Sinner Like You

By NathyLopez997

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Steven Engel foi criado por pais extremamente religiosos e conservadores e, apesar de não pensar muito a resp... More

Prólogo
Cap. 1 - A Bolha
Cap. 2 - À Flor da Pele
Cap. 3 - Surpreendente
Cap. 4 - "Quente Como Eu..."
Cap. 5 - III
Cap. 6 - Salvo Pela Coruja
Cap. 7 - Partindo Corações
Cap. 8 - Apolo
Cap. 9 - O Destino das Moscas
Cap. 10 - Santa Mônica
Cap. 11 - Como uma Roda Gigante...
Cap. 12 - A Família Pierce
Cap. 13 - Homens não choram
Cap. 14 - "Enquanto Eu Estiver Por Perto..."
Cap. 15 - Incrível
Cap. 16 - "Siga o Seu Próprio Caminho..."
Especial de Natal
Cap. 17 - Pesadelo

Cap. 18 - Fotografia

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By NathyLopez997

 Brittany Pierce

    "Eu fodi com tudo!", era essa a sensação que eu tinha naquele momento.

    Sentada no no chão do meu quarto, com minhas costas apoiadas na porta, eu ouvia os gritos de Valquíria em absoluto silêncio.

    Por Deus... Tudo o que eu mais queria naquele momento era entrar lá, abraçá-la e garantir que tudo ficaria bem mas, depois das merdas que eu havia feito e dito...

    "Ela não vai querer me ver nem pintada de rosa!", essa era minha única certeza, sozinha na escuridão, com lágrimas nos olhos e o coração apertado pela impotência.

--------

    No domingo de manhã, eu havia me arrastado para fora da cama com os músculos rígidos, o corpo inteiro dolorido graças à noite mal dormida, e gemi em frustração ao notar minha pele extremamente desbotada e as olheiras enormes que criavam sombras fundas sob meus olhos - mas nada podia ser pior que o clima tenso que me esperava à mesa do café da manhã.

    À despeito do céu ensolarado da Califórnia, Michael se encontrava mais invernal do que nunca... O moletom preto acentuando sua palidez, quase doentia graças ao abatimento, o cabelo desgrenhado meio caído sobre o rosto exausto, cobrindo parcialmente uma de suas olheiras profundas; os dedos compridos brincando distraidamente com uma garrafinha de ginger shot¹ orgânico enquanto suas íris se mantinham pregadas em cada mínimo movimento de Valquíria, quase como se ele esperasse que a qualquer momento ela fosse se partir; e eu não podia dizer que era exatamente um exagero, já que minha irmã parecia ainda menor e mais frágil que de costume, os ombros arriados e encolhidos, o rosto avermelhado e inchado pelo choro...

    Definitivamente, não era uma cena agradável de se ver.

    Nossos pais, como sempre, pareciam conversar por telepatia, nos avaliando minuciosamente enquanto trocavam olhares significativos que me faziam estremecer - e eu já não sabia mais se eram esses mesmos olhares que me encaravam de forma repreensiva ou se era apenas eu, me sentindo culpada o suficiente para ver acusações contra mim em todos os lugares ao meu redor.

    "Provavelmente, a segunda opção...", me lamentei em silêncio, bufando ruidosamente ao sentir uma fisgada de dor de cabeça se instalando nas laterais do meu crânio.

    - Tudo bem com você, Ratinha? - A voz preocupada de Agatha chamou minha atenção para o tempo que eu havia gasto debruçada sobre a mesa, a bochecha espremida contra o punho fechado, minha atenção vagando pelo nada.

    Ajeitei minha postura imediatamente com o susto:

    - Tudo ótimo! - Exclamei, provavelmente mais empolgada do que deveria, forçando um sorriso que pareceu rasgar meu rosto, forçando minhas bochechas através de uma máscara rígida.

    Mamãe me observou atentamente por um instante, trocando mais um olhar grave com Christopher, sentado ao seu lado, a sobrancelha dourada se erguendo em um arco enquanto ele empurrava os óculos para cima sobre a ponte do nariz, parecendo ter entendido tudo o que ela queria dizer - me custou um esforço sobre humano para obter o autocontrole necessário a fim de não bater minha própria cabeça na quina da mesa, simplesmente por que eu sabia que nada estava bem naquele momento. Absolutamente nada!

    Mas, dizer isso em voz alta implicaria em dar explicações que nem eu mesma tinha, explicações essas que, muito provavelmente, me renderiam olhares decepcionados e sermões infinitos sobre respeito e responsabilidade emocional.

    Sim, eu sabia que merecia cada um deles; e, SIM, eu os evitaria a qualquer custo.

    "Merda, Brittany! Você pode mentir melhor do que isso!".

    - Você tem certeza, querida? - Foi papai quem perguntou após um instante, os lábios apertados em uma linha fina - Nem ao menos tocou na comida...

    Eu não havia...?

    Franzi a testa ao olhar para baixo rapidamente, constatando que ele tinha razão.

    Meu prato continuava imaculadamente limpo, a louça branca brilhando suavemente com a luz do sol que entrava através da janela aberta, minha caneca de leite com canela, que eu não fazia ideia de quando havia sido preparada, já se encontrava fria entre meus dedos e, mesmo que eu costumasse acordar com extremo apetite todos os dias, naquele momento, nenhuma das frutas ou pães diante de mim me despertavam qualquer tipo de interesse.

    - E-eu... - Gaguejei distraidamente, voltando minha atenção para meus irmãos que, pela primeira vez no dia, pareciam ter notado minha presença, me encarando com alguma curiosidade em suas expressões vagas. Simplesmente não encontrei coragem para sustentar seus olhares magoados, tentando desesperadamente pensar rápido para arrumar uma maneira de sair dali - Eu marquei de tomar café da manhã com a Danny... - Foi a primeira desculpa que cruzou meus pensamentos.

    - Mas... - Qualquer que fosse a objeção de Agatha, acabou atropelada pelo som irritante de madeira contra o piso quando arrastei minha cadeira para longe da mesa.

    - Sinto muito, mamãe... - Me inclinei para beijar sua bochecha desajeitadamente antes de iniciar uma caminhada apressada para longe da mesa, respondendo-a por sobre o ombro - Já estou super atrasada... Preciso ir!

    - Querida... Você não vai, ao menos, trocar de roupa? - Ainda pude ouvir seu grito por trás de mim.

    No entanto, já era tarde demais, e eu corria para fora de casa, através da porta da cozinha, me lembrando apenas de pegar minhas chaves no armário de casacos próximo à saída.

--------

    Eu simplesmente não sabia como havia acabado no meio do Alondra Park, sentada diante do lago, observando os patos...

    Entretanto, ali estava eu, usando os óculos de sol em formato de coração, que eu havia milagrosamente encontrado no porta luvas do meu carro; e que, por um acaso do destino, combinavam perfeitamente com os corações cor de rosa estampados no fundo azul marinho do meu short curto de pijama.

    Revirei os olhos para mim mesma - eu era um completo desastre!

    Por pura sorte, eu fora dormir com uma camisa de botões de seda branca na noite anterior e, com ainda mais sorte, tinha encontrado um par de sapatilhas de Valquíria sob o banco do carona; inclusive, era graças à elas que agora eu não me encontrava "observando os patos... com pantufas do Chewbacca".

    Uma risada tosca me escapou por entre os lábios ao constatar esse fato - e eu daria qualquer coisa para saber o que minhas amadas Polares, sempre tão preocupadas com a nossa "conduta social" como membros do time da escola, diriam caso vissem sua nova capitã naquele momento de rebeldia fashion...

    Eu quase podia visualizar Cotton surtando dramaticamente; sua voz, já bastante aguda, subindo algumas oitavas, completamente em pânico - enquanto Brooklyn diria, em meio à gargalhadas, que uma It Girl² precisava estar sempre antenada e lançando tendências.

    Ri novamente com o pensamento bobo, chegando à conclusão de que aquela moda, muito provavelmente, não vingaria. O que era uma pena, levando em conta que eu me sentia extremamente confortável sob o sol morno daquela manhã californiana - "E, claramente, não sou a única aproveitando a dose extra de vitamina D", eu pensei com um sorriso nos lábios, admirando os patinhos no lago, que grasnavam em uma completa algazarra, batendo suas asas de penas escuras lustrosas e espalhando água para todos os lados.

    Era uma cena tão bonitinha... O modo como eles nadavam ao redor uns dos outros ou trocavam bicadinhas afetuosas... Criando uma bagunça de sons que acabou fazendo com que várias das pessoas praticando exercícios ao redor parassem para observar a brincadeira enquanto outros mostravam para seus filhos o momento de "diversão animal" que acabou rendendo gargalhadas entre as crianças; entrementes, eu me via no impulso imediato de sacar meu celular para filmar a cena e enviar à Danny, simplesmente por saber o quanto ela odiava aquelas aves adoráveis, mas interrompi o movimento no meio do caminho, meu sorriso se quebrando ao lembrar de nossa discussão na tarde anterior:

    - Merda! - Resmunguei sozinha, coçando meus olhos que ardiam pelo cansaço da noite insone, antes de embolar meus cabelos para cima, os prendendo em um nó com os dedos; minha mente correndo rápido na tentativa de avaliar os fatos.

    A grande, e dolorosa, verdade era que eu reconhecia meu erro. De fato, eu o reconhecera no instante em que vira a dureza raivosa nos olhos de Danny, mas, à esse ponto, eu já me encontrava completamente sem controle de minhas ações. Todo o medo inexplicado e a confusão emocional que eu vinha experimentando nas últimas semanas haviam se acumulado em uma enorme bola de neve de frustrações, tendo como a gota d'água, ou "derradeiro floco de neve" aquela estúpida e vergonhosa tentativa de beijar Steven - simplesmente rolando montanha abaixo, atropelando todos e qualquer um que se metesse no caminho.

    Eu ainda podia sentir meu corpo esquentar em vergonha ao pensar naquilo...

    Como eu havia conseguido ser tão epicamente burra para simplesmente beijá-lo? Steven nunca havia me dado qualquer indício de interesse - a bem da verdade, se eu fosse honesta comigo mesma, ele nem ao menos parecia realmente gostar de me ter por perto. O olhar sempre distante... Os sorrisos perfeitamente ensaiados... Como se mal pudesse esperar pelo momento em que, finalmente, estaria livre de mim.

    Mas, eu não me sentia preparada para ser honesta naquele momento. Não sobre isso, pelo menos... Então, bufando entre os dentes, admiti que não podia simplesmente fugir de todos os meus problemas para sempre e que, se eu precisava partir de algum ponto, que fosse do que eu sabia ter mais chances de sucesso imediato.

