Profundo

By potterfxck

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Louis Tomlinson vê sua vida se transformar em um pesadelo quando o ex-namorado espalha fotos dele nu na inter... More

Avisos
A N T E S
S E T E M B R O
S E T E M B R O - part 2
O U T U B R O
N O V E M B R O
N O V E M B R O - part 2
F É R I A S D E A Ç Ã O D E G R A Ç A
D E Z E M B R O
D E Z E M B R O - part 2
J A N E I R O
F E V E R E I R O
M A R Ç O
M A R Ç O - part 2
F É R I A S D E P R I M A V E R A
A B R I L

F É R I A S D E I N V E R N O

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By potterfxck

H A R R Y

Minha mãe adora O Mágico de Oz. Quando eu era pequeno, ela comprou umas cortinas de tecido xadrez azul e branco e as pendurou no trailer. Elas deixavam tudo com aparência de velho. Fez isso apenas alguns meses depois do último desaparecimento do meu pai e ela ainda estava usando os sapatos vermelhos brilhantes e vagabundos que ele havia lhe dado de presente. Ela os adorava. Usava-os para ir a qualquer lugar, embora eles a fizessem virar o pé. Certa noite, ela os colocou para sair para beber com meu pai e voltou três dias depois de roupa nova, com uma tatuagem no tornozelo e um copinho de tequila que dizia Reno, que me deu como lembrança. Após meu pai nos abandonar e levar o carro, fazendo com que minha mãe perdesse o emprego por não ter mais como ir para a cidade, ela fazia uma brincadeira em que batia os saltos dos sapatos um no outro e dizia “Não há lugar como o nosso lar, não há lugar como o nosso lar”. Então olhava ao redor no trailer e fazia uma careta de decepção.

– Ainda está uma porcaria – dizia. Então encostava o ombro no meu, nossos cabelos se tocando, e contemporizava. – Pelo menos temos um ao outro, Haz.

Todas as piadas dela eram assim, às nossas custas, e depois ela compensava o humor negro destacando o fato de sermos um time. Uma família. Não há lugar como o nosso lar. Mas depois que você sai de casa, não pode mais voltar. Aprendi isso em Putnam. Os lares mudam quando você está longe, e você também muda, sem perceber. Entra no carro, vê a imagem da sua mãe e da sua irmã caçula diminuindo no retrovisor e acha que tudo vai estar igual da próxima vez, como se você tivesse apenas ido ao mercado ou ao clube de golfe para trabalhar e então voltasse para casa, como se nunca houvesse ido embora. As coisas não funcionam assim. Você pega um voo para Portland, depois vai de carona até Coos Bay, aparece na escola da sua irmã para fazer uma surpresa e quando ela passa, cercada de amigos, você nem sequer a reconhece. Você nunca viu aquelas roupas antes. As orelhas dela estão furadas. O rosto está diferente.

E a pior parte é que ela também não reconhece você. Ela passa direto. Você tem que ir atrás dela, cutucá-la, se apresentar. Eu nunca me senti mais diferente do que naquele Natal. Parte de mim ainda morava no Oregon, com Gemma, mamãe e Bo. Deslocado, preocupado, frustrado, cauteloso, mas lá, no lugar a que pertencia. O resto de mim estava com Louis. Caio no sono depois da minha última prova final e acordo com batidas fortes na porta. Louis já foi embora, deve estar no avião a caminho do Caribe com a família. Então sei que devem ser más notícias. Estou esperando más notícias desde que me atraquei com Nate, há dois dias. Estou quase certo de que ele vá fazer algo para se vingar. Eu o humilhei. Duas vezes. Ele é meu. Era nisso que estava pensando quando fiz aquilo. Não me importo com o que aconteça comigo. Não vou deixar ninguém falar merda sobre Louis na frente dele, na minha frente, na minha casa.

A pior parte é que eu sabia que ele iria acabar com as minhas prioridades, mexer com a minha cabeça. Eu sabia, e agora que ele fez isso, eu gosto. É perfeito. Quero que ele se mude para cá, que durma na minha cama, tome banho com meu sabonete, vista minhas camisetas velhas para andar pela casa. Quero comê-lo antes do café todas as manhãs, me esfregar na bunda dele, enterrar o rosto naquelas coxas até gozar. Estou tão perdido que me transformei no tipo de cara que faz tudo o que o homem manda e sorri o tempo todo, como se estivesse viciado no pau dele.

Sou louco por aquele garoto. Ele é meu dono.

E é por isso que, quando batem na porta, quase fico feliz. Não estou me aguentando. Detesto o fato de ele ter batido a cabeça e se machucado. Não suporto me lembrar do barulho feio e triste que ele fez vomitando no meu banheiro. Depois que ele pegou no sono, mandei uma mensagem de texto para Bo dizendo que havia uma grande chance de eu acabar atrás das grades antes de conseguir chegar em casa para o Natal. Não deixe ninguém entrar na sua casa sem um mandado, ele respondeu. Quando acabei de calçar as botas, as batidas haviam se transformado em porradas, mas tive o cuidado de tirar o livro que Louis me deu de cima do travesseiro, marquei a página que estava lendo e o enfiei na minha bolsa de viagem.

É um bom livro, e não quero que seja estragado. Dois deles estão na porta, um cara gorducho com cabelos loiros encaracolados e uniforme do departamento de polícia de Putnam e outro mais magro e mais baixo, negro, vestindo uma camisa polo do departamento de segurança da Universidade de Putnam.

– Você é Harry Styles? – pergunta o loiro.

– Sou.

– Meu nome é Jason Morrow, da polícia de Putnam, e este é Kevin Yates, da equipe de segurança do campus. Recebemos uma denúncia anônima de que você está envolvido com a venda ilegal de maconha. Precisamos dar uma olhada no seu apartamento.

