Lama! — A criatura guinchou, apontando para meus pés.

Não a respondi, estava embasbacado demais para fazê-lo.

— Lama! Lama! — Guinchou ela mais uma vez.

Ela começou a bater os pés no barro grudento, esperneando como um bebê que acabou de derrubar a chupeta, depois se agachou e apanhou um punhado de lama com ambas as mãos pequenas.

— Lama! — Gritou ela, e jogou a lama em mim.

Guinchei em surpresa. Logo os lagartos infernais me cercaram e começaram a jogar mais e mais lama sobre mim, até cobrir meu rosto, minhas roupas, meu corpo por inteiro. Quis gritar, atacar e correr, mas senti que não devia. Aquela criatura havia farejado meus pés lamacentos e não fez nada, mas as partes não tão sujas haviam-na incomodado. Muito. Depois percebi que todos eles estavam sujos, cobertos, atolados em lama o suficiente para criar uma crosta da grossura de um dedo sobre a pele.

Os lagartos pararam de jogar lama quando a criatura estalou os dedos e um silêncio inquietante assolou o lugar. A criatura se esgueirou ao meu redor, usando seu focinho de rato para me cheirar por completo, depois se afastou e me encarou com seus pequenos olhos de peteca pretos e opacos. Então, sorriu. Seu sorriso me causou calafrios. Não havia dentes em sua boca, apenas um grande buraco encharcado de sangue.

— LAMA! — Gritou ela, dobrando os lábios rasgados como se estivesse satisfeita.

Ela retornou a andar e os lagartos a seguiram. Percebi que estavam indo em direção a entrada da vila, logo após a placa de más-vindas.

Talvez o Semicírculo e o Primeiro não tivessem chão de lama por qualquer razão. O Céu possuía chão firme, lá até mesmo a poeira era inexistente. Isso significava que os anjos e criaturas celestes estavam em um ambiente limpo, em todos os seus sentidos possíveis. Limpos de pecados, de agonias, de maus olhares e vilania. Já o Inferno possuía chão movediço e fedido, e todos os pecadores se arrastavam completamente banhados em lama. Pecado, agonia, vilania... identidade. A lama os cobria porque era vista como uma marca de seus pecados durante a vida. Enquanto anjos vestiam seda, demônios mergulhavam em lama. Talvez a criatura tenha me visto como um pecador e tenha me coberto devidamente com a marca dos pecadores.

O disfarce perfeito.

Enquanto estivesse coberto com a lama, não teria que me preocupar com demônios me perseguindo por ser um anjo. Eles nem cogitariam tal possibilidade. Pelo menos não enquanto estivesse fantasiado de pecador. Isso calhou mais do que o esperado, e a felicidade por ter conseguido avançar um pouco mais em minha missão me atingiu como o toque das asas de uma pomba da paz em seu voo celestial. Não ser descoberto como anjo me pouparia tempo e sangue.

Comecei a andar, provando da sensação da lama quente atravessando o tecido de minhas roupas e sujando minha pele. A lama afundou em meus sapatos e tornou meus passos pesados demais, então os tirei. A lama queimou em meus pés, depois ficou morna, depois suavizou ao ponto de não me arrancar gemidos contidos de dor a cada passo dado. Eu poderia usar minhas asas. Sim, poderia abri-las e voar pelo céu de carmim. Isso seria mais rápido. Mas correria o risco de cair nas garras daquelas criaturas horrendas com asas de morcego. Poderia tentar cobrir minhas asas de lama, mas a lama era quente demais e nunca secaria a tempo, e quando eu estivesse voando em alta velocidade ela começaria a se desgrudar e cair como flocos de neve, e os monstros estariam em minha cola em questão de segundos. Andar era a melhor opção no momento, mesmo que me tomasse dias para chegar à estação do Trem Intrainfernal que, se não me faltava à memória ou não fosse fruto completo de minha imaginação travessa durante o Teste, estaria localizada entre a Prisão dos Condenados do Primeiro Círculo e a praça central que tanto costumei chamar de Praça Pega-Traças. Um nome peculiar, talvez, mas não tanto quando se tem a noção de que os demônios desprovidos de título caçados pelos generais a usavam para se esconder. Quando, por infortúnio, acabavam sendo encontrados, eram levados para celas imundas e lotadas na Prisão dos Condenados, onde ficariam encarcerados pela eternidade.

Se minha lógica estivesse certa, poderia usar o Trem Intrainfernal para ultrapassar o véu dos Círculos e chegar mais rápido ao Castelo de Lúcifer, no Terceiro Círculo Infernal (apesar de já não ter mais tanta certeza de que está realmente lá). Talvez seu castelo estivesse no Quinto ou no Sexto, ou até mesmo no Primeiro, mas isso eu só descobriria caso fosse bastante esperto e encarasse meu verdadeiro papel de ali por diante: pecador, não anjo.

Aposto que Teddy Bowers morreria de inveja do papel que estou tendo agora. Muito melhor do que as caricaturas que ele forçava amadoramente em seu programa. Teddy Bowers, você é um estuprador e o único papel que realmente merece é o de alma atormentada em um mar de lava, onde você provavelmente deve estar agora.

Teddy Bowers, você me enoja!

Quando cheguei no centro da vila, o chão não era mais feito de lama movediça, mas sim de grandes pedras enfiadas no chão artificialmente. Parecia que as pedras haviam sido colocadas ali por um bando de gigantes preguiçosos, pois só tornaram a geografia do lugar ainda mais complicada. As pedras estavam cobertas de lama e marcas de pegadas de pés disformes (alguns com apenas três dedos). Tive que escalar uma bem grande e depois escorregar por ela aos gritos para finalmente chegar no centro da Vila de Umbra. A caminhada havia levado horas, mas o céu permanecia quase tão claro quanto antes.

No Mundo Mortal, segundo uma lenda urbana, existe um pedaço de terra onde nunca anoitece. Chamam-no de Floresta da Bruxa de Blair. Lembrar da lenda me trouxe calafrios.

Ali, pequenas construções haviam sido erguidas. Poucas casas, pois demônios não dormem. A maioria das construções eram simbólicas, como uma espécie de nostalgia advinda de tantas idas e vindas ao Mundo Mortal. Demônios, assim como anjos, tendem a ser bastante sentimentais (em sentidos categoricamente opostos), então é compreensível que tenham tentado reproduzir as façanhas arquitetônicas dos humanos como uma espécie de ode ao lugar que tanto amam assombrar. De uma maneira distorcida, claro, com pedras e lama e couro.

Uma grande árvore me chamou a atenção. Seu tronco surpreendentemente grosso era de um marrom vivo. No tronco, braços estavam entalhados, e eles se enrolavam uns com os outros para cima, como o palito de um grande pirulito. Encantado pelos entalhes tão bem-feitos, toquei em um dos braços de madeira e ele se moveu minimamente. Como resposta imediata, um grande urro soou por dentro dos entalhes, como se estivesse saindo das fibras da própria madeira, e uma rajada de vento me jogou para longe. Encarei a árvore como se ela fosse criar pernas e tentar me atacar novamente, alerta e de olhos bem abertos, mas o que ouvi em seguida foi uma risada grasnada estridente vindo de cima, mas descendo. Descendo da grande árvore demoníaca.