Ainda está muito brava comigo?

    Foi a mensagem que enviei para Danny, começando a experimentar os efeitos do calor enquanto aguardava por quase cinco minutos antes de sentir meu celular vibrar entre meus dedos:

Sim!

    Sua resposta veio sucinta, seguida por outras alguns segundos depois:

Mas, se você me pagar o café da manhã, e me der uma carona para o trabalho...
Posso pensar com mais carinho no seu perdão...

    Aquilo me fez rir - além de aliviar um pouco do peso que sentia sobre meus ombros:

Vou ter que ficar te devendo o café,
esqueci minha carteira em casa...
Você ainda não largou essa droga de emprego??

    Eu podia imagina-la revirando os olhos quando li os próximos textos:

É a minha última semana lá...

E não fale assim ou eu juro que te jogo no tanque dos tubarões!!

    Foi a minha vez de revirar os olhos:

Chego aí em 15 minutos!

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    Quando desci de meu Mini Cooper na vizinhança de classe média, gastei alguns instantes examinando a casa dos Abrams, apenas para concluir que nada havia mudado desde a última vez que eu estivera lá.

    A residência de dois andares, toda construída em madeira e pintada em um tom de amarelo bem clarinho, ainda parecia um pequeno raio de sol, perdido - apesar de perfeitamente encaixado - no coração da Lombard Street, com todas as suas árvores artisticamente podadas e jardins floridos ao redor.

    As janelas de madeira branca delicada se encontravam abertas naquela manhã e a caminhonete velha de Joey não podia ser vista em lugar nenhum, o que parecia destacar ainda mais o colorido das margaridas que tomavam a frente do quintal; o cenário perfeito para o "Felizes Para Sempre" de qualquer casal água com açúcar em um romance barato - exceto, é claro, pelo menino usando roupas escuras, sentado de forma quase desleixada em um dos degraus que levavam até a pequena varanda da casa, com seu violão preto entre as mãos.

    E eu sorri de nervoso pela constatação do quanto Joey e Michael eram ridiculamente parecidos, tomando mais algum tempo para observar o menino negro que dedilhava as cordas do instrumento distraidamente, lentamente espalhando a melodia suave de "Photograph" aos quatro ventos:

    - Não acha que é uma música muito melancólica para começar um dia de verão? - Perguntei, assim que me aproximei o suficiente, vendo Joey dar um pequeno pulinho pelo susto, seus olhos cor de mel se erguendo na minha direção imediatamente, uma expressão emburrada se formando em seu rosto bonito.

    - Que merda, Brittany! - Ele praguejou entre os dentes - Bom dia para você também! Nós não dormimos juntos na noite passada...

    - Apenas por que você não quis... - Gracejei de volta, um sorriso enorme rasgando meus lábios quando Joey franziu a testa para mim - Isso vai te causar rugas antes dos trinta! - Indiquei os vincos em sua pele cor de chocolate.

    - Não pretendo chegar tão longe... - Ele deu de ombros com sua piada sem graça, tentando segurar uma risada que acabou soando como um grunhido rouco, as íris claras me varrendo da cabeça aos pés antes que eu pudesse rebater - Posso saber por que diabos a senhorita está de pijamas no meio da rua? - Questionou seriamente, me puxando pelo braço para que me sentasse ao seu lado.

    E a confusão em seu rosto era tão bonitinha que acabei gargalhando de forma escandalosa enquanto me ajeitava no degrau de madeira, erguendo os óculos de sol para o topo da cabeça:

    - Na verdade... Não pode, não - Sorri largamente, recostando minha cabeça em seu ombro e fechando meus olhos - Mas, pode voltar a tocar...

    Joey bufou sonoramente:

    - Você abusa da minha boa vontade - Resmungou, me fazendo sorrir ainda mais quando, alguns segundos depois, a melodia de "Photograph" voltou a nos cercar.

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    Eu já começava a me sentir mole no calor crescente, quando a voz de Danny nos despertou do momento "domingo musical" em um tom surpreso:

    - O que diabos vocês dois estão fazendo aqui fora?

    - Por Deus... - Resmunguei ao me levantar preguiçosamente, esticando meus braços acima da cabeça em meio a um bocejo - Vocês praguejam demais!

    Danny me encarou duramente por alguns segundos, crispando o cenho para concluir o óbvio:

    - Você está de pijamas!

    Revirei meus olhos, irritada:

    - Por que diabos vocês se importam tanto com o meu maldito pijama?

    - Agora é você quem está praguejando... - Joey coçou a nuca, um sorrisinho cafajeste nos lábios grossos à despeito do olhar falsamente inocente.

    Nós duas apenas nos encaramos, praticamente gaguejando, enquanto ele dava de ombros, recolhendo seu violão do chão tranquilamente:

    - Por Deus! - Danny se irritou afinal, erguendo os braços de forma imperativa - É cedo demais para toda essa confusão de merda... E eu preciso de café!

    Então, girando nos calcanhares, voltou para dentro à passos firmes; seu irmão, claramente segurando a vontade de rir ao passar diante de mim, foi pelo mesmo caminho e, revirando os olhos mais uma vez, me vi obrigada a imitá-los - me deparando novamente com aquela residência simples e bem cuidada, que era ainda mais bonita e delicada por dentro, exatamente como uma daquelas casinhas de bonecas que, geralmente, só se vê em filmes.

    Mais uma vez, me apaixonei pelas paredes da sala de estar, também pintadas em amarelo clarinho, que pareciam capazes de manter a luz ali dentro, e pelos móveis de aparência frágil que compunham o ambiente com suavidade; um divã azul bebê sob a janela à minha direita combinando perfeitamente com o sofá branco encostado à parede de fundo, meticulosamente centralizado de frente para a bela lareira de pedra clara que se encontrava praticamente ao lado da porta de entrada, ostentando orgulhosa a história dos irmãos Abrams em uma considerável coleção de porta retratos retrô feitos em louça colorida - ou, pelo menos, a parte feliz dessa história...

    Eu já havia perdido algum tempo admirando aquelas fotos antes, observando os registros de Joey e Danny ao longo da infância, as várias fases de seu crescimento registradas ali, além, é claro, de duas ou três onde os gêmeos dividiam espaço com uma bela mulher de pele clara e cabelos negros cacheados e, até mesmo, a mais recente aquisição daquela pequena exposição, uma Polaroid emoldurada diretamente do último natal; quando os Abrams haviam aceitado passar o feriado cristão com minha família e, após a troca de presentes, todos nós acabamos em frente à enorme árvore na sala de música, posando em nossas roupas vermelhas festivas.

    Era um tanto surreal como absolutamente nada naqueles sorrisos congelados no tempo demonstrava ou, ao menos, deixava transparecer qualquer indício de que aquela pequena família havia enfrentado sérias dificuldades ao longo dos anos - e, mesmo conhecendo parte da história sobre como aquele lugar costumava ser bem diferente alguns anos atrás, eu tinha dificuldades em acreditar...

    E duvidaria de absolutamente tudo se o próprio Joey não houvesse me contado em uma de suas noites de bebedeira...

    A história de Camila González, uma jovem de origem cubana, nascida em uma família disfuncional de imigrantes ilegais que, em algum momento, haviam perdido sua guarda para a justiça da Califórnia. Era triste imaginar a pequena Camila, uma criança de não mais que dez anos, assustada e completamente perdida ao se ver sendo retirada de seus pais, obrigada a morar em lares temporários completamente despreparados - e provavelmente tão problemáticos quanto os próprios Gonzáles - pelos próximos oito anos de sua vida.

    Joey falava da mãe com extremo carinho, os olhos brilhando em meio ao álcool enquanto contava sobre como ela fora forte em se manter de pé, apesar de todas as adversidades; Danny, por outro lado, parecia guardar ressentimentos profundos à respeito da mulher, evitando o assunto a qualquer custo.

    Eu não tinha conhecimento profundo dos fatos, sabia apenas que Camila, aos vinte e poucos anos, trabalhava dia e noite como garçonete, lutando para conseguir dinheiro suficiente e, finalmente, poder realizar seu maior sonho: estudar para ser assistente social. Joey diria, para quem quisesse ouvir, que sua mãe mantinha dentro de si o desejo de ajudar famílias e, principalmente, crianças que estivessem passando pelo mesmo que ela passara um dia; e contava também sobre como, em um de seus trabalhos noturnos, em algum bar refinado em West Hollywood ela acabara conhecendo quem pensou que seria seu príncipe encantado, o cavaleiro de armadura branca capaz de salvá-la da realidade miserável em que vivia - e fora ingênua o suficiente para lhe dar seu coração sem pestanejar.

    Os dois haviam passado um verão inteiro juntos... Entre passeios na praia ao pôr do sol e tardes preguiçosas em quartos de hotéis caros, Camila só tinha olhos para ele, completamente apaixonada pelo homem bonito e educado que a tratava como alguém digna de atenção e respeito pela primeira vez em sua vida, se deleitando com o jogo de palavras bonitas que ele despejava em seus ouvidos, sempre preparado para todos os momentos...

    Dwight Abrams lhe jurara amor eterno em uma noite estrelada em Malibu; mas, fugira na manhã seguinte ao saber de sua gravidez.

    Dwight era o único herdeiro de um império do ramo imobiliário em Nova York - não pude me conter antes de pesquisá-lo na internet - e, ele sim, parecia ser o alvo de todo rancor presente nas palavras de Joey enquanto contava aquela história.

    Eu ainda era capaz de me lembrar perfeitamente de sua expressão, o cigarro de maconha entre os dedos, substituindo a oitava ou nona lata de cerveja vazia que encontrara seu fim em algum canto do terreno poucos minutos atrás, enquanto disparava toda sua fúria para as estrelas:

    - O desgraçado só nos registrou por medo - Ele praticamente rosnou, a língua se enrolando sem muito controle dentro da boca - Dwight sabia o escândalo que seria se mamãe fosse aos tabloides... Eu adoraria ver a manchete... - Joey riu sem humor - "Herdeiro dos Abrams se recusa a pagar pensão para seus bastardinhos latinos". Seria épico!

    O garoto negro me olhava do alto, quase como se esperasse minha opinião mas, de um jeito esquisito, eu sentia que seus olhos apenas me atravessavam direto, sem nem ao menos me ver de fato, e, já que eu não fazia ideia de como consolá-lo, resolvi ao menos matar minha curiosidade:

    - O que aconteceu com ele? Quero dizer... Depois...