Percebo, pela forma como ele diz isso, que o blefe normalmente funciona. Eles batem na porta de dois, três alunos da universidade por ano, sempre que aparece uma queixa séria. Agem de maneira civilizada e gentil e os garotos fazem o que eles querem. Não deixei nada no apartamento para eles encontrarem, porque, apesar do que Nate parece pensar, não sou idiota. A quantidade total de maconha que possuo por si só representa uma contravenção grave, caso possam provar que é para vender. O que, é claro, eles podem, porque ninguém seria capaz de fumar tanto e continuar sendo um ser humano funcional.

Mas deixo tudo em um armário no centro recreativo e vou pegando aos poucos, duas ou três vezes por semana, quando apareço por lá para correr e fazer musculação. Tomo banho e pego uma pequena quantidade, algo que eu saiba que vou conseguir vender. Não planto nada no campus desde o começo do ano passado, quando fiz isso mais para me exibir do que outra coisa. Só queria que as pessoas comentassem: Foi ele o cara que plantou aquela erva da boa. Ele é o cara que pode conseguir para você. Depois da primeira colheita, encerrei a produção. Arriscado demais. Eu sei em que me meti. Conheço os meus direitos.

– Não – digo para o policial na porta.

Não, ele não pode entrar. Não, eu não posso sair.

Estou preso nesta confusão que eu mesmo criei, e tenho um mês longe daqui – longe dele – para descobrir como vou escapar. Minha mãe envolve meu pescoço com o braço por trás para plantar um beijo na minha orelha, mas erra a mira e acaba beijando meu boné.

– Eca, mãe. Você está cheirando a carne cozida.

Ela acabou de voltar de um turno na prisão. Nunca vi a lanchonete onde ela trabalha, mas, se o cheiro com que ela chega é um indicativo, não estou perdendo muita coisa. De qualquer forma, não me incomodo com o beijo. Suas roupas recendem a comida, mas consigo sentir o cheiro da sua pele também, algum sabonete ou hidratante floral. O balcão do banheiro de Bo está lotado com os produtos de beleza dela.

Passei tanto tempo longe que as impressões mais fortes que tive quando cheguei, há dois dias, foram os odores. Fumaça velha de cigarro, o purificador de ar elétrico, o ar que sai do sofá quando nos sentamos, que cheira a pelo de cachorro e espuma velha misturados com aromatizante. Na primeira vez que minha mãe me abraçou desde que cheguei, seu cheiro fez minha garganta fechar, uma reação física que não foi exatamente em forma de lágrimas nem alergia. O garoto dentro de mim dizendo Mamãe ao mesmo tempo que minhas mãos queriam empurrá-la e pôr alguma distância entre nós.

– Não consigo parar de pensar em como é maravilhoso ter você de volta.

– Largue o garoto – ordena Bo do outro lado da mesa. – Ele está velho demais para essa palhaçada.

Minha mãe tira meu boné e ajeita meus cabelos amassados.

– Ele é o meu bebê. Está com fome, Haz? Posso fazer um ensopado, se você quiser.

Ela está preparando todos os meus pratos preferidos.

– Não, já comi na cidade. Fui com Gemma ao Arby’s depois que voltamos de Bandon.

Bo levanta o olhar.

– Por que vocês foram a Bandon?

Ele não estava em casa quando saímos nem quando voltamos. Acho que não sabia.

– Levei Gems à clínica para fazer o exame médico.

Os olhos dele se estreitam e ele se vira para a minha mãe.

– Você o deixou levá-la para tomar aquela vacina?

Minha mãe pisca rápido algumas vezes e eu me dou conta de que ela me botou no meio de alguma situação espinhosa. Ela me disse que Gemma tinha que fazer um exame para poder praticar alguma atividade esportiva depois das aulas, em janeiro. Quando chegamos à clínica, a enfermeira falou que Gemma estava com a vacina contra hepatite vencida e que precisava tomá-la ou não poderia continuar na escola no ano seguinte. Achei que demos sorte. Como a vacina é paga pelo governo, falei para a enfermeira aplicá-la e assinei o formulário que ela me entregou. Mas agora me lembro, tarde demais, que Bo não acredita em vacinas. Ele tem um livro sobre isso, um sermão completo sobre a falácia da imunidade ampla e a toxicidade dos componentes usados como conservantes nas vacinas. É capaz de falar por horas sobre níveis de alumínio no sangue, se você deixar.

– Gemma tomou alguma vacina? – pergunta minha mãe.

Quando ela entrou em casa, a primeira coisa que Gemma fez foi mostrar o curativo no braço. Olho furioso para ela, que me dá um sorriso fraco. Seus olhos estão suplicantes. Vamos lá, Harry. Fique do meu lado. Eu não quero que haja lados. Não entre minha mãe e o Bo.

– Eu acreditei no que a enfermeira disse.

Bo pega o maço de Camel em cima da mesa e espia para dentro da abertura. Franze a testa e pega o último cigarro. Ele é um cara calmo. Se ele e minha mãe vão brigar por causa disso, não será agora. Mas ele não vai se esquecer do que aconteceu.

– Vou pegar uma Coca – diz minha mãe, se levantando. – Harry, você quer alguma coisa?

– Uma cerveja.

– Pega outro maço para mim na geladeira, por favor? – pede Bo.

Mamãe vai até o refrigerador.

– Você não abriu um maço hoje de manhã?

– E daí?

– E daí que você deveria estar diminuindo. Pela Gemma.

Minha irmã está na sala, não dá para vê-la da cozinha, mas a casa de Bo é pequena e ela consegue ouvir.

– Você deveria estar parando, Bo – diz Gemma.

– Quem sabe semana que vem.

Minha mãe pega uma cerveja para mim. Não pergunta se Bo quer uma, e quando ela abre a tampa e me pergunta se quero um copo, ele faz um ruído de irritação e se levanta da mesa.

– Aonde você vai?

– Para a estufa.

Ele abre a geladeira e tira um maço de cigarros do pacote.

– Você jantou?

– Jantei, estou bem.