Era um homem, um homem baixo e magro, de pele vermelha e olhos pretos. No lugar das mãos, tinha três longos dedos. Ele vestia um colete e calças pretos, descalço. Sua pele era repleta de penas pretas e disformes, como um corvo depenado. Apesar disso, seu rosto era humano. Um rosto fino, afilado, de queixo e nariz pontudos. Ele parecia com um corvídeo, uma criatura bastante singular que criei em minha mente durante o Teste, mas de uma maneira bastante distinta da versão em minha mente. Sua boca era pequena e saliente como o bico de um corvo, com dentes amarelos horrorosos. Ele pulou da árvore e caiu a poucos metros de onde eu havia sido jogado por aquele grito tenebroso, então se aproximou e estendeu a mão com rapidez em minha direção. Parecia estar bastante energético.

— E aí! Sou Jerome! Corvo-Correio! Demônio relaxado, entende? — Disse ele com pressa, as palavras se embolando de uma maneira quase incompreensível.

Não o respondi, ainda estava encarando sua mão longa de três dedos estendida em minha direção.

— Não recuso uma boa risada! Eu tava lá em cima — apontou para o alto da árvore —, bastante entediado! Sem cartas para entregar, sabe? Sem cartas! Então você apareceu e tentou pegar em um braço da Grande Árvore de Um Milhão de Braços! Essa árvore é velha e rabugenta, cara! Tem que acreditar! Ela fica braba quando pecadores estranhos e um pouco feios tentam pegar em um dos braços entalhados dela! Braba! Braba! Braba! GRÁ!

Abri a boca para tentar falar algo, sua mão ainda estendida para mim, mas ele continuou a falar com ainda mais rapidez:

— Caaaaaaara! Você deve ser novat'aqui! Caaaaaara! Não sei como os guardas do Círculos não te pegaram, cara! Sou um pouco mais suave que os guardas, mas ainda posso te dar uma surra, cara! Olha meu braço! Olha! Olha! — Apontou para o bíceps magro com orgulho. — Ando tentando ser um guarda ultimamente! Não quero mais ser um corvo-correio, cara! Min'tende? Min'tende? Teve uma vez que tentei seguir um guarda, mas'ele me deu umas porradas boas, cara! Caaaaara, aquele dia foi um dos melhores da minha morte!

Tentei falar algo, mas ele prosseguiu com sua falação exacerbada:

— Nós'aqui do Primeiro Círculo somos bem barra pesada, cara! Tem que acreditar! GRÁ! Se os guardas te pegam aqui, eles te esfolam inteirinho! Cara! GRÁ! GRÁ! Depois eles vão arrancar tua cabeça e dar para os lagartos, cara! Caaaaaaara! Eu devia ter chamado um para te pegar e te dar umas boas surras, mas você me fez dar umas boas gargalhadas tentando pegar no braço da Árvore. Há-há-há! Levou um soco e caiu igual uma pedra velha no chão! Há-há-há!

Seus olhos esbugalhados não desgrudavam de meu rosto por segundo algum. Grandes olhos animalescos e horripilantes. Ele agarrou minha mão inerte no chão e me levantou com um puxão brusco, dando dois tapinhas em minhas costas antes de se afastar.

— Um Jogalama deve ter passado por você, hein, cara? Aqueles pestes são loucos por lama! Uma vez um me pegou desprevenido e acabei enterrado à sete palmos de pura lama! Loucos! — Grasnou.

Eu poderia atacá-lo. Sim, poderia puxar seu braço e o colocá-lo de costas para mim, forçando a articulação de seu ombro para o lado contrário. Ele sentiria dor. Gritaria. Choraria, talvez. Então eu o nocautearia e esconderia seu corpo para que ninguém desconfiasse. Para um demônio, ele não me pareceu alguém bastante esperto e poderia me aproveitar disso. Se eu não fosse um anjo. Minha moral e princípios me impediram, mesmo que sua mão estivesse tão próxima e acessível..., então decidi apenas concordar.

Você sempre foi um bom manipulador, Jimin. No fundo, você sabe disso, a voz de Teddy Bowers sussurrou para mim. Por segundos, seu sussurro soou como a ponta de uma agulha raspando em vidro.

— Cadê sua etiqueta? — Ele perguntou, grasnando um guincho, analisando meu corpo em busca de algo.

— Etiqueta? — Indaguei.

— Um dos demônios do Semicírculo não colocou uma etiqueta em você? Como vou saber qual foi seu maior pecado? — Grasnou decepcionado. — Vamos! Vamos! Me diga por que veio parar aqui! Vamos! Vamos!

— Eu... E-Eu...

Você tem cara de quem rouba a carteira de velhinhas!

Você tem cara de político mentiroso!

Você nunca... sei lá, roubou o dízimo?

Balancei a cabeça.

— Roubei um banco — disse a ele, minha voz soando um pouco trêmula e hesitante. — Roubei um banco e, durante o roubo, uma refém acabou morrendo — concluí, dessa vez bastante certo do que estava falando.

Falar mentiras estava sendo mais fácil do que imaginei, apesar de minhas entranhas retorcidas.

A criatura bateu palmas e grasnou comemorativamente.

— Você não parece um ladrão — disse a criatura.

— P-Por que?

Ela se aproximou e cutucou uma de minhas pálpebras.

— Seus olhos são limpos. Pecadores não têm olhos assim. Pelo menos não é para ter. Além disso, são bem brilhantes e- GRÁ! não transparecem agonia ou dor. Você deveria estar morrendo de dor. Morrendo! GRÁ! Morrendo! GRÁ! Morrendo! — Grasnou, batendo os braços depenados como se fossem asas.

— Acabei de chegar no Inferno, talvez seja por isso — tentei mais uma mentira.

Ele deu de ombros e pôs as mãos atrás das costas, cordialmente se afastando.

— Talvez. Quem sabe. Eu é que não vou saber. Sou um Corvo-entregador, pecador! Meu trabalho é entregar cartas, cara! Se eu fosse um guarda, aí eu saberia! É possível! Meu trabalho é entregar cartas, cara!

A criatura virou em direção a Árvore e dobrou os joelhos para pular em um de seus galhos tortos e escuros. Lá de cima, ela se deitou no galho e grasnou em minha direção.

— Espere! — Gritei. — Você sabe onde posso encontrar a Prisão dos Condenados?

— Você é um condenado, por acaso?

— Sou um pecador, isso não basta?

— Apenas quem praticou os piores crimes é considerado um condenado. Você roubou um banco e alguém morreu. Grande coisa. Isso daí eu faço todos os dias depois do descafé-da-manhã — zombou, risonha, então engasgou em um grasnado súbito. — Você não passa de um pecador de meia... GRÁ... tigela.

Ela levantou e começou a subir e subir, até que apenas um pedaço do tecido de seu colete era visível por entre todos os braços entrelaçados da Árvore. Subia enquanto cantava uma música horrível em meio a espirros e grasnados que soavam como soluços.

"Cartas, cartas, cartas. Meu trabalho é entregar cartas. Se não entregar uma, ele vem e corta minhas asas- GRÁÁÁ!"

— Mas que criatura louca! — Guinchei, ainda olhando para cima, para onde havia a visto pela última vez. — E não me serviu de ajuda nenhuma! Ora! — Murmurei com tristeza. — E agora? Como irei encontrar a Prisão dos Condenados?