    - Depois de abandonar uma mulher grávida com depressão? - A pergunta retórica veio em meio à um vacilo preocupante de seu corpo, inclinando-se precariamente para frente antes de cair sentado no gramado ao meu lado, soltando um gemido de dor - Ele se casou... - Joey resmungou, após mais uma tragada profunda - Finalmente se casou com a noiva que enrolava a anos... Não é hilário? - O garoto perguntou, já de olhos fechados quando jogou o tronco para trás, a fim de se deitar, a amargura tingindo suas palavras em vermelho - No fim das contas, minha mãe não passava da maldita despedida de solteiro.

- Hey... - A voz de Joey me despertou para a realidade e eu me voltei em sua direção apenas para encontrá-lo me encarando, os braços cruzados sobre o peito alto e o cenho franzido em uma careta de preocupação que, claramente, era puro deboche - Está tudo bem, B? Algo errado com a nossa lareira?

    Revirei meus olhos para a figura musculosa diante de mim, pensando no quanto era difícil associá-la ao rapaz emocionalmente destruído em minhas memórias... Aquele Joey simplesmente não parecia a mesma pessoa mas, de qualquer forma, ele ainda me encarava esperando por uma resposta, então, apenas chacoalhei minha cabeça afastando aqueles pensamentos:

    - Está TUDO errado! - Respondi finalmente, em tom de provocação, indicando o espaço atrás de mim por cima do ombro - Eu pensei que, à essa altura, isso aqui já teria virado um altar em minha homenagem, mas você só me decepciona...

    - Ah... Claro... - A gargalhada divertida de Joey se espalhou pelo ar enquanto ele caminhava até mim, suas mãos quentes envolvendo minhas bochechas e as íris cor de mel pregadas nas minhas profundamente - Está para nascer pessoa mais convencida de si mesma do que você, Brittany Pierce...

    - Ah... Qual é, Joseph Abrams...? - Bufei exasperada, pondo ênfase na pronúncia de seu nome só por saber o quanto o irritava - Nós dois sabemos que você me ama...

    Eu precisei segurar uma risada quando ele praticamente rosnou para mim, nossos rostos ainda muito próximos; seu sorriso lateral, que era sexy como o inferno, me distraindo do foco principal da conversa, atraindo minha total atenção para os lábios grossos e convidativos diante de mim:

    - Não deixe lhe subir à cabeça, baixinha... - O hálito de menta soprou meu nariz, e eu nem ao menos pude responder qualquer coisa, me sentindo um tanto zonza, antes que ele simplesmente me desse as costas, seguindo novamente pelo caminho que eu sabia levar até a cozinha - Você vem ou não?

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    O café da manhã havia sido comum e tranquilo, um banquete de suco de laranja industrializado, pizza dormida gelada, leite de caixinha e três tipos de cereal diferentes... Michael teria desmaiado diante da mesa, eu comi tanto quanto pude, minha fome matinal finalmente me atingindo com toda a força.

    Agora, dirigindo à caminho do trabalho de Danny, - no aquário de Santa Mônica - eu podia sentir seu olhar queimando minha pele, silenciosamente demandando atenção enquanto eu mantinha meu foco na estrada pelo máximo de tempo que me era permitido...

    O que, obviamente, não foi muito:

    - Ok... Se era para se esforçar tanto apenas me ignorando, não seria mais fácil fazê-lo à distância? - A voz de Dee tinha um fundo de irritação que não me passou despercebido.

    Eu respirei fundo por um instante:

    - Não sei do que você está falando.

    - Ah... Claro... - Danny deu de ombros simplesmente, com aquele desinteresse falso que eu já conhecia a tempos; e eu travei meu maxilar por saber o que viria à seguir - Estou falando daquele dragão azul sobrevoando o carro lá fora! - Danny prosseguiu, numa naturalidade tão absurda que, por um segundo, eu cheguei a procurar alguma coisa no céu...

    Antes de abrir um sorriso por entender a referência:

    - Não me iluda com uma visita de Safira! - Reclamei.

    - Não seja idiota e pare de evitar o assunto! - Exigiu, matando minha animação imediatamente e fazendo com que eu chocasse a cabeça contra o encosto da poltrona.

    "Merda!" ,praguejei em silêncio; concluindo que, muito provavelmente, ter ido até Danny não havia sido minha ideia mais brilhante dos últimos tempos. Principalmente quando eu sabia que, provavelmente, ela era a única pessoa completamente imune ao meu charme - também conhecido como "a arte milenar de enrolar pessoas com um sorriso e uma piada" - em todo o mundo.

    Eu tinha total consciência de que Dee merecia respostas, afinal de contas, eu a havia magoado - não apenas ela - e precisava me desculpar. Mas, pelo quê, exatamente? Era bem difícil pedir desculpas quando eu nem ao menos sabia o que me levara até aquele ponto de explosão ou sequer me lembrava de metade do que acontecera.

    Eu só...

    - Eu não sei por onde começar... - Deixei as palavras escaparem de mim por entre os dentes, junto com o ar de meus pulmões que eu nem sabia que estava prendendo - Não sei o que você quer ouvir... - Me rendi, finalmente, por que era como me sentia e, se havia a necessidade de admitir, então que fosse para minha melhor amiga.

    Definitivamente, não estava sendo fácil - e eu podia observar os nós dos meus dedos ficando brancos contra o volante de couro bege, apenas a respiração profunda e lenta de Danny soando ao redor; o silêncio corroendo meus nervos, me deixando aflita por algum tempo, antes que suas próximas palavras atravessassem meu corpo em um estalo:

    - Encosta o carro! - Era uma ordem.

    - O que?

    - Vai pro acostamento. Para o carro agora!

    Certo... Aquilo me pegou de surpresa.

    Franzi o cenho em total confusão, desviando meus olhos da estrada por alguns segundos apenas para encontrar um par de íris de mel me encarando com total seriedade; eu estava esperando qualquer coisa, menos isso; mas seu olhar firme confirmou minhas suspeitas de que não era uma brincadeira e, sendo assim, não exitei em jogar o veículo para o acostamento, ligando as setas antes de pará-lo definitivamente.

    "Talvez Dee tenha visto uma barata no painel...", foi o que pensei brevemente. "Ou um escorpião, até...", tudo era possível quando se morava tão perto de uma área desértica e, levemente em pânico, procurei ao nosso redor algum vestígio de qualquer animal peçonhento - Danny, no entanto, ainda mantinha total atenção em mim:

    - O que diabos foi isso? - Perguntei exasperada quando finalmente me voltei para ela.

    Seus olhos, espremidos em fendas, faiscaram na minha direção:

    - Sou eu quem faz as perguntas aqui, mocinha... - Abrams rebateu, determinada - Desde quando Brittany Athena Pierce simplesmente fica nervosa e "não sabe o que dizer"?

    Aquilo me atingiu como um raio.

    "Era brincadeira, certo? Ela não me faria parar no meio da auto-estrada por causa disso... Faria?"

    - Oh... MERDA DANIELLE! - Eu praticamente berrei ao notar que, SIM, ela havia me feito parar em plena rodovia para absolutamente nada, e deixei minha cabeça cair entre minhas mãos com força, bem sobre a buzina, que disparou um som odioso ao nosso redor me fazendo dar um pulo com o susto - MERDA! - Praguejei novamente socando o volante pelo simples impulso da raiva, o que, obviamente, fez com que eu batesse de forma totalmente torta, uma dor aguda subindo através do meu punho, me obrigando a recolhê-lo contra o peito em um gesto protetor - Oh... Mas que MERDA!

    Xinguei até mesmo o maldito inventor da roda enquanto verificava o pulso afetado, movendo os dedos com cuidado porque doía como o inferno; e eu sabia que estava à um suspiro de distância de um colapso nervoso, quando a risada escandalosa de Danny explodiu nos meus ouvidos - com direito até aos seus grunhidos esquisitos à cada vez que ela respirava fundo na tentativa de recuperar o fôlego.

    "Que se dane o budismo!"

    Eu queria matá-la!

    Por Deus... Eu só queria matá-la com minhas próprias mãos, fazendo uso de cada técnica de tortura que conhecia dos livros de história; mas, instantes depois, senti toda minha raiva murchando como um balão furado quando, no meio de sua desnecessária crise de riso, pude ouvir o som inconfundível de um crânio se chocando contra a janela do carro. A menina ao meu lado se voltou para mim quase imediatamente, os olhos arregalados, os dedos compridos massageando a lateral da testa enquanto formava um biquinho trêmulo nos lábios carnudos - e não demorou mais que alguns poucos segundos para que estivéssemos, as duas, gargalhando descontroladamente.

    Era inexplicável, sem sentido e simplesmente ridículo mas, ao mesmo tempo, era tão libertador, que apenas me entreguei àquela crise de bobeira que havia nos acometido repentinamente, sem a mínima noção de por quanto tempo aquilo durou - apesar de ter sido o suficiente para que meu maxilar já estivesse duro e minha barriga doendo, e, mesmo assim, ainda sermos incapazes de parar. Por mais que tentássemos nos controlar ou respirar fundo, uma simples troca de olhares se tornava o suficiente para iniciar tudo outra vez, nos obrigando a curvar o tronco para frente graças às fisgadas entre as costelas.

    Danny estava ficando vermelha, à despeito de sua pele cor de chocolate, e eu sabia que não me encontrava muito diferente disso, o suor se acumulando sobre minha pele pelo esforço que fazia enquanto, entre uma inspirada dolorosa e outra, pude sentir meu riso morrendo gradativamente. Meus pensamentos desviando mais uma vez para Michael e Valquíria, onde quer que eles estivessem naquele momento...

    Deus! Eu me sentia tão culpada por tudo.

    Eu sabia que insinuar qualquer coisa sobre a sexualidade de Mike havia sido estúpido e insensível, para dizer o mínimo, levando em conta todo o preconceito com o qual ele lidava diariamente e fingia não se importar - além de completamente sem sentido, simplesmente por ir contra tudo o que eu acreditava. Mas... Valquíria? Fazer parecer que nosso irmão era menos dela do que meu? Aquilo era cruel, maldoso e imperdoável, e eu nunca havia me arrependido tanto, ou tão rápido, de qualquer coisa que dissera em toda a minha existência.

    Val era umas das pessoas mais importantes na minha vida, o maior presente que o universo havia me dado, e só de pensar que eu a havia magoado, que eu a fizera pensar que ela era menos importante simplesmente por não compartilharmos o mesmo sangue...

    - Hey... Você está chorando? - A voz de Danny, ainda afetada pelo riso, me despertou para realidade novamente.