Ela abaixa os cantos da boca enquanto o observa saindo pela porta dos fundos. Isso faz com que pareça uma velha. Minha mãe tem apenas 37 anos, mas o uniforme largo da prisão lhe deixa com a aparência de uma mulher de meia-idade, com marcas de expressão profundas no rosto, a decepção nos cantos da boca sempre presente. Minha mãe detesta esse uniforme. Daqui a pouco vai tomar um banho e arrumar os cabelos, vestir um jeans justo e uma blusa bonita, em busca de uma juventude que está se afastando dela. Ela sempre pareceu mais uma amiga mais velha do que minha mãe. Uma amiga cujos maus hábitos e defeitos são evidentes a todos que a conhecem, mas que perdoamos, porque ela tem bom coração. Um coração que parece estar sempre sendo partido pelos outros.

Queria que fosse a primeira vez desde minha chegada que Bo tivesse saído num rompante para a estufa, mas não foi. Algo não está bem entre eles. Há muitas coisas que não parecem certas. Coisas que eu não esperava. Quero colar a aba de fórmica que se soltou na quina do balcão da cozinha – a fita adesiva descolando denuncia três ou quatro péssimas tentativas de consertá-la –, mas a cozinha é de Bo, e quando reviro a gaveta de tralhas em busca de cola e encontro um envelope cheio de dinheiro – um dos muitos esconderijos dele – eu me sinto um ladrão. Quero dizer para Gemma não ler o livro que ela comprou, uma edição de bolso que as garotas liam quando eu estava no ensino médio e que sei que tem incesto, boquete e outras merdas que ela ainda não tem idade para ler.

Mas ela é filha da minha mãe, não minha. Nada aqui parece me pertencer. Digo a mim mesmo que é porque nunca morei nesta casa. Antes de ir para Putnam, quando minha mãe decidiu se mudar para a casa do Bo, eu fiquei sozinho no trailer. Apesar de já ter me hospedado na casa dele depois disso e dormido no sofá, nunca considerei a casa dele minha casa também.

O trailer é meu, e meu pai está morando nele.

– O que está havendo com você e o Bo?

Ela agita a mão no ar. Pega um isqueiro Zippo em cima da mesa e o sacode algumas vezes, batendo levemente com ele no tampo da mesa.

– Nada de mais. Acho que ele não anda dormindo o suficiente. Bo detesta quando precisa trabalhar à noite. Fica rabugento.

– Mas vai voltar a trabalhar durante o dia na semana que vem, certo?

– Vai.

Ela senta na cadeira que Bo liberou, tira os sapatos que usa para trabalhar e os atira na pilha de calçados ao lado da porta dos fundos. Suas meias têm minúsculos cachorrinhos estampados, e ela as aponta para mim. Eu lhe dei as meias de presente de Natal.

– Legal – digo.

– Eu adorei.

Ela se inclina para a frente e pega o isqueiro de novo. Aciona a pedra até conseguir uma chama. Um brilho maroto em seus olhos me diz que ela tem um plano para esta conversa.

– É a primeira vez que tenho você todinho só pra mim. Me conte tudo sobre a faculdade.

– Não tenho muita coisa para contar.

– Pergunte a ele sobre o namoraaaaaado – gorjeia Gemma da sala.

Os olhos da minha mãe se iluminam.

– Imaginei que estivesse namorando. Não é de estranhar que nunca me ligue de volta.

– Eu sempre ligo pra você.

Ela revira os olhos e aciona o isqueiro de novo.

– É, quando não está trabalhando.

Ela imbui a palavra de dúvida, como se eu estivesse trabalhando para evitá-la. Metade do dinheiro que ganho eu acabo mandando para ela. Provavelmente paguei as revistas sobre a mesa de centro, assim como as meias.

– Me deixe ver uma foto – pede ela.

– Eu não tenho namorado nenhum.

– Tem, sim! – Gemma está na soleira da porta da cozinha agora, com o sorriso encantado. – Ele mandou uma foto para ele.

Porra.

– Ele mandou uma foto para você – digo, porque é a mais pura verdade.

Eu entrei na sala e encontrei Gemma com meu celular na mão, trocando mensagens com Louis, que havia acabado de mandar uma foto de braço dado com uma garota mais gordinha, sua irmã Charlotte. Os dois estavam na praia, com os cabelos molhados e sorrindo. Preciso parar de mandar mensagens para ele. Parar de olhar aquela foto. Tenho que definir limites melhores na minha vida, porque era com isso que eu deveria estar me preocupando. Com os problemas nesta cozinha. Com o fato de Gemma estar tirando notas baixas na escola e não parecer conhecer o significado da palavra privacidade. Com o fato de os peitinhos dela estarem crescendo e de ela estar usando sutiã e blusas que anunciam isso para o mundo.

Minha mente deveria estar concentrada no que quer que esteja acontecendo entre minha mãe e Bo, e em descobrir se Des Styles tem algo a ver com isso. Quando perguntei a ela se tinha estado com ele, ela disse que não, mas não me olhou nos olhos. E então ficou toda falsamente alegre, como fica quando mente para mim. Eu não deveria estar pensando se Louis está se divertindo no Caribe, em quando vou conseguir vinte minutos para ligar para ele, se há alguma forma de conseguir fazer isso sozinho para poder falar sacanagem, abrir meu zíper e bater uma punheta.

– Me deixe ver – pede minha mãe.

– Não.

Mas Gemma vem por trás de mim e puxa o celular do meu bolso de trás. Eu a agarro, faço cócegas, tento pegar o telefone de volta enquanto belisco suas costelas com força suficiente para ela resmungar, embora esteja dando risada.

– Pegue, mamãe!