O barulho de galhos sendo partidos me chamou a atenção. Vinha da Árvore. Em seu tronco, um par de mãos começou a se desenroscar, formando um círculo de braços de superfície tão plana quanto uma lousa. Ao lado, uma grande mão emergiu como se estivesse voltando de um mergulho em alto-mar. A mão esticou o indicador como se fosse uma fita-métrica em direção ao chão, raspou-o em uma pedra até furar a ponta e voltou-se para o círculo, onde escreveu com sangue:

Deseja o caminho da Prisão, pecador? Era o que estava escrito.

Aproximei-me dois passos receosamente.

— Sim — murmurei. — Você pode me dizer?

A Árvore tremeu e a mão esticou o indicador e continuou a escrever.

Mate o Corvo e o revelarei o caminho.

— Matar o Corvo? — Estremeci, embasbacado. — Por que?

Ela respondeu, raspando os dedos no final:

Ele pensa que meus galhos são sua casa.

— Oh... — suspirei.

Então a grande Árvore não gosta do Corvo-entregador que há tanto reside em seus galhos. A criatura era um parasita em seu sistema, comendo de seus frutos podres, rasgando a casca de seus galhos com seus pés de unhas pontudas, sujando-os com lama e baba. E ainda cantava aquela música em alto e bom tom, grasnando e gritando. Parasita. Peste intragável. Eu poderia fazer aquilo?

Temos um acordo?, escreveu a mão.

Olhei para cima, para onde havia visto a criatura pela última vez, e inflei as bochechas em dúvida. Mate o corvo, era o trato. Como iria cumpri-lo? Anjos não são agressivos (não sou um arcanjo), assim como são treinados a sempre preservarem a vida. Somos criaturas benfeitoras, cordiais e racionais. Logo, matar está fora de nosso alcance.

Mas eu não tinha escolha. O Círculo era vasto e desconhecido, era certo de que passaria mais do que semanas à procura da Prisão caso saísse por conta própria. Ainda mais quando minha mente estava tão confusa e misturava as lembranças de meu imaginário com minha realidade. Eu enlouqueceria! Morreria! Ou então seria pego por um dos guardas, que arrancaria minha cabeça em instantes. O quão contra a parede eu estava?

Concordei.

— Temos um acordo.

Com um estalo, uma sequência de braços desenroscou-se da grande trança de braços e se sobrepuseram aos demais, formando uma longa, porém estreita, escada. O último a estralar foi o da base, firmando-se bem próximo aos meus pés. No pequeno círculo, a mão escreveu:

Suba.

Acenei em concordância, mas não a obedeci de primeira. Minhas mãos estavam trêmulas e suando, meu pescoço estava dormente e tão quente que chegava a incomodar. Estava nervoso. Não, estava apavorado! Aquela escada me levaria até o Corvo, criatura que teria que matar à sangue frio em prol da informação que me faria estar mais perto de completar minha missão. Até então estava conseguindo avançar obstáculos com bastante precisão..., mas à que custo? Sangue? Tortura? Mortes? Aquilo não me pareceu certo, sob circunstância alguma, mas, novamente, fui relembrado de que não tinha escolha.

Com os dedos atrofiados pelo medo, segurei um dos degraus mais altos e comecei a subir a escada de braços. Sua textura era como a pele humana, só que mais rígida. Deu-me nojo. Era como se estivesse escalando nos braços de humanos colados e cobertos por uma gosma tão grudenta quanto fita adesiva. E talvez eu estivesse. O Inferno possui vastas maneiras de torturar pecadores, afinal. A divagação me trouxe mais nojo ainda.

Agora eu estava bem longe do chão, talvez à mais de cinco metros, pendurado em um dos galhos de textura estranha da Árvore. Dali, os grasnados do Corvo tornaram-se ainda mais audíveis e estridentes. Olhei para cima, seguindo o rastro sonoro, e engoli em seco ao ver o preto das penas de seu braço a poucos metros de distância. Prossegui com a escalada, ofegante, dolorido, até avistar o que pareceu ser um grande ninho alocado entre dois grandes e grossos galhos colados no formato de um V. Com uma das mãos, atravessei mais dois ramos de galhos e sentei no terceiro, espiando de olhos cerrados a criatura deitada de joelhos cruzados e mãos sobre o peito. Estava no ninho, olhando para cima, enquanto cantava sua música irritante aos berros:

— GRÁ! GRÁ! GRÁ! CARTAS. CARTAS. CARTAS. MEU TRABALHO É ENTREGAR CARTAS. SE NÃO ENTREGAR UMA, ELE VEM E CORTA MINHAS ASAS. GRÁ! GRÁ! GRÁÁÁ!

Estiquei o pescoço para tentar ver melhor. O ninho tinha lixo aos montes. Roupas, sapatos, pedaços quebrados de mobília, velas, esqueletos às tralhas e coisas que nunca havia visto. O Corvo estava deitado sobre uma pilha de pedaços de madeira, como se fosse o fogo crepitante de uma fogueira. Com a mão esquerda, estalava os dedos conforme o ritmo da música; com a direita, segurava um pequeno relógio de bolso. Parecia relaxado, alheio à minha aproximação.

Bom.

Quanto mais confinado em sua própria cabeça ele estivesse, mais fácil seria matá-lo.

Estiquei minha mão até a borda do ninho, esperando que ele não a notasse, e agarrei uma estaca média e fina, mas com a ponta no formato da de uma adaga. Afiada. Com cuidado, dobrei os joelhos e escalei mais um ramo de galhos. Agora estava cara a cara com a margem do ninho. Caso esticasse bem o braço, chegaria a tocar em seu pé de três dedos.

Tudo bem, é agora ou nunca, pensei.

Pensei em pular sobre o Corvo com rapidez e destreza o suficiente para prendê-lo entre o ninho e meu corpo, então teria mais chances de enfiar a estaca em seu coração. Cheguei me preparar para atacar, de joelhos flexionados e com a estaca bem segura em meu punho, entretanto, o nervosismo me consumiu ao limite e me fez tropeçar. Um de meus pés escorregou e tive que me segurar na borda do ninho para não cair. Quando olhei para cima, para onde o Corvo antes cantava, ele não estava mais lá.

Não, e também não havia ido muito longe. Demorei três segundos para sentir uma rajada forte de vento causada por sua aproximação. De repente, ele estava bem ao meu lado.

— Procurando alguém? — Perguntou.

Não o respondi, avancei com um grito, de punhos erguidos e apontando a ponta da estaca para seu peito. Ele recuou ao golpe. Tentei avançar novamente, mas ele me agarrou pelas mãos e me jogou para cima. Caí em seu ninho, sobre a pilha de estacas que ele antes usava como cama. Exclamei um grito de dor, uma das estacas havia perfurado a base de minhas costas. Superficialmente, mas a dor foi excruciante, tão forte que me fez fechar os olhos por instantes. Então ouvi seu grasnado e rolei para a esquerda bem no instante em que ele caiu sobre a pilha de estacas. Caso não o tivesse feito, seria esmagado.

— Fez um acordo com a Árvore, pecador? Veio matar o corvo parasita?

— Apenas desça daqui e procure outro lugar para viver. A Árvore não o quer aqui — rosnei. — E então eu não farei o que pretendo.

— E você pretende me matar com essa estaca, cara? Caaaaaara, um graveto como esse não é capaz de furar meu couro. Tenho um couro grosso, cara! Santo Satanás, você é um pouco burrinho, né, cara?

Avancei novamente, dessa vez consegui cravar a estaca em seu estômago. Ele recuou dois passos, de olhos esbugalhados, e eu recuei três, de boca aberta em medo e ceticismo pelo que havia acabado de fazer. Havia apunhalado alguém. Alguém que não conhecia. Demônio ou não, continuava sendo alguém.