    Eu estava? Senti minha testa franzindo em confusão enquanto erguia os dedos até a bochecha para verificar, concluindo que, sim, eu estava chorando - e como se a confirmação desse fato fosse a última rachadura necessária para romper de uma vez por todas a represa, meu corpo inteiro tremeu em um soluço sufocado.

    - Eu... E-eu... - As palavras se embolavam na minha boca.

    - Oh, meu deus, Brittany! - Dee soou assustada, seus braços compridos envolvendo meus ombros imediatamente em um abraço apertado, deitando minha cabeça contra seu ombro - Shhh... Shhh... Está tudo bem... Está tudo bem!

    Ela repetia em uma voz baixa, pacífica, os dedos se enroscando nos meus cabelos em uma carícia calma que me fazia pensar no modo como Michael e eu costumávamos cuidar de Valquíria sempre que ela tinha uma crise - e isso só me fez chorar ainda mais, capaz apenas de imaginar como os dois haviam passado a última noite sem mim.

    Por que nada estava bem e eu era uma completa bagunça!

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    Depois de - mais ou menos - meia hora de choro descontrolado, eu havia finalmente voltado a respirar da forma correta.

    Era estranho perceber o quão mais leve eu me sentia, como se aquilo, toda aquela descarga de adrenalina, fosse exatamente o que eu precisava para extravasar meus sentimentos reprimidos e começar a colocar todas as coisas nos seus devidos lugares dentro de mim - quase como se o peso do mundo tivesse saído dos meus ombros.

    Uma boa maneira de começar o dia...

    Agora, enquanto Danny dirigia pelo resto do caminho, depois de insistir que eu não estava em condições para a função, eu observava distraidamente a paisagem borrada através da janela do carro, focada demais em meus próprios demônios para realmente ver qualquer coisa lá fora.

    - Você quer conversar sobre o que aconteceu? - Dee questionou após algum tempo em silêncio, chamando minha atenção.

    Franzi o cenho por um instante, pensando um pouco a respeito antes negar com um movimento de cabeça:

    - Acho que não... - Eu basicamente resmunguei, um tanto incerta.

    Abrams me lançou um rápido olhar, mordendo o lábio como se não soubesse se deveria insistir ou não - eu agradeci mentalmente ao notar que ela não iria:

    - Tem certeza que não prefere ir para casa? - Foi sua próxima pergunta.

    Neguei mais uma vez:

    - Você tem hora para chegar ao trabalho, e já deve estar atrasada...

    - Eu posso faltar hoje... - Ela deu de ombros e prosseguiu, forçando um sorriso um pouco animado demais - Nós podemos passar o dia vendo filmes ruins naquela sua TV gigante enquanto comemos pipoca de microondas, ou podemos, finalmente, começar a ensaiar alguma coisa para a volta às aulas na academia...

    - Danny...

    - Já sei! Muito melhor! - Dee parecia começar a se empolgar de verdade com as idéias que estava tendo de última hora - Nós podemos chamar a Val e a DJ... Até mesmo algumas meninas do time, se você quiser... - Seus olhos voaram na minha direção por um instante, abrindo um sorriso enorme; e esse eu sabia que era genuíno - Um "Day SPA das Garotas"! O que você acha? Máscaras faciais coreanas, manicure, hidratação no cabelo...

    - Danny?!

    - Sim? - Ela finalmente parou de tagarelar, encolhendo os ombros, um tanto sem jeito - Desculpe... Acho que acabei me empolgando um pouco.

    Permiti que uma risada baixa escapasse por entre meus lábios, meus olhos atentos aos traços suaves, e ao mesmo tempo bem acentuados, do rosto de minha amiga. O modo como sua pele amarronzada parecia brilhar sob o sol, ou como seus olhos ficavam ainda mais claros naquela luz naturalmente dourada, ou, o mais importante, a maneira como suas sobrancelhas se uniam no meio da testa nesse momento, o maxilar rígido e marcado, indicando o quão determinada ela estava em me fazer feliz após presenciar um dos meus raros momentos de fragilidade:

    - É. Acho que você exagerou só um pouquinho - Comentei em um tom falso de acusação, tendo certeza de que toda a gratidão que eu sentia por tê-la ao meu lado era perfeitamente audível em minha voz - E eu agradeço seus esforços... Mesmo! Mas... eu só... - Precisei respirar fundo antes de conseguir prosseguir sem gaguejar - Eu acho melhor não voltar para casa agora.

    Dee resmungou algo incompreensível, puxando seus cabelos crespos para longe do rosto com mais força que o necessário - sua voz parecendo rouca e grave quando ela, finalmente, conseguiu chegar a alguma conclusão:

    - Tem muito mais coisa por trás de toda aquela crise choro, não tem? Você brigou com ele também...

    Ela não precisava dizer o nome para que eu soubesse a quem se referia, então, apenas acenei com a cabeça, desviando meus olhos, envergonhada, enquanto completava em um sussurro:

    - E com Valquíria...

    - Seu rosto se voltou para mim imediatamente, as feições torcidas em uma carranca:

    - O que você fez? - Danny demandava uma resposta, e, por um instante, quase me esqueci do que estávamos falando, precisando conter meu sorriso ao constatar, mais uma vez, o quão superprotetora ela podia ser em relação à minha irmã.

    Revirei meus olhos sabendo que não podia ser vista, sua face voltada à estrada novamente - mesmo que as mãos ainda espremessem o volante violentamente:

    - Eu disse coisas... - Concluí em meio a um suspiro pesado, inclinando a testa contra o vidro gelado da janela - Coisas absurdas que eu nunca deveria ter dito.

    - O que, exatamente, você disse à ela?

    - Eu não posso contar!

    - Bree... - Abrams tentou protestar.

    - Eu juro que não posso! - A interrompi imediatamente, uma de minhas mãos voando para sua perna em um aperto firme - Não é um segredo meu para compartilhar...

    Meu tom de desculpa a fez morder o lábio inferior, claramente considerando minhas palavras:

    - Você me diria se fosse algo sério, certo? Se, sei lá... Ela estivesse doente ou algo do tipo... - Danny batucou as unhas compridas no volante, um sinal claro de nervosismo - Quer dizer... - Ela pigarreou, se remexendo no banco em um desconforto evidente - Não há nada de errado com Valquíria, certo?

    "Se você não levar em consideração todos os distúrbios psicológicos..."

    - Está tudo bem, sim - Sorri minimamente - Val é forte como um touro!

O resto de nossa viagem se seguiu de forma silenciosa, cada uma de nós presa demais em nossos próprios pensamentos para manter qualquer tipo de diálogo, até que o carro, finalmente, fosse estacionado nos terrenos do grande Golden Coast Marine Aquarium e eu me visse dizendo as palavras nas quais, há muito, eu vinha pensando:

    - Você deveria chamá-la para sair...

    Danny se voltou para mim distraidamente, a testa franzida de forma distante:

    - O que? - Questionou quase preguiçosamente, os dedos magros arrancando a chave da ignição em um movimento suave.

    - Valquíria... - Dei de ombros - Você deveria chamá-la para um encontro... Sabe? Qualquer dia desses...

    E dizer isso, aparentemente, surtiu tanto efeito quanto se eu a tivesse esbofeteado no rosto.

    Repentinamente, Dee parecia em estado de choque. Seus olhos calorosos piscaram repetidamente, confusão genuína brilhando nas íris de mel de tal forma que cheguei a considerar a hipótese de um terceiro olho ter surgido bem no meio da minha testa. Seus lábios se afastaram e juntaram novamente algumas vezes, completamente mudos, enquanto ela ainda me encarava atônita, quase como se eu houvesse proferido a maior blasfêmia de todos os tempos:

    - Você enlouqueceu! - Abrams afirmou categórica, visivelmente nervosa, antes de se entortar para buscar sua mochila no banco de trás e pular para fora do carro de forma desajeitada, praticamente tropeçando nos próprios pés em meio à pressa.

    Eu precisei correr para alcançá-la:

    - Hey! Estou falando sério! - Puxei seu braço quando fui capaz de toca-la, obrigando-a a parar e me ouvir - Você gosta dela, Dee. Qualquer cego pode ver isso!

    Naquele momento, Danny decidiu que era mais interessante encarar qualquer coisa ao nosso redor - até mesmo as pedras soltas no calçamento - apenas para não me olhar nos olhos, suas mãos torcendo as alças da mochila em uma aflição clara; eu nunca a tinha visto tão na defensiva:

    - Você realmente enlouqueceu, Pierce - Ela inalou o ar ruidosamente, um dos pés batendo de forma repetitiva no chão, completamente impaciente - Está na minha hora... A gente se fala mais tarde...

    E, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela já havia partido, num caminhar apressado e rígido que me fez rir genuinamente:

    Pobre, Danny... Completamente rendida!

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    O resto do dia havia passado em um borrão azulado, gastando meu tempo entre observar peixes coloridos nadando de um lado para o outro e admirar minha melhor amiga, entretendo crianças e adultos com sua calda cor de rosa e maquiagem brilhosa colorida, enquanto dava um show de apneia ao lado das outras sereias do aquário.

    Há bem da verdade, ainda era engraçado pensar nisso...

    Quando Danny apareceu na minha casa, antes do começo do verão, gritando e pulando de felicidade por ser a mais nova sereia contratada pelo Golden Coast Marine Aquarium, eu ri.

    Quer dizer... Ela só podia estar brincando. Certo?

    Aparentemente não.

    Abrams ficara sabendo do teste através da prima da amiga de uma vizinha - ou qualquer outra explicação confusa que eu não fora capaz de compreender na hora - e não perdeu tempo antes de correr até o aquário para se provar "a melhor aprendiz de sereia do Estado da Califórnia", palavras dela, não minhas.

    Aquilo me parecia uma completa loucura. O trabalho era exaustivo, horas e horas nadando em apneia, se exibindo para os visitantes com um "sorriso Disney" congelado no rosto para receber um pagamento ridículo que ela não precisava; não que Danny tivesse me dado ouvidos quando tentei apontar esses fatos - e não demorou nada para que eu pudesse notar o quanto ela estava feliz em sua nova função. Foi um mês mais tarde, após o treinamento intensivo que finalmente a deixou pronta para o público, que Joey, DJ, eu e todos os Pierce estávamos lá, diante daquela enorme parede de vidro, vibrando por cada um de seus movimentos subaquáticos graciosos e perfeitamente sincronizados no grande dia. Até mesmo Jane resolvera nos acompanhar, contagiada por nossa empolgação, e acabou ajudando mamãe nas infindáveis fotografias que ela tirava de todos os ângulos possíveis e imagináveis. No fim das contas, aquela tarde acabou sendo extremamente divertida; e, quando fomos embora, eu poderia jurar que Michael estaria tentado a se candidatar para uma vaga de tritão na equipe caso não tivéssemos uma viagem em família já programada.