Então ela atira o telefone e eu vejo de relance a tela do meu aplicativo de mensagens aberta antes de o aparelho cair no chão e sair deslizando. Então fico de joelhos e tento recuperar o celular antes que minha mãe ou Gemma pegue, e é a coisa mais esquisita, porque as duas estão rindo, mas quando minha mãe estende o braço e me empurra, faz isso com força. Ela consegue pegar o telefone e ao correr para o outro lado da cozinha, gritando Mantenha ele longe de mim, Gemma!, não parece uma brincadeira. Não é engraçado. Desvio de Gemma sem nenhuma dificuldade, agarro o pulso da minha mãe e arranco o telefone da mão dela. Meu coração está saltando no peito. Estou com calor, descontrolado, cheio de raiva mal direcionada e fúria frustrada.

– Pelo amor de Deus, Harry, calma – diz minha mãe.

Mas seus olhos estão faiscando, ofendidos e cheios de orgulho, e quando olho para Gemma ela se encolhe. Quero sair correndo daquela casa. Dar uma longa caminhada até a rodovia e continuar pelo acostamento, no escuro. Quero ficar furioso, mas não tenho nada com que estar irritado a não ser com minha própria incapacidade de deixar os limites da minha vida claros novamente, evidentes o bastante para evitar que esse tipo de coisa aconteça.

Respiro fundo e solto o ar.

Esta é a minha família. Este é o meu lugar. O lugar ao qual pertenço. Se não sinto isso, estou fazendo tudo errado. Estou me fechando. E é algo que não posso fazer, porque, se perder essas coisas, quem eu serei? 

Passo algumas telas do telefone com o dedo e o devolvo à minha mãe, cuja expressão suaviza com a proposta de paz.

– É esse aqui...?

– O bonito – eu me ouço dizer. – O nome dele é Louis.

Q q vc tá fazendo?

Ele responde imediatamente: Nada.

Que tipo de nada?

Deitado no sofá vendo um filme.

Que filme?

Call Me By Your Name. Vi 400 filmes de romance hoje.

Por quê?

Alguns antigos eram da minha mãe. Eu os vejo às vezes.

Uma pausa.

Meu pai está no trabalho. Estou entediado. Férias são um saco.

É.

Mais uma pausa.

Vou ligar pra você.

Estou no sofá, sozinho em casa. O ano-novo veio e passou e Gems voltou para a escola. Bo está no turno da manhã de novo. Ele e minha mãe estão trabalhando agora e a casa está em silêncio pela primeira vez desde que cheguei. Estou de pau duro antes que o telefone toque.

– Oi – diz ele.

– Oi.

Então há um silêncio e Louis dá uma risadinha que parece um sussurro.

– Isso é esquisito.

– Qual parte?

Posso imaginá-lo mordendo o lábio. Desviando o olhar de mim. O pescoço ficando vermelho e cheio de placas. A forma como seu peito levanta a cada inspiração rápida.

– Sabe aquela parte do filme em que o Timothée Chalamet provoca o Armie Hammer no jardim após o primeiro beijo deles? – pergunta ele.

– Qual é o Armie Hammer?

– O amigo da família que vai passar um tempo na Itália.

– O bonitão.

– Isso. E o Timothée Chalamet é o...

– Eu sei quem ele é.

Louis ri, meio nervoso.

– É a parte que está passando agora.

– E?

– E esta é a melhor parte. Timothée está com um de seus shorts curtos e apertados que adoro, porque combina tanto com a personalidade de seu personagem. Provocador.

Começo a dar risada, percebendo aonde esta conversa está indo.

– Achei que você gostava dele com a garota – digo.

– Quem? A Esther Garrel?

– A garota bonita.

– Nah.

Silêncio por um instante.

– Ah... até que eles são fofos juntos. – diz ele.

Louis parece tão conformado que começo a rir.

– Mas eu sempre gostei mais do Armie – continua. – Mesmo com a cena do pêssego.

– Você tem uma queda por caras estranhos, né?

– Não.

Mas consigo ouvir o sorriso na voz dele.

– Tudo bem. Talvez eu tenha uma queda por provocadores e meninos ricos.

– Talvez.

– O que você está vestindo, menino rico?

Ele dá uma risada sussurrada de novo. Há uma mudança que eu quase consigo sentir, um clique na linha, sinais digitais se rearrumando. O que você está vestindo? O gatilho do sexo a distância disparando e eu estou preparado, pronto para isso. Com a calça jeans aberta. A mão fora da cueca, porque não posso começar até saber se ela quer brincar. Talvez não queira.

– Estou com a minha camisa preta de seda.

Posso ouvir a mudança na voz dele também. Dizendo sim. Ponho a mão dentro da cueca.

– E aquela bermuda cumprida e justa – acrescenta. – Botas marrons.

– Você tem botas?

– Claro. Todo garoto americano tem botas.

Um apertão. Uma carícia leve.

– Você precisa colocá-las para mim um dia.

– Por quê?

– Eu gosto de botas.

A tensão. Não existe nada parecido com isso. A sensação percorre todos os músculos do meu corpo.

– Ah. – O som é um suspiro.

– Ei, menino rico?

– Oi?

– Abaixe o volume da TV.

Espero, mantendo um ritmo. O barulho de fundo desaparece. Posso ouvi-la respirando.

– O que você acha que eles estão fazendo naquele jardim? – pergunto a ele. – Sabe, quando a câmera se afasta?

Uma pausa.

– Eu nunca pensei nisso.

– Quer pensar agora?

– Talvez.

– Onde estão as suas mãos?

– Mmm... Não sei se vou dizer.

– Coloque uma delas em algum lugar interessante.

Louis aspira, numa espécie de risada, e espero alguns segundos para me certificar de que ele está me obedecendo. Então digo, baixinho:

– Acho que eles começam a se beijar.

– Aham.

– E o beijo vai ficando intenso, e ele o deita no banco.

– Não sei se tem um banco.

– Tem um banco. É comprido e baixo, sem apoio para as costas, então ele pode deitá-lo, se ajoelhar ao lado dele e abaixar o shorts até acima dos joelhos.

– Mas o shorts é justo. Não acho que ele conseguiria abaixá-lo.