— Meu Deus, perdão! Perdão! Perdão! Perdão!

Mas ele riu. Ele riu e removeu a estaca como se estivesse se livrando de uma farpa.

— Eu te avisei, pecador, que meu couro é grosso. Avisei, cara! Avisei! Avisei! Avisei! GRÁ! — Grasnou, jogando a estaca bem ao lado de meus pés.

Senti que iria desmaiar.

— Agora desça dessa árvore antes que eu decida usar meus conhecimentos de Guarda em você! Tô falando de porrada mesmo, cara! — Avisou.

Concordei e dei três passos em direção à margem do ninho. Algo grudou na sola de minhas meias lamacentas. Um papel pequeno e dobrado de maneira formal. Uma carta. Ao lado dela, mais uma estava jogada, então outra e outra e outra. Uma pilha de cartas estava amontoada no canto do ninho, apoiada em um grande e grosso galho. Cartas aos montes, datadas de meses atrás. A carta que segurava estava datada para ser entregue no dia 13, o mesmo dia de minha queda.

A música que o Corvo cantava começou a tocar sorrateira em minha mente: cartas, cartas, cartas. Meu trabalho é entregar cartas. Se não entregar uma, ele vem e corta minhas...

Encarei o Corvo e seu colete apertado. Ele seguiu meu olhar e soltou um risinho acovardado.

— Quantas cartas... — disse a ele, sugestivo, erguendo uma sobrancelha. — Parece que você esqueceu de entregar algumas — larguei a que estava segurando. — Ou muitas, eu acho.

— Os Círculos são muito distantes um do outro, cara! Tenta entender! Ainda mais depois que...

— Cortaram suas asas?

— Não! — Grasnou, agitado. — GRÁ! Não! GRÁÁÁ!

— Por isso usa um colete — murmurei.

— GRÁ! Não, cara! Caaaara! Já falei que não!

— Então prove — pedi. — Tire o colete e liberte suas asas.

Ele avançou dois passos em minha direção, colérico, de olhos esbugalhados, mas parou a poucos centímetros.

— Não tenho que te provar nada, cara!

Agarrei o botão único em seu colete e o forcei para baixo, tentando arrancá-lo. O Corvo grasnou um guincho animalesco, cravando suas garras em minhas mãos, tentando a todos os custos meu afastamento, mas não cedi. Cambaleamos para a direita, ofegantes, em uma distonia de gritos e grasnados em nossa luta. Ele inclinou a cabeça para baixo e tentou bicar minha mão. O movimento foi brusco e me assustou, então larguei seu colete e o empurrei para longe. Eu não queria, não havia sequer pensado sobre a possibilidade, mas ele tropeçou nos próprios calcanhares, já na borda, e despencou do ninho.

— NÃO! — Berrei, caindo de joelhos na margem.

Vi quando o corvo bateu as costas contra um galho grosso e seu corpo dobrou como uma folha de papel. Foi quando soube que ele havia morrido. Mas ele não parou de cair. Fechei os olhos, mas ainda pude escutar o crec de seus ossos partindo a cada impacto, a cada batida, até que um BUM! estrondoso soou como uma sentinela de sua morte.

Comecei a descer pela escada de braços da Árvore, em prantos.

Assim que cheguei no chão, a figura do que antes era o Corvo estava esparramada no chão, envolta por uma poça de seu próprio sangue. Gritei um grito de dor e agonia, assombrado pela imagem de seus grandes olhos esbugalhados vidrados em minha direção. Seus braços estavam desconectados do corpo como os de um boneco e os ossos de suas pernas haviam perfurado a pele como cacos de vidro apontados para cima. O Corvo piscou uma última vez, boquiaberto, em minha direção.

— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! Eu matei alguém! — Berrei. — Que tipo de anjo eu sou? — Solucei.

Escutei o crec familiar vindo do tronco da Árvore e a encarei. A mão estava escrevendo alguma coisa.

Você fez um desprezível trabalho! Meus desparabéns!

— Me diga a localização da Prisão dos Condenados — ofeguei. — AGORA!

A mão escreveu:

Está vendo uma grande torre feita de ossos?

Procurei além da Árvore, além das pequenas construções de pedra recobertas de sangue, e avistei a torre no horizonte. Grande, tão alta que se estendia até o céu e cortava a cortina de nuvens. Nela, alguns pontos vermelhos se moviam incessantemente. Aquilo despertou ainda mais minha curiosidade.

— Estou — falei à Árvore.

A mão prosseguiu:

Siga em direção à Torre. A Prisão fica ao lado.

Então a mão começou a encolher e a encolher, até que desapareceu e um ramo de braços começou a se entrelaçar sobre o círculo plano antes formado. A Árvore não tinha mais nada para tratar comigo, uma vez que eu já havia a livrado de seu maior problema. Encarei o corpo desfigurado do Corvo e torci o lábio, atormentado.

Depois voltaria e cavaria um túmulo para ele. Agora precisava prosseguir com minha missão.

Logo após isso, a tarde não demorou a chegar. Eu estava atravessando um vasto terreno lamacento polvilhado de pecadores, parte do caminho em que não haviam casas muito menos outras construções, quando grossas nuvens cor-de-cinza enevoaram o céu e ocultaram seu tom de escarlate tão latente. Raios começaram a cair em todas as direções, seguidos por trovões estrondosos que faziam a terra tremer. Rajadas de vento corpulentas vieram do Sul, tão fortes que arrastaram árvores inteiras e pedras gigantes. Uma tempestade estava a caminho. O frio gelou a camada de lama em meu corpo, em poucos segundos eu estava tremendo tanto que os dedos de minhas mãos atrofiaram. Então a chuva veio, não uma chuva comum: gotas de sangue começaram a cair do céu como lágrimas grossas, rompendo a névoa que a garoa havia criado. Era uma chuva quente, como se o sangue estivesse escorrendo do corte de um gigante, e não demorou para que começasse a arrancar as crostas da lama que cobria (e protegia) meu corpo. Em meio a todos aqueles pecadores, temi que o sangue a levasse por inteiro, mas o sangue era tão grosso que acabou mesclando-se em uma mistura de vermelho e laranja-queimado e minha preocupação caiu dois patamares contra o chão.

A chuva tornou minha caminhada ainda mais árdua porque deixou o chão ainda mais escorregadio.

Enquanto caminhava em passos lentos e cuidadosos, a mão de um pecador agarrou meu tornozelo e me arrancou um guincho de surpresa. Era uma mulher, estava nua e muitas partes de seu corpo estavam rasgadas e desfiguradas. Sua barriga havia sido aberta com um corte violento e impreciso, talvez feito com uma tesoura bastante cega, e suas vísceras a acompanhavam ao lado do corpo enquanto ela se arrastava. Ela levantou o rosto coberto de lama, revelando olhos podres e uma boca rasgada de dentes pretos e sussurrou um gemido agonizante.

Depois dela, um homem cravou as unhas quebradas cheias de fungos em minha panturrilha. Seus pés haviam sido amputados pelo que pareceu ser uma serra de três ligas de dentes bem grossos. O par de pernas estava costurado por uma corda em sua coxa esquerda e o seguia enquanto se arrastava. Em suas costas, alguém havia riscado perseguidor estuprador com a ponta de uma faca em cortes profundos, de onde sangue escorria e se misturava com a lama. Em seu ombro, a etiqueta revelava que 51 era o número de vítimas que havia feito antes de ser assassinado por um caçador de recompensas. Logo abaixo estava seu nome.