    Ele nunca admitiu.

    Pela hora do almoço, quando as meninas deixaram o tanque para seu intervalo, todas nós comemos sanduíches caseiros feitos por Danny no camarim das sereias enquanto conversávamos sobre os planos para o fim das férias.

    - Nós só não podemos perder contato! - Santana, a morena de origem hispânica ajeitava seus longos cabelos negros para cima, presos dentro de uma toalha - Quer dizer... Só por que não seremos mais sereias, não quer dizer que não podemos mais ser amigas...

    - Fale por você! - Queen rebateu entre uma mordida e outra, o tom arrogante levando todas nós a encará-la com sobrancelhas erguidas - Eu serei a sereia lilás para sempre!

    Ela gargalhou e nós fomos obrigadas a imitá-la.

    - Eu estou falando sério! - Santana insistiu após alguns segundos, formando um biquinho fofo nos lábios - Vocês não podem me esquecer!

    - Isso não vai acontecer, Sant - Danny revirou os olhos - Nós ainda temos o "H2O", é só ninguém deixar de mandar mensagem, sabe? Nós precisamos continuar compartilhando as novidades umas com as outras... Saindo juntas nos finais de semana...

    - "H2O"? - Perguntei, confusa.

    - "Meninas sereias"! - As três responderam em uníssono antes de caírem na risada novamente.

    - É o nosso grupo para troca de mensagens - Queen deu de ombros, se voltando para o espelho enquanto tentava enxugar o excesso de água que pingava de seus fios loiros.

    - Super criativo... - Resmunguei, por pura implicância, vendo seu reflexo me dar língua em resposta.

    - Bom... Vocês são as primeiras amigas que eu fiz desde que me mudei de Ohio pra cá... - A morena se remexeu inquieta - Eu meio que só tenho vocês para compartilhar minha vida, então...

    - Oh... Muito obrigada por deixar claro que só conversa com a gente por falta de opção...

    - Não. Eu não disse...

    - Queen! Não seja implicante! - Dee exigiu, abraçando Santana pelos ombros e voltando-se para ela em um tom calmo - Você sabe que pode contar com a gente pra tudo, certo? E não precisa se preocupar, fica tranquila que a rainha do baile ali vai se comportar e te ajudar na faculdade - Abrams apontou para Queen por sobre o ombro - Ela promete!

    - Eu não prometi nada!

    - Queen!

    - Ok. Ok. Eu prometo! - A loira bufou, exasperada - Por Deus, como vocês são chatas!

    - Aqui é sempre assim? - Perguntei a ninguém em especial, perdida em meio às minhas próprias gargalhadas.

    - Costuma ser pior... - Santana sorriu, travessa, mas, Danny a impediu de continuar; estalando a língua com ar de desgosto enquanto a arrastava para perto do espelho, onde as três se concentraram em retocar suas maquiagens já que o tempo de intervalo estava no fim e, logo logo, elas estariam de volta ao tanque.

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    Já era tarde quando finalmente saí de meu banheiro terminando de espalhar o creme com aroma de ameixas preguiçosamente sobre a minha pele; carregando no rosto um sorriso bobo enquanto revivia em minha memória as melhores partes da tarde agitada que eu compartilhara com as meninas àquele dia.

    Nós havíamos nos divertido como a um bom tempo eu não fazia, movidas pela melancolia do fim do verão que levou as Meninas Sereias à concluírem que era uma boa idéia passar o resto do domingo juntas e, como não viam problemas em me incluir como sereia honorária em sua pequena equipe, seguimos para o píer de Santa Mônica assim que o expediente acabou.

    Meu corpo ainda se encontrava exausto depois de três ou quatro voltas na montanha russa e mais não sei quantos turnos no carrinho de bate-bate, meu estômago revirado pelo excesso açúcar das raspadinhas de uva e de todo o algodão doce que Danny havia me obrigado a comer; minha mente, por outro lado, não poderia estar mais leve e, após agradáveis 30 minutos sob a água quente, pelo menos as dores em meus músculos haviam aliviado.

    Eu ainda ria sozinha ao me lembrar do modo como as meninas se comportavam umas com as outras, com Queen implicando com o modo doce de Santana o tempo todo e Danny agindo como a mãe rígida que colocava ordem na situação.

    "Elas são sereias divertidas", eu pensei sozinha, largando meu roupão de banho no encosto de uma cadeira e seguindo para dentro do closet à procura de uma calcinha confortável e de minha camisola - que, na verdade, não passava de uma das camisetas velhas de Michael que eu havia roubado dele alguns meses atrás - mas senti minha linha de pensamentos leves ser quebrada violentamente quando um grito conhecido envolveu o ar ao meu redor, me despertando para a realidade novamente.

    Imediatamente, me pus a atravessar o caminho já conhecido por minhas pernas, repetido diversas vezes ao longo dos anos e, naquela noite, feito por mim na velocidade máxima que meu corpo cansado era capaz de alcançar, meu coração disparando para garganta, praticamente fechando minha respiração em um nó, ao encontrar minha irmã em sua cama de dossel, o corpo encolhido em posição fetal e as mãos cobrindo as próprias orelhas de forma que indicava desespero; seus olhos fechados com força extrema à despeito das lágrimas que escorriam livremente pelas bochechas.

    Era uma cena horrível, desesperadora, e, mesmo já a tendo visto diversas vezes, ainda me fazia querer descontar toda a minha frustração e raiva quebrando o primeiro objeto que estivesse mais próximo de meus dedos - entretanto, não havia tempo para isso enquanto Valquíria sofria. Nem ao menos havia tempo para recuperar meu fôlego apropriadamente, então, apenas me joguei ao seu lado de forma desajeitada, afastando suas cobertas emboladas para longe de nós e envolvendo-a em meus braços com firmeza para deixar claro que eu estava ali; por um instante, agradecendo silenciosamente aos deuses ao constatar que ela já estava acordada, o que queria dizer que o pior havia passado:

    - Shhh... Está tudo bem, V! Eu estou aqui - Tentei acalmá-la em uma voz suave e baixa, podendo ouvir o barulho sufocado que Valquíria fez quando o ar voltou para dentro dela, como se tivesse prendido o fôlego por tempo demais - Respira fundo... Vai ficar tudo bem, V. Eu já estou aqui...

    Mas, como sempre acontecia nessas situações, Val parecia incapaz de me escutar enquanto tremia em meus braços:

    - O rosto dela... - Minha irmã soluçou, fungando ruidosamente, o nariz espremido contra o meu pescoço - O rosto...

    Senti minha testa se franzindo em confusão. "O rosto de quem?", meus pensamentos flutuaram para longe, meus olhos vagando no espaço ao redor enquanto tentava entender do que aquilo se tratava, perdendo completamente a linha de raciocínio ao dar de cara com Michael, nos encarando sob a luz azulada do abajur, parecendo atordoado; e eu respirei fundo, momentâneamente aliviada só por saber que ele estava ali, antes um novo apertão de unhas em minhas costelas desviar minha atenção novamente - e eu me voltei para Val lutando para me manter firme;

    - Tenta ficar calma - Eu praticamente implorei - Foi só um pesadelo...

    Mas minhas palavras não foram suficientes para acalmá-la, pelo contrário, minha irmã estremeceu violentamente mais uma vez, resmungando qualquer coisa incompreensível entre os dentes cerrados, as lágrima rapidamente umedecendo minha roupa:

    - Respira fundo, V... - A voz rouca de Mike nos alcançou quando ele se sentou ao nosso lado, soando como uma anestesia para meus nervos abalados enquanto as unhas de Val eram afastadas da minha pele por suas mãos frias - Vai ficar tudo bem! Nós estamos aqui com você... - Meu irmão prosseguiu, massageando os dedos dela calmamente - Respira fundo! - Ele pediu em um sussurro que me fez inspirar com força também, junto de Valquíria, observando a cena em silêncio, tentando encontrar mais alguma coisa que eu pudesse dizer naquele momento.

    Não parecia haver absolutamente nada em qualquer parte do meu cérebro oco:

    - Está tudo bem? - Uma voz incerta, de repente, surgiu de algum lugar próximo às escadas - Está se sentindo melhor, querida?

    Era Christopher quem perguntava, em um tom vacilante, e minha irmã apenas se encolheu ainda mais contra o meu peito:

    - Ela já está mais calma, pai - Senti que precisava ser eu a responder, praticamente ninando-a em meus braços - Vai ficar tudo bem - Eu sabia que dizia aquilo mais para mim mesma que para qualquer outra pessoa ao meu redor, mas papai respirou fundo por um instante, os olhos aflitos varrendo todo o ambiente por detrás dos óculos redondos antes de coçar a cabeça em um sinal claro de frustração.

    - Certo... - Ele começou, trocando o peso do corpo de uma perna para a outra - Se está tudo sob controle, eu... Eu vou deixá-los à sós...

    E, o que quer que tenha sido dito depois disso, eu simplesmente não prestei atenção, focada em fazer carinho nos cabelos dourados de Valquíria, presa demais em meus próprios pensamentos, tentando imaginar como Michael havia passado por isso tudo sozinho com ela - me odiando por tê-los deixado quando mais precisavam de mim:

    - Aqui... - As mãos pálidas de Mike se estenderam para entregar um comprimido e uma garrafa d'água para nossa irmã, que tomou o remédio em silêncio.

    - Nossos olhares se encontraram sobre a cabeça dela, e eu pedi aos deuses para que ele fosse capaz de entender tudo o que eu estava sentindo naquele momento, que ele fosse capaz de ler todo o medo e o arrependimento esmagador que apertavam meu coração com seus punhos de aço - que ele fosse capaz de me perdoar por ter sido tão estupidamente egoísta...

    - Eu queria chorar... Queria gritar! Mais que qualquer coisa, eu queria por pra fora tudo o que estava comprimido dentro de mim e que me fazia sentir como se estivesse prestes a explodir a qualquer instante; mas, aquele momento pertencia à Valquíria, ela precisava de mim... de nós. Então, só o que me cabia era o direito de respirar fundo, encontrando algum conforto no no olhar brando e compreensivo que Michael me lançava.

    Apenas o suficiente para aliviar parte de meu desespero:

    - Obrigada! - Eu agradeci em um sussurro quebradiço, deixando minhas lágrimas silenciosas finalmente rolarem quando ele se arrastou para mais perto, nos envolvendo em um abraço firme e reconfortante que me fez querer acreditar que tudo ficaria bem.