– Ele é bom com shorts. Não precisa tirá-lo. Só o abaixa, para que ele sinta o ar nas coxas e comece a se preocupar com a possibilidade de eles serem flagrados. É excitante pensar nisso. Talvez alguém os encontre, o menino bonzinho com as pernas abertas, o bonitão ajoelhado no chão o beijando. Tocando nele.

– Onde ele o está tocando?

– Em todos os lugares, menos onde ele mais quer.

Louis inspira fundo e prende a respiração. Já o ouvi fazendo isso antes. Já vi também. O som provoca uma onda de calor nas minhas bolas e eu deslizo a mão até a base do meu pau e subo de volta. Lentamente.

– O que você está fazendo, Lou?

– O que você quer que eu esteja fazendo?

– Quero você deitado de costas com a bermuda abaixada e as pernas abertas.

Isso me rende um hmmm resmungado.

– Você já está excitado, não está?

– Talvez.

– Este é o meu garoto.

– O que você está fazendo?

– Lou, você sabe o que eu estou fazendo.

– Como da última vez? No Dia de Ação de Graças?

– É.

Ele só respira.

– Agora ele levantou a blusa dele – digo. – Está com a boca na barriga dele. Descendo.

– Ele está nervoso.

– Por quê?

– Nunca fez isso antes. É excitante.

– Ele gosta do seu cheiro. Da maciez de suas pernas, de sua pele tão clara. Ele está usando uma boxer amarela, simples. A boxer dele está molhada, Louis?

Ele meio que guincha e eu fecho mais a mão. Meu Deus, como adoro esse som.

– Me diga.

– Está.

– É, eu imaginei. A boxer dele está encharcada, e ele senta com as pernas abertas em cima do banco e bota o nariz lá embaixo, pressionando o ponto molhado.

– Que tosco.

– Ele é tosco. Por isso ele gosta dele.

– Não é o único motivo.

– Mas é um deles. Ele o acha excitante. Adora saber que ele pensa nele quando não está por perto. Que ele o deixa de pau duro. Que o faz gozar na cama, no chuveiro, mas ele nunca o tocou.

– Meu Deus, que delícia.

Sorrio.

– Por que ele gosta dele? – pergunta Louis.

Preciso pensar nisso. Não é a coisa mais fácil de se fazer com a mão segurando o próprio pau, mas dou um jeito.

– Ele gosta do fato de ele não saber tudo o que ele sabe. De não ter visto as coisas ruins da vida.

– Ele viu mais do que ele pensa.

– Talvez, mas ele ainda tem essa aura, como se as coisas ruins não pudessem realmente atingi-lo.

– Ele detestaria isso. Se ele dissesse que é por isso que gosta dele, ele ficaria decepcionado.

– Mas esse não é o único motivo. Não é nem o principal.

– Qual é o principal?

Tento me concentrar no filme. Não em Louis no sofá, de pernas abertas, se tocando.

– O fato de ele estar naquele closet. Depois que decide o que quer, ele é corajoso. Impetuoso.

– Ele gosta quando ele é impetuoso?

– Gosta. Adora.

De quem estamos falando? Não tenho certeza. Começo a me sentir meio chapado, como se talvez estivesse dizendo mais do que quero, mas na verdade não me importo.

– Harry?

– Hum?

– O que ele faz depois?

– Ele o lambe através da boxer. Enfia as mãos por baixo do elástico, a mantém no banco e o chupa sem parar, até a boxer estar totalmente encharcada e ele praticamente desmaiado.

– Ele gosta disso?

– Demais. Adora deixá-lo desse jeito, sem controle, sem pensar, apenas sentindo... É uma viagem. E gosta da boxer também. Da boxer amarela. Mas ele precisa de mais, então, em vez de tirar a boxer, ele só a afasta um pouco para o lado. Apenas o suficiente para enfiar a língua na fenda dele, onde está macio, inchado e molhado de tesão. Ele quer mais e mais. Então enterra o rosto nele e fica com o queixo e a boca encharcados.

– Harrry.

– O gosto dele é maravilhoso.

– Meu Deus, Harry, eu não...

Eu também não. Estou pensando no pau dele, na sensação dele nos meus dedos, na minha língua. Suas coxas pressionando a minha cabeça, as mãos dele nos meus cabelos, no meu pau. É demais.

– Eu quero você – digo. – Porra, eu quero você.

– Você me tem.

– Aqui, neste sofá, aqui. Eu quero você aqui, Lou. Quero sentir o seu gosto. Quero botar meus dedos dentro de você, quero lamber você. Quero você nu.

Ele está arfando.

– Use a sua mão – digo a ele. – Finja que sou eu. Goze para mim. Quero ouvir.

– Harry.

– Hã?

– Você também.

– Estou quase lá.

E então é apenas respiração. Barulho. Apenas gemidos e grunhidos. Sei o que ele está fazendo, e imagino-o fazendo – sua bunda, seu corpo, os olhos fechados, a boca aberta, a expressão no rosto dele quando o faço gozar...

Minha mão é incansável e rápida, os dedos dele também, e essa é a conexão entre nós neste momento. Não é concreto, não é físico, mas está ali, existe mesmo assim. Não há nada que eu possa fazer a respeito. Nada que eu queira fazer além disso, além de Louis. Nada. Ele inspira sonoramente, diz Agora, e eu gozo com ele, com um grunhido e um jato quente na mão e um pouco no sofá, que merda, vou ter que limpar, mas não me importo. Ele está se esforçando para não fazer barulho, e embora eu consiga ouví-lo, posso ouvir o não barulho que ele está fazendo, e é glorioso. Relaxo um pouco. Me recosto no sofá, fecho os olhos, fico ouvindo-o.

Logo depois eu me sinto como se parte de mim tivesse voltado ao lugar. É tarde. Vou até a estufa, desviando dos cocôs de cachorro no pátio e pensando que devia ter acendido a luz da varanda dos fundos. Piso em alguma coisa mole demais.