Com um guincho, livrei-me de seus apertos, mas então outro homem me agarrou, dessa vez pela mão.

— Me ajude! — Ele implorou.

Gritei ao ver seu rosto esfolado, sem pele e em carne viva. As orbes amplas dos olhos estavam evidentes, os músculos faciais inchados, os lábios removidos revelando sua arcada dentária até à gengiva. Ele parecia a mistura de um modelo anatômico de um laboratório de ciências com Freddy Krueger e sua careta de monstro. Afastei-me com um pulo e acabei tropeçando sobre o corpo de um pecador.

Tentei levantar, mas um corpo pulou sobre o meu e me forçou para baixo. Depois outro e outro e outro, afundando-me na terra como um cadáver.

— Me salve! — Todos imploravam. — Me salve! Me salve!

Me salve!

Me salve!

ME SALVE!

Fui puxado para cima por um homem, um pecador enorme. Seu corpo lembrava o de um lutador de boxe. Sua boca havia sido costurada nas extremidades, mas não no meio. Ele esticou a língua preta com cheiro de carniça pelo buraco da boca e lambeu minha bochecha e gemeu como um monstro gutural, então trouxe a boca até meu ouvido e disse:

Vou quebrar seus ossos e depois vou te foder. Vou te foder, pecadorzinho. Vou te foder inteiro! Depois vou meter na sua boca, pecadorzinho. Vou te quebrar, quebrar, quebrar, depois vou te foder. Vou te foder MUITO! MUITO! MUITO!

Acertei seu rosto com uma cotovelada e me arrastei para longe no segundo em que seus braços vacilaram no aperto. Ofegante, de olhos arregalados, fiquei de joelhos e tropecei algumas vezes antes de me recompor em pé. O homem, o monstro que havia me apanhado agora gargalhava. O som de sua gargalhada soava como o de mil corvos grasnando ao mesmo tempo.

Mas ele não era mais o homem com corpo de boxeador. Agora era o Corvo que havia empurrado da Árvore.

GRÁ! Você me empurrou da Árvore, cara! GRÁ! GRÁ! Você riu quando minha espinha fudeu minhas costas? GRÁ! Gostou? GRÁ! GRÁ! Vou foder você usando minha espinha, pecadorzinho! Vou te rasgar com ela, vou TE FODER, CAAAAAARA!

Tapei os ouvidos com desespero, o som de sua gargalhada agora machucava como agulhas raspando em meus tímpanos, raspando em meus ossos. Ele gargalhava, forte e agressivo. Vou te foder! Vou te foder! VOU TE FODER! Há-há-há! Então parou. Não foi gradativo, foi abrupto. Simplesmente parou. Abri os olhos, cético, e encarei o que antes era o Corvo gargalhando através de seu bico saliente. Não era o Corvo, era o homem boxeador. Ele estava se arrastando como um lagarto pela lama, em direção ao Norte, na mesma direção em que todos os outros seguiam. Por instantes, tive o vislumbre de seu rosto virando em minha direção e sua língua preta sendo esticada através do buraco em sua boca podre, mas bastou um piscar de olhos para que a miragem desaparecesse.

Encarei os corpos se arrastando pela lama por bastante tempo, petrificado de medo.

— Minha cabeça! — Guinchei massageando as têmporas.

Talvez tenha sido uma brincadeira de minha mente. Aquele pecador era um homem, não um corvo. O Corvo que eu havia empurrado da Árvore e causado a morte. Minha cabeça... minha cabeça gosta de brincar com meus olhos e me faz ver coisas que não existem.

Prossegui com minha caminhada assim que a chuva cessou com sua tempestade torrencial. O céu continuava nublado, mas alguns feixes de luz da lua amarelada rompiam suas frestas e iluminavam o vasto campo de dor e agonia. Estava escuro, mas ainda era dia. Escalei uma montanha bastante íngreme à pouco mais de dois quilômetros de onde havia sido atacado. Estava escorregadia. Sua superfície era lama, sangue e lodo misturados em uma gosma de odor acre nojenta. Do topo, pude ver a Torre de Ossos. Estava escondida por uma grossa muralha de névoa cinzenta e da fumaça que escapava de buracos cheios de lava.

Quando ainda estava próximo à Árvore, não pude distingui-los, mas agora estavam mais nítidos do que nunca: escalando por suas vigas de ossos, demônios semelhantes aos que vi no Semicírculo transitavam em uma velocidade impressionante, como ratos em fuga, derrubando uns aos outros e gargalhando de boca bem aberta. A exceção era que eram vermelhos e de pelo longo como o de um lobisomem. O barulho de suas gargalhadas vinha como as ondas de um mar tempestuoso, soprando para o sul, irradiando um barulho travesso.

Não fui tão cuidadoso ao descer a montanha; talvez até certo ponto, então acabei tropeçando na ponta de uma pedra e disparei rolando até o final. A gosma que recobria o solo me protegeu como um manto, poupando-me de cortes e muitos arranhões. A Torre estava à poucos metros agora e o barulho das gargalhadas ainda maior.

Alerta, busquei alguma construção próxima a ela. Não havia nada. Havia chegado em uma parte do campo com terreno irregular cujo chão era coberto por musgo e sangue. A Torre, imponente, rangia pelos movimentos violentos dos demônios e suas gargalhadas, e a névoa recobria qualquer coisa à mais de dez metros de meu campo de visão.

Recobria, não: escondia.

Com uma rajada poderosa de vento disparando detrás de mim (que senti como se um gigante estivesse soprando bem forte), uma grande fresta rompeu por entre a muralha de névoa, revelando um grande prédio de tijolos vermelhos e janelas amarelas – talvez a construção mais verissímil com o que poderia ser um hotel temático no Mundo Mortal. Encarei a porta dupla de entrada, feita de ébano lustroso, e cerrei os olhos para tentar ler o que a névoa havia revelado da grande placa acima da porta:

HOTEL HOTELÁRIO

O único com 666 quartos!

Logo abaixo estava escrito:

Temos apenas 333 quartos vagos, então seja rápido!

O som de vozes grasnadas me despertou de um transe aterrador. Eu ainda estava embasbacado pela magnitude subversiva e macabra do Hotel, inerte e de boca aberta, mas o susto dos grasnados me fez recuar até onde a névoa ainda blindava, onde torci para não ser descoberto. De dentro do Hotel, dois Corvos humanoides saíram. Um era uma fêmea trajada em um vestido de festa encrustado de brilhantes, um chapéu de condessa e um longo pincenê na mão de três dedos. Seus lábios estavam pintados em um vermelho que, por instantes, pareceu sangue fresco. O outro vestia um terno remendado nas arestas do topo dos ombros. Um terno azul de linhas brancas. Na cabeça, uma cartola preta. Ele concordou com algo que a fêmea grasnou e tirou o que pareceu ser um relógio de bolso direito do paletó. Ao contrário do Corvo que enfrentei para a Árvore, os braços do casal eram adornados por ramos de mais ramos de penas pretas majestosas.

— Você viu como a Corvélope Corvo me olhou? GRÁ! GRÁ! Ela deve estar com muita inveja do meu vestido! GRÁ! — Grasnou a fêmea.