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    Mais tarde, eu observava o céu nublado lá fora novamente, procurando, pela milésima vez, respostas que eu sabia estarem dentro de mim, o aperto no peito não havia passado e eu sabia que não seria capaz de silenciar meus próprios pensamentos tão cedo.

    Ao meu lado, Valquíria roncava baixinho, completamente imóvel enquanto, na outra ponta da cama, Michael tinha um sono agitado, movendo as pernas e praticamente se debatendo sobre o colchão em intervalos curtos; nossa última conversa servindo de combustível para minha insônia, a certeza de que eu era a única culpada pelas lágrimas que meu irmão tentava, arduamente, não derramar naquela noite era a pior sensação do mundo. Principalmente quando eu ainda carregava viva, dentro de mim, a memória da pessoa que ele costumava ser quando vivíamos na estrada, aquela criança colorida, tão cheia de vida, dona de um olhar doce e um sorriso fácil, gentil, capaz de cativar a todos - e, ainda mais, quando me lembrava de tudo que mudara depois de nossa ida para San Francisco.

    Mike havia, aos poucos, se retraído ao ponto da indiferença, sua voz caindo em volume e frequência drasticamente, tornando-o quieto, quase frio. Eu sabia que ele estava sofrendo. A cada vez que ele se assustava com o movimento nos corredores da escola ou tinha uma crise de pânico em uma aula de biologia, eu sabia que ele estava adoecendo; e em todas as vezes em que ele fugiu de seu quarto durante a madrugada para dormir comigo, alegando não se sentir bem sozinho com um espaço tão grande só para si, eu o recebi de braços abertos, perdendo horas em silêncio ao seu lado apenas porque - além de amá-lo - eu sabia que era tudo minha culpa.

    "Eu nunca te odiei...", ele havia dito. "Nem por um segundo!".

    Suspirei cansada na penumbra, coçando meus olhos sob a luz de LED azul que acompanhava todo o rodapé ao longo das paredes de seu quarto e lançava sombras estranhas para cima, mas que também me permitia uma visão parcial de meus irmãos... Eu podia analisar Valquíria, encolhida como uma bola em seu sono induzido, o rosto finalmente sereno apesar dos rastros de lágrimas bem claros em suas bochechas avermelhadas, os cabelos dourados espalhados para todos os lados sobre o travesseiro enquanto Michael, por outro lado, ainda se remexia inquieto, seu rosto, que eu apenas enxergava parcialmente, se franzindo em uma careta.

    Bufei irritada, mais uma memória distante sendo tragada ao presente por minha mente inquieta, passando diante de meus olhos quase como um filme:

    - Você se lembra da última vez que estivemos aqui? - Eu me lembrava que Michael havia perguntado silenciosamente ao meu lado, o ar condensado deixando seus lábios vermelhos em forma de fumaça branca e se dissipando ao nosso redor rapidamente.

    Nós estávamos deitados em nosso antigo - e por que não dizer amado? - saco de dormir cor de abóbora, sob o manto negro estrelado de uma noite no Alasca e, mesmo aquela não sendo nossa primeira vez, eu era simplesmente incapaz de desviar meus olhos daquela imensidão mágica de luzes brilhantes por mais de dois segundos.

    - Uhum... - Foi o mais próximo que consegui chegar de uma resposta, sentindo que qualquer som além disso poderia ser capaz de quebrar o encanto do momento, estilhaçando-o em mil pedaços...

    Meu irmão, entretanto, não parecia disposto a desistir daquela conversa tão facilmente:

    - Eu ainda amo esse lugar... - Ele sussurrou algum tempo depois em um fio trêmulo de voz que me chamou a atenção, me fazendo, finalmente, rolar para o lado em meio às inúmeras cobertas e casacos.

    Observei seu rosto por algum tempo, ajeitando melhor meu corpo no espaço reduzido, enquanto dava mais atenção ao seu perfil recortado na penumbra; captando o instante exato em que seu queixo tremeu, quase como se ele estivesse segurando o choro:

    - Você sempre amou o frio, não há nenhuma novidade nisso... - Comentei em meu tom mais doce quando suas íris se voltaram diretamente para os mim, os olhos úmidos refletindo com ainda mais intensidade as luzes acima - O que está acontecendo de verdade, Mickey? - Perguntei em um suspiro, observando a fragilidade quase palpável dos lábios que se moviam em torno de uma resposta que nunca veio.

    Não quando nossos pais se aproximaram novamente, nos entregando canecas térmicas fumegantes antes de se deitarem em seu próprio saco de dormir, do outro lado da fogueira, se aninhando um ao outro para manterem seus corpos aquecidos naquela noite de inverno no Ártico.

    Eu era perfeitamente capaz de me lembrar do frio brutal - como se ele nunca tivesse realmente deixado meus ossos.

    O termostato exposto na lateral do Argos marcava 18°C negativos e, mesmo sabendo que dentro de nossa casa a temperatura seria mais amena, nós preferíamos o lado de fora, a aventura de estar na natureza selvagem, atentos para qualquer mudança nos arredores - desafiando nossos limites enquanto a madrugada se arrastava lentamente em direção ao evento principal; a Aurora Boreal.

    A quase dois anos nós não tínhamos a chance de presenciar um daqueles shows naturais de luzes, e eu me sentira excitada e ansiosa sobre o que viria durante os últimos três dias, enquanto tínhamos noites ruins, com caçadas que não deram em absolutamente nada - mas, agora, com a mão de Michael agarrada à minha, seus dedos quase esmagando os meus, nada daquilo importava, simplesmente porque eu sabia que meu irmão precisava de mim com mais intensidade do que eu fora capaz de notar em minha empolgação:

    - Vamos... Me diga o que está acontecendo! - Pedi em voz baixa novamente, aproveitando que Christopher e Agatha conversavam entre si, preparando a câmera para as fotos que sabíamos que iríamos tirar (se finalmente déssemos sorte), para me livrar de uma de minhas luvas, mesmo que isso fosse extremamente arriscado, e acariciar sua bochecha pálida calmamente.

    Mike, entretanto, parecia perdido em si mesmo, os olhos desfocados em direção ao céu estrelado quando engoliu em seco visivelmente, se mantendo calado por um momento longo demais, que me fez acreditar que ele simplesmente não me diria nada - e eu já me preparava para pressioná-lo por uma resposta quando sua voz, ainda quebradiça e trêmula, soou na noite extremamente silenciosa:

    - E-eu... Eu acho... - O soluço seco que cortou a frase me impulsionou a segurar seu rosto delicadamente, virando-o na minha direção e obrigando-o a se ajeitar em sua lateral, exatamente como eu estava, nosso narizes a centímetros de distância, suas íris âmbar, que pareciam quase vermelhas sob a luz do fogo, finalmente se focando nas minhas, transparecendo uma dor que eu nunca vira antes e que fez minha garganta apertar quando ele concluiu o que queria dizer em um sussurro - Eu estou com medo, Britt...

    Definitivamente, eu não esperava por isso, e pude sentir minha testa se franzindo imediatamente em confusão:

    - Medo? - Repeti em questionamento, sem ideia do que ele queria dizer exatamente - Você nunca teve medo de acampar, Mickey... Aconteceu alguma coisa? Não está conseguindo se aquecer? - Perguntei rapidamente, preocupada com o que podia acontecer caso ele estivesse com frio.

    Esse era um dos primeiros ensinamentos que eu me lembrava de ter recebido de nossa mãe: "nunca, em hipótese alguma, ignore o frio". Em lugares extremos, como o Alasca ou a Islândia, qualquer descuido poderia ser fatal, e meus dedos nervosos já puxavam o gorro grosso de lã amarelo-mostarda de Mike mais para baixo em sua cabeça; logo invadindo a beira do cachecol roxo para verificar sua temperatura corporal mas, antes que pudesse continuar, as mãos longas de meu irmão me interceptaram, segurando as minhas com firmeza, acenando uma negativa com a cabeça:

    - Eu estou aquecido, B. Não precisa se preocupar com isso! - Ele afirmou com segurança, um sorriso meio divertido, meio cansado pintando seus lábios extremamente vermelhos pelo frio e me arrastando em direção ao olhar triste logo acima.

    - O que, então? Se não é o frio... - Pensei por um segundo, lembrando de algo que sempre me assustava - Você não viu nenhum urso ou lobo no caminho, viu? Por favor, me diz que não!

    Eu já estava começando a erguer meu corpo para fora das cobertas, a fim de me sentar para procurar qualquer sinal de ameaça ao redor, quando os dedos parcialmente enluvados dele me envolveram pelos ombros calmamente, sua risada seca estalando em meus ouvidos como a lenha na fogueira:

    - Você acha mesmo que eu já não teria avisado ao papai caso visse um urso? - Mike revirou os olhos, visivelmente zombando de mim, o que me fez empurrá-lo pelo ombro com certa força.

    - Então, me diz logo o que há de errado! - Exigi emburrada, com um bico nos lábios que o fez sorrir genuinamente pela primeira vez, e ele parecia prestes a responder de fato, quando a voz de nossa mãe se fez ouvir...

    - Crianças... - Ela chamou suavemente - Acho que estamos com sorte hoje...

    E se por um segundo eu não entendi o que Agatha queria dizer, foi só olhar na direção em que ela apontava, no limite difuso do horizonte, para ser saudada pelas luzes verdes e rosadas que já iniciavam seu balé encantado ao longe; e que me fisgaram imediatamente, levando para longe todas as preocupações.

    Agora, observando meu irmão por sobre a cabeça de Valquíria, eu sabia que fora nossa conversa sobre "casa" que havia despertado aquelas memórias dentro de mim.

    Na verdade... Minha tentativa de conversa, já que, como sempre acontecia quando aquele era o assunto, Michael havia apenas escorregado para longe mais uma vez, se trancando em seu interior como uma ostra.

    Eu não o culpava, é claro.

    Apesar de amar o Argos e ter vivido nele experiências que eu jamais seria capaz de esquecer, de alguma forma eu sempre sentira que aquele não era exatamente o meu lugar...

    Eu sonhava com o novo... Com as coisas incríveis que sempre pareciam acontecer com todas as pessoas nos filmes de Hollywood... Eu acreditava que nada seria mais incrível do que viver em uma linda casa com um jardim na frente, dando festas do pijama com minhas melhores amigas - que eu sabia que faria facilmente em Terra Firme -, ou dançando com garotos bonitos em bailes de escola nos quais parecia ser muito importante ganhar uma coroa de plástico barato... A simples ideia de viver essa vida de contos de fadas fazia meus olhos brilharem e o meu coração disparar.

    Michael não se via em nada disso.