– Merda.

Tento limpar a bota na grama, mas não adianta. Agora o cheiro está impregnado no meu nariz e estou com os lábios retorcidos. Encontro um galho e tento tirar a bosta marrom das ranhuras, mas isso não funciona também e acabo tendo que ligar a torneira do jardim. Cubro a ponta de cobre com o polegar e miro o jato bem na sola, espalhando pedacinhos de merda por todo lado. Depois que consigo limpar a bota, as calças estão grudando nas minhas pernas. Estou com frio e furioso, com nojo de tudo. Vou voltar à faculdade em uma semana e toda a minha vida se transformou em um campo minado de bosta.

Quando abro a porta da estufa, não vejo Bo de imediato. Respiro, tentando me acalmar. Não é culpa sua que eu tenha pisado em cocô de cachorro. Não é culpa sua que eu esteja esperando para conversar com ele há dias e nunca encontre o momento certo. Toda vez que tento, ou ele está trabalhando, ou minha mãe está por perto, ou Gemma precisa de ajuda com o dever de casa. Nos últimos dias, Bo se levanta da mesa da cozinha e some por horas a fio, e eu sempre pensei na estufa como seu domínio, o lugar aonde ele vai para ficar sozinho, para não ser atormentado pelo filho da namorada, que está dormindo em seu sofá, comendo sua comida e atrapalhando sua vida. Mas vou embora logo e preciso falar com ele antes. Nenhuma outra pessoa vai me dizer.

Ouço música tocando ao fundo. Sigo o som e a luz e encontro Bo encostado na parede, fumando e soprando a fumaça através de uma vidraça quebrada. Reconheço a música. Metallica. Ele gosta dessas bandas de metal antigas, mas a mamãe não suporta. A estufa é um buraco enferrujado, com muitos dos vidros quebrados. Bo adora este lugar. Gosta de plantar – não apenas maconha, que só cultiva no meio do mato, mas legumes, ervas, todo tipo de coisa. Fala em comprar um liofilizador, para estocar comida e se prevenir do colapso da civilização, mas na prática só enche cestas de tomate, milho e pimenta e deixa na beira da estrada com uma placa dizendo SIRVA-SE.

Bo é baixo, atarracado, com a cabeça raspada e pelos grisalhos no peito que em geral estão à mostra porque ele anda sempre sem camisa ou de camisa aberta. Quando está com o uniforme da prisão – o cinto com o rádio, o telefone, o cassetete e a arma –, parece um fodão. Ele é fodão. E tem as cicatrizes para provar. Certa vez, eu o vi entrar em uma briga de bar. Bo simplesmente destruiu o cara que o provocou. De certa forma, fui para Putnam, e não para a universidade local, por causa dele. Porque confio que vai manter o emprego, cuidar da minha mãe, tomar conta de Gemma, e não se transformar em um tarado ou um filho da puta. Ele ama as duas.

Nunca tive certeza se minha mãe o ama também. Bo precisou convidá-la para sair muitas vezes antes de ela aceitar. Depois, ainda levou alguns meses para ela começar a dormir na casa dele. Minha mãe gosta de estar com ele, gosta da casa dele, mas não acho que aprecie a ideia de ser sua mulher pelo resto da vida. Acho que ela é viciada no meu pai. Naquele barato excitante, tenso e doentio que só consegue sentir com ele. Eu me apaixonei por ele no instante em que o conheci, ela me contou certa vez. Eu tinha 15 anos, e quando ele chegou à cidade naquela motocicleta o mundo parou de girar. Bo não pode competir com isso. Ninguém pode. Eu sei, porque foi dessa forma que me senti na primeira vez que vi Louis. Me sinto assim até hoje. Se há alguma forma de superar essa sensação, ainda não conheço.

Bo bate a cinza em uma lasca de vidro, deixando-a cair no mato do lado de fora da janela.

– O que aconteceu com os policiais? – pergunta ele.

O que quer saber não é se eles vasculharam o apartamento, porque isso eu já lhe contei. Ele quer saber o que eu fiz para chamar a atenção da polícia.

– O ex do garoto com quem estou saindo não gosta muito de mim – digo.

– Você deu algum motivo? Além de roubar o garoto dele?

– Eu não o roubei. Eles já tinham terminado.

Mas de certa forma eu o roubei, sim. No primeiro ano, quando meu quarto era em frente ao dele, eu o observava. Tentava chamar a atenção dele, e Nate sabia. Ele já me odiava naquela época. Tem todo o direito de me odiar.

– Eu briguei com ele. Por falar mal de Louis para as pessoas.

Bo dá uma longa tragada, me observando com os olhos estreitados. Esperando o resto.

– Duas vezes. A segunda vez foi um pouco pior do que a primeira.

Penso em Louis vomitando no meu banheiro. A dor que senti na mão ao acertar o rosto dele. Suas costelas. Aponto para o maço de cigarros no bolso da camisa de Bo.

– Posso fumar um?

Ele levanta uma sobrancelha. Eu não fumo, mas isso não quer dizer que não saiba. Estou precisando de um cigarro, do modo como a nicotina deixa tudo mais nítido, me deixa mais cauteloso, mais esperto. Preciso ficar esperto. Ele me dá um cigarro, e quando eu o coloco na boca e cubro a ponta com a mão em concha ele o acende com seu Zippo.

– O que ele tem contra você? – pergunta.

– Eu o derrubei de uma escada de incêndio. Posso ter quebrado as costelas dele. Agressão, acho. Principalmente se ele foi para o hospital depois.

– Havia testemunhas?

– O amigo dele. E Louis.

Ele assente.

– Eu vendi para o amigo dele – acrescento.

– Mais de uma vez?

– Sim.

– Então ele avisou à polícia.

– Provavelmente. Quero dizer, qualquer um poderia ter feito isso, mas deve ter sido ele. Você acha que eles vão voltar?

– Acho.