Há-há-há! — Riu o macho, mas não pareceu genuíno. Ele curvou as costas e baixou o rosto como se estivesse triste. — GRÁ! Você poderia- GRÁ! GRÁ! Ter esperado- GRÁ! os aperitivos serem servidos, né? — Indagou pondo as mãos na cintura como um pai faz quando vai gritar com o filho. — GRÁÁÁÁ! Estou morrendo de fome! GRÁ!

— Não importa se fomos expulsos antes da comida, Corvonelson! GRÁÁÁÁ! O que importa é que eu, Corvira Corvonisse, consegui me vinGRÁÁÁ! da vaGRÁbunda da Corvélope!

O macho concordou enfiando o relógio de volta no bolso e seguiu a fêmea para o leste, onde a lua ainda estava rompendo os acordes de névoa no céu, então eles esticaram os braços e pularam em um voo majestoso, tornando-se apenas sombras de pássaros voando pelo horizonte.

Após eles, o barulho da porta sendo aberta mais uma vez me chamou a atenção. Era outro Corvo, uma fêmea, vestida em um vestido de festa arruinado pelo que parecia ser suco de uva. Uma grande mancha roxa se estendia do tecido brilhante como cetim, que escondia sua clavícula até o umbigo. Seu chapéu era um pouco mais vitoriano e pequeno que o de Corvira Corvonisse, de um tom de roxo estonteante. A criatura tropeçou nos próprios pés e caiu de joelhos no chão, levantou a taça de espumante para o céu e gritou uma jura que mais pareceu uma promessa vingativa para os quatro ventos:

— VOCÊ ME PAGA, CORVIRA CORVONISSE! — Gritou, a voz fina e alterada. — VOU CAÇAR E TE COMER ASSADA! GRÁÁÁÁÁÁÁ!

Então caiu para trás, totalmente estabanada, prosseguindo com suas juras de vingança em meio a gritos, muito choro e grasnados violentos. Esperneando como um bebê à procura de peito ou chupeta. Como um bebê irritante.

Encarei a porta dupla do Hotel e ansiei abri-la. Estava tão perto, mas tão longe ao mesmo tempo. Aquela criatura bêbada era um grande empecilho, mas não tanto quanto o fato de eu estar coberto em lama e sangue e musgo para esconder minha identidade angelical. Além disso, não estava trajado à rigor e esse seria um dos primeiros detalhes a ser notado por quaisquer criaturas que estivessem participando do que pareceu ser um Baile Infernal (agora tão diferente de como imaginei em meu Teste... será?). A ânsia havia evoluído para curiosidade suja, eu estava à dois passos de disparar correndo até a entrada e invadir, então um grasnado estridente ressoou ao meu lado e me arrancou um grito de susto.

— GRÁ! — Era a criatura, agora ao meu encalço, bambaleando bêbada. — O que está fazendo aqui, pecador? Veio tentar entrar no Baile? Há-há-há!

Tive que pensar rápido.

— Não quero participar de um baile com corvos — disse a ela.

Seu rosto se contorceu em algo feio, uma careta de desgosto.

— Como disse? GRÁ!

— Olhe para você, toda suja de lama! Nem parece que está em um baile... — cruzei os braços, fechando os olhos petulantemente (mas deixando um semicerrado para captar todas as suas reações).

Ela guinchou e largou sua taça na lama, batendo o pé consternadamente.

— Você- GRÁ! Também está coberto de lamÁ! — Grasnou enfurecida.

— Sou um pecador, tenho que estar assim. Agora você, não — rebati ainda mais petulante, quase altivo.

— Vou bicar sua cara e arrancar seus olhos, pecador! — Ela grasnou e deu mais um passo em minha direção.

Fingi que sua aproximação não havia me afetado (mas havia, e muito) e cobri a boca em meio a um riso quase travesso.

— Você não passa de uma Corvo bêbada — disse a ela.

A criatura grasnou furiosa, derrubando seu chapéu vitoriano na lama.

— Vou te torturar, pecador! GRÁ! Vou te roubar e te levar para minha casÁ! GRÁ! Vou te dar uma surra! — Gritou.

Humpf! — Bufei desdenhosamente (o que eu estava fazendo?). — Não quero ir para a casa de uma bêbada.

Sua atuação é digna de televisão, menino! Venha, pegue meu programa, lave o cérebro das pessoas. Enquanto isso, vou caçar menininhas por aí, diria Teddy Bowers.

Enquanto ela guinchava e grasnava e gritava e falava e esperneava, uma outra figura me chamou a atenção. Era uma mulher, uma mulher bastante jovem, coberta de lama. Estava segurando uma bandeja em uma mão e um castiçal com seis velas acesas na outra. Ela surgiu da névoa, taciturna, silenciosa, e abriu uma das portas com o cotovelo escorregadio e entrou no Hotel. Logo após, um homem rompeu a névoa em posse de um grande quadro com a pintura de que pareceu ser um Corvo em vestes de caubói, seguindo pelo mesmo caminho que a mulher. Dois pecadores entraram no Hotel aos arrastes, mas entraram. Seriam servos? Esperei que sim.

— Vocês usam pecadores como servos? — Interrompi a falação da Corvo.

Ela engoliu um grito, de olhos esbugalhados por minha intrusão, depois grasnou:

— GRÁ! E para que mais pecadores servem?

Ofereci-a um pequeno sorriso encabulado, de repente ciente de que poderia usá-la para muito mais do que descontar minhas mágoas por estar no Inferno. Comedido, dobrei os joelhos para juntar sua taça e entreguei-a a ela. A Corvo passou a me olhar com certo ar de confusão, apesar do brilho imperial nunca ter deixado seus olhos.

— Posso te levar lá para dentro, senhora — murmurei, o tom de minha voz duas notas mais baixo.

Anjos como eu possuem a capacidade de projetar calma em qualquer ser existente, seja de qual dos Três Mundos for, por isso fui o responsável por tocar a Arpa por muito tempo.

A criatura não me respondeu, apenas grasnou altiva e empurrou a taça de volta para mim, então começou a andar em direção à entrada do Hotel. Fiquei parado sem saber como reagir, até que ela levantou uma das mãos e apontou para a porta silenciosamente, gesto que interpretei como venha aqui, pecador, e abra essa porta para mim!

O Hotel Hotelário era uma construção milenar feita de pedras, tijolos e brita aos remendos. As paredes eram grossas e altas, culminando em um total de trezentos e trinta e três andares no formato de uma caixa de fósforos, tão estreitos quanto. A iluminação advinha de velas, candelabros e lampiões aos montes alocados nos lugares mais inusitados. Haviam candelabros no chão, castiçais no teto e lampiões flutuando como fantasmas ou luzes em balões de hélio. Por dentro, as paredes eram pintadas de preto e laranja, mas de uma maneira terrível e disforme, como se o pintor estivesse com pressa e usado as mãos de três dedos para o serviço. O chão estava coberto de lama e marcado por pegadas de três dedos quando entramos, mas depois a lama começou a dispersar e revelar um piso feito de pedras cor-de-ébano encrustadas de brilhantes e ouro.