    Ele gostava de acordar cedo, quase junto com o nascer do próprio sol, e sair para explorar o que quer que a paisagem lá fora lhe oferecesse... Ele amava a diversidade de culturas ao nosso redor e se orgulhava de ser capaz de interagir com basicamente qualquer um que cruzasse nosso caminho... Michael era completamente apaixonado pela sensação de liberdade que a estrada trazia consigo - mesmo que, para nos manter em movimento, estivéssemos confinados no interior de uma caixa de metal com menos de 30m².

    Suspirei na penumbra do quarto, encarando, mais uma vez, o céu nublado acima de nós que em nada se parecia com aquele outro, tantos anos atrás, em uma noite gelada de fim de janeiro no Círculo Polar Ártico.

    Eu ainda era capaz de recordar, com riqueza de detalhes, como ele havia me abraçado quando voltamos ao Argos e confessado, entre sussurros, seu medo das mudanças que viriam a seguir e do que todas elas poderiam significar em nossas vidas:

    - Nós não precisamos ir para Terra Firme, se você não quiser - Eu havia sussurrado de volta no escuro, enquanto dividimos o colchão na beliche de baixo - Você sabe que papai e mamãe nem ao menos querem ir...

    E, por um segundo, foi como se eu pudesse sentir sua hesitação no ar ao nosso redor, na respiração pesada que tocava meu braço e no modo como ele se apertou ainda mais contra mim:

    - Você precisa disso, Minnie... - A voz entrecortada de Mike parecia perfurar meus tímpanos - Medicina é o seu maior sonho...

    Ele tinha razão. Claro que tinha.

    Eu sonhava com a "Ivy League"³ desde a primeira vez em que assistira "Legalmente Loira" e ouvira falar sobre Harvard:

    - Não tem problema, Mickey - Eu não saberia dizer se tentava convencê-lo ou à mim mesma - Eu posso dar um jeito. Estudar em casa não vai me impedir de entrar...

    - Nós já falamos sobre isso antes, Britt - Meu irmão me interrompeu resignado, praticamente bufando - Você viu todas as exigências deles quando pesquisamos...

    - Mas, não é justo! - Eu resmunguei irritada, sentindo-o respirar fundo novamente, em silêncio.

    - Acho que não... - Ele deu de ombros, visivelmente cansado; e eu sabia que o assunto estava encerrado pelo simples fato de estarmos presos naquela situação impossível.

    Michael tinha determinação suficiente para abrir mão... Abrir mão de nossa casa, nossas viagens sem fim, do nosso estilo de vida. Determinação e coragem para abdicar de absolutamente tudo o que ele conhecia e amava, tudo o que lhe garantia segurança emocional, em nome de um sonho que nem ao menos era seu; enquanto eu, mesmo vendo o quanto aquilo o machucava, era egoísta demais para abandonar meus próprios sonhos em nome de sua felicidade. Naquele momento, eu apenas me calei, sentindo suas lágrimas umedeceram meu ombro quando o puxei para mais perto de mim, afagando seus longos cabelos negros que faziam cócegas em meu nariz sensível, sem saber, na época, que à partir daquele dia eu seria obrigada a ver uma parte de meu irmão - sua melhor face, que era feita de calor e luz - morrendo aos poucos, diariamente.

    Tendo a certeza de que só havia uma única culpada por seu sofrimento.

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    Quando acordei na manhã seguinte, meu corpo inteiro parecia ter passado por um moedor de carne, todos os músculos doendo pelo desgaste gerado de uma tarde de atividades físicas seguida de mais uma noite mal dormida. Mike já havia saído para seu treino de futebol, eu pude notar enquanto me espreguiçava cuidadosamente, tentando ao máximo não fazer movimentos bruscos já que minha irmã ainda dormia serenamente ao meu lado, o rosto a poucos centímetros de distância do meu e seu cabelo caído sobre os olhos em uma bagunça adorável.

    O quarto se encontrava em uma penumbra aconchegante, todos os vidros do teto e da parede diante da cama completamente escurecidos pelo sistema eletrônico que nos permitia o controle da casa remotamente - o nosso próprio J.A.R.V.I.S., eu gostava de pensar, cortesia de Christopher Pierce - e eu era grata à isso, já que, naquele momento, minha cabeça doía em fisgadas irritantes que me faziam querer fechar os olhos novamente.

    Então fiquei ali por algum tempo, profundamente distraída, observando Valquíria em silêncio, repassando em minha mente os momentos desesperadores da madrugada anterior enquanto tentava me concentrar em sua respiração calma - a prova concreta de que ela estava bem, mesmo que talvez fosse só por aquele instante - para concluir, com um suspiro resignado, que era hora de finalmente fazer algo à respeito de nosso desentendimento estúpido:

    - Você está dormindo? - Eu sussurrei, torcendo por uma resposta que não veio em palavras, mas sim em forma de gestos já conhecidos. Val franziu o cenho minimamente, afastando os cabelos da testa de forma desajeitada para esfregar a bochecha contra o travesseiro, como um gato se coçando; e eu ri dessa sua mania, que era estranha e fofa ao mesmo tempo, aproximando meu rosto do dela, como sempre fazia nas manhãs em que despertávamos juntas, apenas por saber o quanto isso a irritava - Vamos lá... Eu sei que já acordou.

    Minha irmã gemeu:

    - Sua mãe não te ensinou que é feio encarar? - A voz rouca de sono se elevou praticamente em um rosnado; o que apenas me fez rir ainda mais.

    - Quanto mal humor... Princesas não deveriam acordar sempre felizes e radiantes? - Perguntei em tom de conversa, tentando me manter séria enquanto "andava" com dois dedos ao longo da manga rosa bebê de sua blusa de pijama - Lindas como um raio de sol, cantando com os pássaros ou coisa do tipo...

    Ela bufou exasperada, um olho se abrindo após o outro, de forma preguiçosa, as íris extremamente azuis parecendo cintilar com um brilho de divertimento ao afastar minha mão com um safanão:

    - Você não teria como saber, não é mesmo? - Minha irmã debochou, um sorrisinho mole nos lábios; antes de levar seus braços acima da cabeça, se espreguiçando longamente.

    Não permiti que me abalasse:

    - Minha coroa de Rainha do Baile de Primavera discordaria de você - Dei de ombros com desdém.

    Valquíria resmungou qualquer coisa, esticando o pescoço acima da minha cabeça para visualizar o relógio digital sobre o móvel de cabeceira que, eu sabia, estava exatamente atrás de mim:

    - Por Deus! - Ela arregalou os olhos com se acabasse de descobrir algo extremamente absurdo - Já passa das 10h.

    Eu ri de sua reação exagerada:

    - Sim, Bela Adormecida... Parece que alguém dormiu mais do que a cama - Impliquei, só para não perder a oportunidade; mas, minha risada morreu lentamente ao me dar conta dos últimos eventos - Você estava precisando...

    Minhas palavras pareceram ser o suficiente para desconcerta-la imediatamente, e Val abaixou a cabeça, fugindo do meu olhar atencioso; exatamente como costumava fazer desde sempre.

    Desde a primeira vez que nos vimos, anos atrás, em um banheiro escolar de higiene duvidosa:

    - Eu sinto muito... - Ela resmungou silenciosamente, os dedos curtos se remexendo entre nós, as unhas aparadas, pintadas com um esmalte holográfico delicado, cutucando as cutículas umas das outras - Não era para ser assim - Prosseguiu bufando, e eu sabia que estava nervosa quando as próximas palavras fugiram de sua boca em uma enxurrada descontrolada - É tudo tão frustrante. Eu odeio isso, B. Odeio sempre estragar as noites de vocês, odeio sempre dar tanto trabalho, eu me odeio tanto por sempre...

    - Hey... Hey! - A interrompi imediatamente, passando um braço sob seu pescoço e o outro ao redor de sua cintura, puxando-a em direção ao meu peito - Não fale um absurdo desses. Eu te proíbo! - Acabei soando mais imperativa do que pretendia por que nós já havíamos tido aquela discussão antes, e esse assunto me deixava nervosa - Quantas vezes nós precisamos dizer que não há nada pelo que se desculpar? - Eu a afastei de mim minimamente, apenas o necessário para que pudéssemos nos encarar olhos-nos-olhos - Quantas vezes vou precisar dizer que você é minha irmã, e que eu faria absolutamente qualquer coisa por você? Qualquer coisa para te ver feliz...

    Valquíria piscou para mim repetidamente, mordendo o interior das bochechas antes que um sorrisinho tímido conseguisse atravessar seu desconcerto; pintando de incerteza seus seus olhos úmidos, logo abaixo da testa franzida. O queixo levemente trêmulo... Ela parecia tão confusa quanto em qualquer uma das outras vezes em que tocamos nesse assunto, como se ainda não fosse capaz de entender muito bem o que eu lhe dizia, uma reação que já não me surpreendia mais depois de tanto tempo - então, apenas sustentei seu olhar, deixando claro no meu gesto que eu sempre estaria lá para explicar, ou mostrar na prática, o que ela significava em minha vida.

    Val encaixou a cabeça no meu pescoço, deixando sua voz frágil soar logo em seguida:

    - Às vezes, eu não sei o que seria de mim sem você... - Ela fungou antes de se corrigir - Sem vocês...

    Eu sorri com o comentário; apertando-a contra mim o máximo que pude - em tempo de acrescentar algo que achava necessário diante dos acontecimentos recentes:

    - Você não acha que... talvez... - Eu praticamente gaguejei, tentando manter meu melhor tom pacificador - Você não acha que seria uma boa idéia ligar para a Dra. Linda? - Despejei um pouco rápido demais, torcendo para que ela não se alterasse.

    Infelizmente, não tive muita sorte:

    - Não! - A resposta veio rápida também, curta e grossa, sem qualquer margem para discussões.

    - Vee... - Eu tentei insistir inutilmente quando Valquíria rolou para longe, pousando as mãos sobre a barriga, as íris azuis viajando para o céu lá fora, através do teto escuro sobre nossas cabeças, o semblante fechado.

    - Bree... - Seu tom era de deboche, e eu sabia que ela havia revirado os olhos mesmo que não pudesse ver - Não começa com isso de novo, ok? Eu não vou voltar! - Afirmou categoricamente - Ainda não enlouqueci o suficiente para não saber como me cuidar.

    Foi a minha vez de revirar meus olhos:

    - Eu nunca disse que você estava louca. Ou que não sabia se cuidar... Você está sendo preconceituosa! - Acusei, irritada. Aquilo era simplesmente estúpido, e eu mordi minha bochecha, tomando algum tempo para respirar fundo e me acalmar; tentando ao máximo prosseguir em um tom mais pacífico - Val, por favor, só o que eu quero...