Dou uma tragada no cigarro, grato pelo som do papel queimando. Grato por ter essa minúscula fagulha para a qual olhar, essa coisa preenchendo meu peito enquanto prendo a fumaça nos pulmões. É bom ter alguém com quem conversar.

– Você acha que eu devia simplesmente parar de vender? Segurar a onda por um semestre?

– Se você conseguir se virar sem o dinheiro...

Hesito. Dou outra tragada. Reúno coragem e admito:

– Eu acabo mandando a maior parte para a mamãe.

Ele faz um som que não sei bem o que significa. Tipo uma risada, só que com dor entremeada. Mas Bo não está surpreso. Há resignação em sua risada. Ele não diz nada por um bom tempo. Fuma o cigarro até o filtro, larga a guimba no chão de terra e a esmaga com o pé.

– Ela não precisa – diz.

– O que ela está fazendo com ele, então?

Ele dá de ombros.

– Você não faz ideia? – insisto.

– Compra presentes de que eu não preciso. Roupas e porcarias para ela e Gemma. Acho que ela deu dinheiro para uma das primas fazer um aborto, mas não fala sobre isso.

Penso no que ele me contou.

– Ela está indo visitar sua avó uma vez por semana – acrescenta Bo. 

Ele não está se referindo à minha avó materna, que morava na Califórnia, que já morreu. Está falando da mãe do meu pai, me contando que as desavenças de uma década entre a minha mãe e a família do meu pai se resolveram e ela não me disse nada. Que o meu dinheiro está comprando coisas que a família do meu pai precisa – ou quer –, porque a relação da minha mãe com o dinheiro é assim. Se ela tem, dá para qualquer um. Se eu tenho, ela acha que é a mesma coisa que ela ter.

– Ele voltou?

Não preciso dizer a Bo que estou falando do meu pai, e é um alívio conversar com alguém sem precisar dizer o nome dele. À medida que os dias passam, fica mais evidente que as coisas por aqui estão bem fodidas. A 8 quilômetros de distância, morando em um trailer caindo aos pedaços num lugar onde ninguém mora se tiver opção, há um homem com os meus olhos. A minha boca. Ferrando com tudo ao redor com o simples ato de respirar.

– Uma vez eu o coloquei para correr com uma espingarda – comenta Bo.

– O que ele quer?

Bo me lança um olhar de pena e eu dou mais uma tragada no cigarro, olhando para baixo. Foi uma pergunta idiota. Ele quer o de sempre: o que a minha mãe tiver. O coração dela. A boceta. O dinheiro. O orgulho. Quer a lealdade de Gemma. Quer conquistar todo mundo, quer que todos fiquem do seu lado, que sintam pena dele, que se coloquem em seu lugar e digam Puxa, ele sofreu muito, mas é um cara legal. Que bom que as coisas estão dando certo para ele desta vez. Que bom que ele tomou um rumo na vida. Ele quer fazer a minha mãe se apaixonar por ele de novo e depois, quando ela já estiver tão cega de amor que não vai mais lembrar o que aconteceu antes, quer dar um soco no estômago dela. Na última vez que vi meu pai, ele me chutou como se eu fosse um cachorro sarnento. Cuspiu em mim. Me deixou lá, com o lábio cortado, encolhido de dor. Não sei por que minha mãe não consegue compreender. É isso que ele quer.

– Ela o viu?

Bo fica em silêncio por um longo tempo. Chego a pensar que não vai responder. Ele muda um banco de lugar, limpa um montinho de terra derramada, tira as folhas secas de uma planta.

– Enquanto eu estava na Califórnia vendendo a safra do ano.

– Ela contou para você?

A expressão dele fica sombria.

– Você acha que eu a deixaria continuar morando aqui se ela tivesse me contado? Fiquei sabendo por um cara que conheço. Ela diz que é mentira.

– Mas você não acredita.

– Ainda não decidi. Mas você sabe o que vai acontecer se eu descobrir que ela está saindo com ele pelas minhas costas.

Porra. Sim, eu sei o que vai acontecer. Ele vai atirá-la na rua, e ela vai merecer. E a Gemma também. Bo não vai criar uma menina de 9 anos que não é filha dele. Não sem a minha mãe na sua cama.

Ele se aproxima de mim e põe as mãos nos meus ombros.

– Eu não queria que as coisas fossem assim.

Não consigo encará-lo. Olho para as estrelas e termino o cigarro. É o peso do passado, suspenso sobre as nossas cabeças por uma corda desgastada. É uma mulher com uma faca na mão, podendo cortar algo que arruinaria minha vida. A de Gemma. A de Bo. A sua própria vida. É assim, e não há nada que eu possa fazer a respeito. Gemma se atira por cima das costas do sofá, pressionando meu pescoço com o antebraço.

– Você precisa mesmo ir?

Viro o tronco para trás e a agarro pela cintura, puxando-a para meu colo. Gemma é tão leve, as perninhas tão finas... Parece ter o peso de um passarinho. Faço cócegas até ela começar a gritar.

– Pare, Harry! Pelo amor de Deus, pare, por favor! Harry!

Eu a levanto, e ela se desvencilha de mim. Está vestindo calça jeans, meias grossas, uma blusa com pequenos zíperes nos ombros que não é quente o bastante para o inverno nem adequada à sua idade. Minha mãe e Bo foram trabalhar. Estamos apenas Gems e eu em casa e eu preciso pegar um ônibus que vai me levar ao aeroporto. Preciso voltar para a universidade. Estou indo embora, mas não acho que vá ficar longe por muito tempo. Desde aquela noite na estufa com Bo, posso ouvir o tique-taque do relógio. Os ponteiros voam pelo mostrador como em um filme, se fundindo, saindo de foco, até o horário ficar quase invisível. Nada faz minha mãe ficar com um brilho nos olhos por muito tempo. Suas mãos estão irrequietas, e suas respostas, evasivas. Dentro de semanas – meses, se eu tiver sorte –, vou receber uma ligação que vai me fazer largar tudo e vir para casa. E a verdade é que eu não preciso estar em Putnam mesmo. Nunca precisei.