No salão de recepção, onde um Corvo recepcionou Corvélope Corvo com bastante prontidão (seu nome era Corvêncio Corvo), Corvélope me pegou encarando um quadro gigante, que ia do chão ao teto, com a pintura de um corvo ao lado de um homem muito, muito alto. Tão alto que seu rosto foi cortado da pintura. O corvo era baixo e gordo, de bico minúsculo e papado, e vestia um colete vermelho e botas pretas. O homem possuía uma pele amarelada e trajava um terno vermelho muito bonito. Suas mãos me chamaram a atenção, pois os dedos eram finos, de ponta enegrecida como garras. Ela disse que aquele Corvo era Mortis Corvo-corvo, o prefeito do Primeiro Círculo, ao lado de Lúcifer, o anjo caído e pai de todos os demônios do Inferno. Ali, eles haviam selado um acordo em que todos os Corvonoides do Primeiro Círculo passaram a possuir o direito de não ter direitos, com o pequeno adendo de que podem beber até a tampa nos finais de semana (o acordo foi um marco histórico para Corvonoides, que já não possuíam direitos desde a Criação, só não tinham tal fato oficializado em papel ainda). Quando perguntei onde Lúcifer morava, ela não respondeu.

O baile estava acontecendo no salão de festas do andar subterrâneo. Corvélope me arrastou aos tropeços escada abaixo. Alguns Corvos pararam para conversar com ela. Em todas as ocasiões, ela empurrava sua taça de volta para mim e tagarelava sem parar por minutos ininterruptos. Enquanto ela socializava completamente bêbada, aproveitei para analisar o ambiente e pensar em estratégias que me permitissem ficar por bastante tempo (caso necessário) ou fugir bem rápido (caso preciso). Em meio à procura, acabei encontrando um grupo de pecadores em uma das extremidades do salão. Eles estavam parados, de olhos bem abertos. Suas bocas, para meu infortúnio, haviam sido costuradas. Um se destacou dentre os outros, pois não estava tão calmo quanto parecia ser forçado a estar. Pelo contrário: encarava os cantos do salão a todo instante enquanto batia o pé incessantemente no chão. Parecia impaciente. Após alguns instantes de observação, percebi que os remendos de sua boca estavam rompidos.

Ele pode falar, concluí. E se ele pode falar, então pode me dizer onde fica a Prisão dos Condenados. Certamente está aqui há mais tempo que eu.

Silencioso e alerta, coloquei a taça de Corvélope Corvo bem próxima aos seus pés e desci o resto da escada, talvez tão concentrado em não fazer barulho ou chamar atenção quanto um espião. O piso de pedra era frio contra meus pés enrugados de lama, mas o calor advindo das tantas velas acesas aqueceu um pouco meu corpo há tanto friento.

O Baile dos Corvos, como Corvélope havia denominado, foi criado como uma cerimônia formal para comemorar a assinatura de Lúcifer no tratado não-aos-direitos-dos-Corvonoides, mas que, com o passar dos anos, passou a ser o dia anual da bebedeira, o único em que os Corvos despejam todas as suas amarguras em conversas bêbadas trajados em roupas formais nada condizentes com a situação. Por isso haviam tantas mesas com taças esborrando e barris gigantes alocados aleatoriamente pelo salão como bebedouros. No centro havia uma grande estátua de pedra cinzenta esculpida na silhueta de um homem sem cabeça. Mais cedo, Corvélope revelou que era uma homenagem a Lúcifer, mas que um descuido dos corvo-entregadores havia causado a queda de sua cabeça.

Atravessei o salão de maneira despretensiosa, nunca olhando para qualquer lugar por mais de um minuto. Passei por um grupo de Corvos que pautava sobre uma guerra entre Corvos e Jogalamas ocorrida há um pouco mais de setecentos anos, uma luta por poder e pelo domínio de um escorregador de seis metros dado por Lúcifer. Era um escorregador de ouro, que agora adornava a margem da praia do Mar do Desencanto, a maior bacia de lava do Inferno. Um dos Corvos me pediu uma taça de vinho do tipo corvanal, o que me custou um pouco mais de tempo para servi-lo e prosseguir. Pedi licença para um Corvo enorme, de no mínimo três metros de altura, e ele grasnou bem alto antes de dar dois passos para o lado e liberar caminho. Metade do salão havia parado de conversar naquele momento, concentrados em quem havia feito o Corvo gigante grasnar com tanta fúria. Por momentos, pensei que seria pego, atacado e comido vivo, mas bastou o Corvo gigante voltar a conversar com uma fêmea que todos retornaram aos seus afazeres e falares entusiasmados.

Ufa!

Senti o alívio no segundo em que finalizei o cruzamento pela linha de fogo do salão, onde todos os Corvos estavam. Agora estava contra a parede, ao lado do grupo de pecadores e serventes que havia avistado. Cerrei os olhos em busca da feição característica de medo que um deles demonstrava com hesitação. O primeiro estava calmo; o segundo ressonava em um sono profundo, apesar de estar em pé; o terceiro não pareceu ter alguma personalidade (talvez a personalidade de um peixe, dos que andam em círculos uma vez e esquecem o que estão fazendo), e o quarto guinchou ao me ver de pescoço esticado analisando-o firme o bastante para assustá-lo. Ele disparou a andar despretensiosamente para o lado até chegar em uma das mesas de bebidas, então desapareceu.

— O quê? — Guinchei espantado, agachando no chão para procurar embaixo da mesa.

Ele estava lá de joelhos dobrados, roendo as unhas da mão nervosamente. Com ligeiro ceticismo, observei-o caindo de barriga no chão e começando a rastejar para frente, para o que pareceu ser um corredor (mas não tive muita certeza, pois aquela parte do salão estava bastante escura). Decidi seguir pelo mesmo caminho. Estava assustado, definitivamente assustado, agora não somente por estar sozinho em uma missão no Inferno, mas por estar perseguindo alguém em um salão infestado de Corvos demônios sanguinários.

Ofeguei quando uma das criaturas recuou dois passos enquanto mantinha uma conversa tenebrosa sobre ratos endiabrados (e o quão deliciosos podem ser caso fritos na manteiga) e quase bateu suas costas em meu ombro. Tive que me esgueirar por entre dois Corvos gigantes e hediondos vestidos em ternos cor-de-fogo, então precisei me arrastar por debaixo da mesa de bebidas para, enfim, adentrar o corredor tão escuro.

O frio foi a primeira coisa que senti. O corredor era escuro e traçado por uma atmosfera duas vezes mais pesada que o salão, tão pesada que me fez temer fechar os olhos pelo medo de ser atacado por uma criatura invisível.

Ele está aqui, eu sinto olhos pesados sobre mim, pensei.

Mas não falei nada. Independentemente de quem fosse, a pessoa não pareceu disposta a conversar desde o início. Prossegui com passos cautelosos, de olhos bem abertos e ouvidos bem despertos para captar até a menor onda sonora. Passos, respirações, ofegos, grasnados. Qualquer som, qualquer sinal de que os olhos pesados que sentia sobre mim não advinham de minha cabeça, de minha imaginação traiçoeira e distorcida.

De repente, o homem lutador de boxe que havia me atacado surgiu na minha frente.

O que você vai fazer quando achar o pecador, pecadorzinho? Vai FODER ele? Disse o lutador de boxe com um riso desdenhoso.

Depois ele virou o Corvo que empurrei da Árvore de Mil Braços, os olhos esbugalhados jorrando filetes de sangue preto pelo rosto amassado e desfigurado.

Como vai fazer ele falar? GRÁ! GRÁ! GRÁ! Vai torturar ele? Vai MATAR ele? Grasnou ele, caindo numa gargalhada tenebrosa.

— NÃO! — Gritei, avançando sobre a silhueta do corvo, apenas para vê-la se desfazer como fumaça com o simples toque de meus dedos.