Eu disse a mim mesmo, quando saí de casa para estudar, que estava fazendo isso por Gemma e pela minha mãe, mas eu poderia cuidar melhor delas se ficasse aqui. Se me matriculasse na universidade local. Ficaria de olho na minha irmã e manteria meu pai fora daquele trailer. Eu fui para Putnam porque quis. Queria saber quem eu poderia ser se não estivesse preso a este lugar. O que eu conseguiria realizar sozinho. Qualquer coisa, Louis me diria. Você pode fazer qualquer coisa. Ele acredita nisso também. Louis jamais conseguiria compreender como um pensamento desses pode ser egoísta. Como eu sou egoísta por ter ido embora uma vez e por estar prestes a ir de novo, sabendo como as coisas estão.

Gemma sorri para mim, respirando fundo, as clavículas saltando da gola da blusa, o lábio inferior rachado, os dentes um pouco grandes demais para o rosto dela. Está com uma coisa preta ao redor dos olhos e brincos que vão quase até os ombros. Ela tem 9 anos. Precisa de alguém para estabelecer limites, mandá-la dormir, dizer para ela sair do telefone e ir lavar o rosto. Precisa de mim para lhe ordenar que faça o dever de casa e para lidar com a mamãe, que só consegue ser uma mãe decente se tiver alguém por perto para obrigá-la a fazer isso. Minha irmã precisa de mim.

Sou tomado por um ressentimento sombrio e venenoso. Queria conhecer alguma forma de devolvê-lo. Se soubesse como parar de gostar – se me tornasse tão desleal quanto meu pai –, poderia voltar para Putnam e ficar lá, só mandando cartões para Gemma em seu aniversário. Poderia me reinventar como o Harry de Louis, com horizontes amplos e opções infinitas.

– Vou ficar com saudade – diz minha irmã.

Cerro os punhos e preciso fechar os olhos.

Eu deixaria você para trás, se conseguisse. Queria conseguir. Mas abro os olhos e digo a ela:

– Eu também. Estarei de volta em alguns meses. Aí levo você a algum lugar legal. Portland, quem sabe?

– É mesmo? Que tal São Francisco? Keisha disse que tem leões-marinhos lá, e que tem uma loja com todos os tipos de chocolate. A gente devia ir lá.

– É. Acho que podemos ir a São Francisco. Talvez acampar no caminho. Ver as sequoias.

– Acampar? De jeito nenhum. Acampar é um saco.

– Quando foi que você acampou?

– Eu sei como é! A gente dorme em barracas, não toma banho e aranhas caem na nossa cabeça. Não, obrigada.

Eu também nunca acampei. Mas quem poderá levá-la senão eu?

– Nós podemos fazer uma fogueira. Assar marshmallows. Podemos encontrar um lugar com chuveiro.

– Uma fogueira seria legal. Mas tem que ter chuveiro. E você precisa matar todas as aranhas.

– Posso dar um jeito nisso.

O que quer que ela precise, eu posso dar um jeito. Que escolha eu tenho?

Eu me levanto.

– Me dê um abraço de despedida.

Ela se levanta e passa os braços ao redor do meu corpo. Beijo o topo de sua cabeça. Os cabelos são macios. Têm cheiro de produtos químicos cor-de-rosa e acabam com todo o ressentimento que eu estava sentindo. Percorremos a entrada da garagem juntos. Ela fica falando sobre São Francisco. Enquanto eu me afasto da casa, ela fica olhando para mim do meio da rua. Acena sempre que me viro. Ela pertence a mim, e eu não posso fazer nada a respeito disso. São 8 quilômetros até a cidade, mas dou sorte e consigo carona com um dos vizinhos de Bo. Olho a paisagem pela janela do carro. Branco e dourado, bege e marrom, o céu amplo e implacavelmente azul. Não parece Iowa. Parece comigo. Essas cores são as que me formam, a terra deste lugar está nos meus ossos, sedimentada em meu coração. Não posso continuar sendo duas pessoas. O relógio está correndo, meu tempo está quase acabando e eu não vou enrolar Louis, deixá-lo pensar que sou outro cara, uma pessoa diferente, outra versão de mim mesmo, quando não sou. Não posso ser. Eu pertenço a Gemma. Não posso pertencer a Gemma e manter a relação com Louis. Queria poder, mas não há como. Todas as vezes que beijei Louis, eu a puxei para mais fundo. Mais fundo, mais fundo, até que não consegui voltar para casa sem trazê-lo comigo.

– Esta é a foto do meu namorado – falei à minha mãe. – O bonito.

Sentei no sofá de Bo, no escuro, e disse ao Louis:

– Quero entrar em você. Quero você aqui.

Mas eu estava fingindo. Não existe um mundo que possa conter Gemma, minha mãe e Louis juntos, todas pertencendo a mim. Me meti em uma baita confusão. O resumo é este. Uma porra de uma confusão terrível. Louis está dentro de mim, faz parte de mim, e agora eu preciso eliminá-lo.

-

Oioi! Espero que estejam todos em casa, se protegendo e lavando as mãos durante essa época de merda.

Bem, tem alguns detalhes sobre a adaptação desse capítulo que preciso explicar: Na parte original da história do sexo por telefone, a protagonista cita, na verdade, o filme The Breakfast Club (um filme muito bom, aliás, recomendo), falando sobre a cena de romance do Judy Nelson e da Molly Ringwald no armário, só que eu preferi fazer uma mudança para o filme Call Me By Your Name (outro filme que eu amo de paixão, assistam) porque, na minha opinião, se encaixava mais com a adaptação, já que esse filme é sobre um romance gay. Então, me desculpem se houver algum erro nessa parte, ou se não curtirem muito, eu fiz o meu melhor pra se assemelhar a parte original da história e não mudar muita coisa.

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