Mas um par de mãos me empurrou pelos ombros contra a parede e então o pecador estava pressionando o cotovelo em meu pomo-de-adão brutalmente.

— O que você quer? — Ele perguntou, a voz grave alterada uma oitava acima pela fúria.

Cravei as unhas em seu braço, batendo os pés contra o chão como uma criança que perde um brinquedo, mas sem ar algum. Seu cotovelo estava me tirando o ar aos poucos, levando-me ao enjoo lentamente... depois à exasperação. Bati em seu ombro e guinchei desesperado para que ele me soltasse. Até que ele me soltou. Bati as costas contra a parede mais uma vez, sentindo uma leve urgência por sugar todo o ar que pudesse de uma vez só, então o encarei.

— Por que você não parece um pecador? — Perguntei a ele, massageando meu pescoço dolorido.

Não me respondeu, apenas murmurou algo baixo e perguntou:

— O que te faz pensar que não sou um?

— Você estava... — respirei profundamente. — Você estava olhando para todos os lados como se estivesse se escondendo de alguém e estava parecendo receoso e também não parava de bater o pé e também ficava indo pra frente e pra trás como se estivesse duvidando de algo ou alguém ou algo e alguém ou nada ao mesmo tempo.

Novamente, ele não respondeu; soltou o que pareceu ser um rosnado e começou a andar pela extensão do corredor escuro. Era um homem grande de costas largas e ombros curvados coberto de lama. Estava tenso. Foi por que o acusei?

— Espere! — Pedi, tratando de segui-lo no mesmo compasso. — Por que não me responde?

— Porque não quero — disse ele, dobrando em outro corredor.

Ele olhou para trás uma única vez, para além de mim, e prosseguiu. Sim, estava fugindo de alguém. Definitivamente.

— Eu preciso de ajuda! — Revelei em um ímpeto, estremecendo pelo desespero em minha voz ter soado tão revelador.

Ele abriu uma grande porta e adentrou no que pareceu ser um pequeno escritório. Tive que me esgueirar por uma fresta para entrar antes que ela fechasse por completo. Era um escritório. Nele, uma pequena mesa adornava um dos extremos do cômodo, repleta de papéis e com uma pequena placa com os escritos Prefeito Mortis Corvo-corvo, ao lado de uma pequena pintura do corvo gordo e baixo que reconheci como o da grande pintura na recepção do Hotel. Atrás da mesa, uma grande estante repleta de miniaturas de corvos nas mais distintas posições sexuais, completamente nuas e eróticas. Torci o lábio ao ver trabalhos tão vulgares e desinibidos, tão sujos. O homem disparou em direção a mesa, abriu uma gaveta com força e vasculhou em busca de algo nela. Quando pareceu não achar, gritou um grito de fúria e arremessou a gaveta contra a parede, estraçalhando-a. Junto aos pedaços da gaveta, mais miniaturas deslizaram pelo chão, assim como duas petecas, uma pintura do prefeito Mortis Corvo-corvo desnudo e um pedaço de papel imaculadamente dobrado como um pequeno bilhete.

O homem, então, direcionou sua caça à estante de miniaturas, jogando uma a uma no chão com desprezo, subindo na cadeira para alcançar a mais alta. Novamente, pareceu não encontrar o que tanto procurava, e em mais um ímpeto de fúria deferiu um soco poderoso que quebrou três patamares da estante de uma vez.

— Onde ele colocou? Onde? — Indagou o homem, batendo o indicador contra o queixo nervosamente.

Ele atacou um baú ao lado da estante com unhas e dentes, como uma fera ansiando por libertação, e berrou um grito de leão após não encontrar o que tanto procurava. Recuei dois passos quando ele reergueu as costas e estralou os ombros como uma fera. Mas foi quando ele voltou até a mesa em busca do que quer que fosse, que desdobrei o pequeno bilhete.

— Hm — murmurei bastante receoso, intercalado o olhar entre o papel e o homem revirando os cômodos como um animal. — Acho que isso é para você.

Tão rápido quanto levantou o rosto, chegou até mim e me roubou o bilhete, lendo-o com atenção voraz. A esclera de seus olhos foi ganhando veias vermelhas e salientes conforme ele leu o papel. No final, sua irritação era mais do que evidente.

— Que MERDA! — Gritou ele, deferindo um soco que quebrou a mesa ao meio. — Aquele desgraçado!

Recuei até a parede quando ele começou a quebrar o resto da mobília, demorando com as miniaturas. Elas, ele amassou nos punhos.

— MERDA! MERDA! — Gritou, as veias do pescoço saltadas.

Pensei que viria até aqui hoje à noite e decidi guardar minha preciosa chave em outro lugar. Tenha um baile tremendo, Ícaro. Era o que estava escrito formosamente no bilhete, com uma caligrafia tão suave, quase como se o escritor tivesse prestado atenção em cada letra e cada espaço.

Uma provocação. O bilhete não passava de uma provocação. A letra desenhada era apenas mais uma confirmação da ironia maculada do escritor.

O homem começou a coçar o antebraço esquerdo, bem onde veias salientes se destacavam por baixo da fina cama de lama que o recobria. Coçou-o com voracidade, com ânsia e ódio, como se quisesse remover uma tatuagem ou marca bastante dolorosa. Coçou-o ao ponto de arrancar sangue.

Guinchei em surpresa ao presenciar tamanho desespero. Depois de tanto coçar e coçar, o homem havia arrancado a maioria da crosta de lama do antebraço, revelando uma pele tão branca quanto papel. Mas havia algo distinto naquela pele, mais especificamente, naquele pedaço de pele. Ele brilhava, mesmo vermelho e recoberto de sangue. Brilhava como se tivesse ouro talhado na superfície. O detalhe chegou a me hipnotizar por tamanha graciosidade porque, por instantes, me trouxe memórias do Céu.

Ouro celestial. Seu braço está coberto por ouro celestial. Pensei boquiaberto.

Então ele cravou as unhas no que pareceu ser um botão de ouro do tamanho de uma tampa de garrafa e, para meu horror, tentou arrancá-lo à força. Ele gritou, a pele rasgando e revelando traços de carne viva, até que conseguiu removê-lo. Depois caiu no chão, desacordado, com ondas de calor emanando de seu corpo. Não demorou muito para a mutilação cicatrizar e um novo botão ser formado sobre sua pele, bem acima do pulso. Também não demorei para perceber que o que havia se formado em sua pele não era um botão, mas sim uma fechadura.

E ele acordou espantado no mesmo instante em que cheguei a uma incrível, quase cética conclusão. Minha voz falhou uma nota quando falei, quase tão hesitante quanto no momento em que conversei com o Corvo da Árvore:

— Você é Ícaro, não é mesmo? — Perguntei ansioso. — Você é Ícaro, o falso anjo.

Novamente, ele não respondeu. Ao invés disso, soltou um longo suspiro. E, querendo ou não, respondeu minha pergunta.

HOJE É ANIVERSÁRIO DO JIMIN DE NMDD!

hihihihihi espero que tenham gostado do capítulo e tenham tido uma leitura HORROROSA! Aliás, os capítulos estão saindo bem grandes e to adorando isso!

📭 Alguma cena favorita?

Eu adorei escrever esse capítulo aaaaaa minha nossa! Tudo nele me agrada! Espero realmente que tenham gostado!

Perfil dos Jikook de NMDD no Twitter:

🎃hotluciferx

🎭khaoticjimin

Até o próximo capítulo!

Ju


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