    - É uma xícara de café para começar bem o dia... - Ela atropelou minhas palavras de forma cínica, como se nada tivesse acontecido, dando impulso para fora da cama com um movimento ágil das pernas - Ou está mais para chá hoje?

    - Valquíria! - Eu praticamente gritei, exasperada, me sentando entre as cobertas bagunçadas.

    Mais uma vez, fui completamente ignorada:

    - Chá, então... - Ela deu de ombros - Yorkshire. Com leite... Pode deixar comigo! - E, no segundo seguinte, já havia saído do quarto, praticamente correndo.

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    Mais ou menos vinte minutos depois, eu já havia tomado um banho, escovado os dentes e caminhado longamente de um lado para o outro dentro do meu quarto esperando que Valquíria voltasse.

    Foi mais ou menos nesse momento que ela entrou pela porta, parecendo ligeiramente desconcertada, carregando consigo uma pequena bandeja que apoiou ao meu lado na cama antes de se sentar também, apertando entre as mãos o grande copo de limonada que havia escolhido como sua bebida àquela manhã:

    - Agatha está cozinhando ao som de "Livin' La Vida Loca"... - Minha irmã comentou simplesmente após algum tempo em silêncio, em um tom que fazia parecer que tudo estava bem, como se tivéssemos apenas conversado amenidades pela última hora.

    Eu odiava quando ela chamava nossos pais por seus nomes sempre que estávamos à sós, mas resolvi não discutir sobre aquilo - não naquele momento, pelo menos:

    - Rezemos todos para que nossas mortes sejam rápidas! - Respondi sem humor, bebericando um gole do meu chá que estava na temperatura e proporção corretas, exatamente como eu gostava; e bufando sonoramente.

    Se Valquíria pretendia pescar um elogio, iria se cansar. Eu estava brava demais para ser gentil - o que ficou extremamente claro quando, distraída, acabei descendo a xícara sobre o pires com mais força que o necessário, criando um ruído exagerado e entornando o conteúdo sobre a bandeja.

    Meu corpo estremeceu com o susto e a mão pequena de minha irmã voou para a minha imediatamente. Seus dedos curtos acariciando os meus com cuidado; as íris claras, agora ainda mais brilhantes sob a luz do sol, fixas no ponto em que nos uníamos:

    - Você me desculpa? - Começou em um sussurro - Eu sei que você odeia quando faço isso...

    Eu precisei morder a língua para me impedir de ser rude:

    - Sim. Eu odeio!

    Val bufou o ar para fora dos pulmões:

    - Juro que não foi minha intenção! Eu só... - Ela praticamente gaguejou, respirando fundo como se tomasse coragem antes de, finalmente, me olhar nos olhos; sua expressão aflita destruindo completamente minha irritação em poucos segundos - Eu tenho andado tão estressada ultimamente, B... Tão à flor da pele com tudo... Eu só... - Val mordeu o próprio lábio com força, inflando o peito ao inspirar profundamente; o rosto torcido em uma careta de dor que criou um nó na minha garganta.

    - E eu pude sentir meus olhos ardendo ao constatar a realidade dos fatos:

    - A culpa é minha! - Concluí, minha voz soando trêmula - Quem devia estar pedindo desculpas sou eu! Por Deus, Vee... Como eu sou idiota!

    - Hey! Hey! Não seja tão egocêntrica, Rainha do Baile... - Ela sorriu minimamente, empurrando a bandeja de café para longe e se sentando mais próxima de mim - Isso não tem nada haver com você!

    - Não precisa tentar amenizar minha culpa...

    - Não estou tentando amenizar coisa alguma, simplesmente porque não há o que ser amenizado! - Val afirmou categórica, afastando meus cabelos para trás da orelha antes de acariciar meu ombro - Escuta... Eu sei que você está se culpando pelas coisas que disse naquele dia, eu vejo isso nos seus olhos, mas não há com o que se preocupar, ok?

    Foi a minha vez de abaixar a cabeça, apertando meu maxilar na tentativa de impedir que minhas lágrimas rolassem:

    - Eu não quis dizer aquilo! Juro que não! - Solucei - Eu juro...

    - Pare! Pare de jurar! - Ela ergueu meu rosto na sua direção novamente.

    E me surpreendi ao constatar que Val, na verdade, estava... rindo?

    - Você está rindo de mim? - Franzi a testa, confusa.

    - Não... Não! - Minha irmã espremeu os lábios para se manter séria - É só... - Ela revirou os olhos - Você está surtando por nada!

    - Como?

    - De repente, o modo como Vee me olhava era pura doçura e seu sorriso alcançava os olhos novamente:

    - Bree, quantas vezes eu já te ouvi falar para o Mike coisas como: "a minha mãe está te chamando" ou "o meu pai mandou avisar..."? - Val deu de ombros - Eu acho que isso é algo de quem sempre teve irmãos, sabe? Vocês todos acabam sendo possessivos assim... Sem nem ao menos notarem.

    Ergui uma das minhas sobrancelhas, pensando no que acabara de ouvir - e concluindo que ela tinha razão, obviamente.

    Pensando bem, Mike e eu sempre falávamos assim um com o outro, Joey e Danny também... O tipo de coisa que eu nunca dera muita atenção, mas que sempre esteve lá. Era apenas com Valquíria, agora eu podia perceber, que fazíamos questão de usar palavras mais abrangentes e inclusivas; como "nosso", por exemplo.

    Era a primeira vez que eu dava alguma atenção à isso, percebendo o acordo mudo que, aparentemente, havia se estabelecido entre Mike e eu anos atrás a fim de fazê-la se sentir parte da família mais rapidamente.

    Então...

    - Quer dizer que você não ficou chateada comigo?

    - É claro que não! - Val sorriu antes de franzir da testa - Quer dizer... Não muito. Eu não posso dizer que não foi um choque te ver gritando comigo pela primeira vez na vida mas, vamos lá... Quer dizer... Eu também não sou tããão sensível assim! - Ela soltou uma gargalhada curta e divertida.

    Eu estava oficialmente confusa:

    - E-eu... Não entendo...

    Valquíria desviou o olhar por um instante, toda descontração sumindo gradativamente, os ombros ganhando contornos tensos pouco antes de se levantar para seguir até as janelas altas do meu quarto, abrindo uma delas e permitindo que o ar fresco invadisse o ambiente, lambendo seus cabelos dourados para cima. Eu sabia que ela estava apenas tentando se distrair, arrumando qualquer desculpa para se manter em atividade enquanto tomava coragem para me dizer o que quer que tivesse cruzado sua mente de maneira tão repentina - e tão violenta que fora capaz de alterar toda a sua postura.

    Entrementes, resolvi que ao menos dessa vez era melhor não interferir em seu processo; sentada na mesma posição sobre a cama bagunçada, observando os movimentos lentos de seu corpo, que pareceu estremecer quando finalmente respirou fundo:

    - Ela estaria fazendo 35 anos hoje... - Minha irmã praticamente murmurou, ainda olhando para a paisagem de fora.

    E eu franzi a testa para seu comentário solto:

    - Ela? - Perguntei, confusa - "Ela" quem, V? De quem você está falan... - E então a resposta me atingiu com a força de um soco na boca do estômago, me erguendo das cobertas em um pulo - Oh, meu Deus... Rose!

    Val estremeceu mais uma vez à menção do nome, a coluna travada de um jeito que indicavam a força que ela fazia para se manter de pé - e eu queria me bater, furiosa com minha própria estupidez.

    "Como eu fui capaz de esquecer?", me recriminei mentalmente, correndo para perto dela. "Como eu pude não me lembrar disso?"

    - Hoje é aniversário da minha mãe, Bree... - Sua voz soou falha, completamente quebrada e, novamente, eu me odiei por ser egoísta ao ponto de deixar algo tão importante passar.

    - E-eu... Eu sinto muito! - Apertei meus olhos fechados assim que as palavras fugiram de mim, por que era a coisa mais imbecil que que poderia dizer e por que eu precisava urgentemente descobrir uma forma de não travar em momentos como esse, mas, quando os abri novamente, Valquíria estava de frente para mim; os olhos e o nariz vermelhos, seu corpo parecendo ainda menor, encolhido enquanto abraçava a si mesma.

    - E mais uma vez tive a sensação de que meu coração se apertava no peito, respirando fundo quando percorri os últimos três passos que ainda nos mantinham separadas e a envolvi em meus braços, sentindo suas lágrimas - finalmente - se libertarem contra o meu ombro.

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    Nós havíamos passado o restinho daquela manhã entre lágrimas e agora, com Valquíria um pouco mais calma, eu tentava convencê-la a comer pelo menos um sanduíche de manteiga de amendoim com suco que eu havia preparado e trazido para o quarto - a comida de nossa mãe, para a surpresa de absolutamente ninguém, parecia tão intragável que nem ao menos me atrevi a provar:

    - Vamos lá... - Insisti mais um pouco - É daquela marca que você gosta. Eu até cortei as bordas e coloquei um pouco de mel vegano em cima, por mais nojento que eu ache isso...

    Val deixou que uma risadinha escapasse de seus lábios em forma de um resmungo enquanto revirava os olhos, ainda avermelhados, mas deu uma mordidinha tímida mesmo assim:

    - Está perfeito, obrigada - Ela agradeceu depois de engolir, tomando um gole do suco de maçã em seguida.

    - Seu rosto, entretanto, ainda se mantinha extremamente abatido, as íris viajando pela paisagem lá fora distraidamente, como se procurasse por algo que não estava lá.

    Ou, mais precisamente, por alguém.

    Respirei fundo resignada, tomando uma de suas mãos entre as minhas antes mesmo de começar a falar o que estava se passando pela minha cabeça:

    - Era de Rose que você estava falando ontem, não era? "O rosto dela"... Você repetiu isso algumas vezes...

    Val afirmou com um acenar de cabeça:

    - É como se ela estivesse sumindo aos poucos... Se tornando uma memória distante que eu não consigo mais alcançar...

    - Você sabe que isso não é verdade - Tentei ser racional - Não é como se você fosse se esquecer...

    - Mas eu estou esquecendo! - Ela me interrompeu, nervosa; os olhos viajando para os meus, claramente aflitos, e sua voz vibrando alta demais em meus ouvidos, aguda pelo desespero - Eu estou esquecendo dela, Bree... Da minha própria mãe...

    Mordi meu lábio nervosamente por saber que não havia muito que pudesse ser dito sobre aquilo; não havia, enfim, como racionalizar com ela naquele momento.

    "Mas, talvez, haja uma maneira de melhorar as coisas...", eu pensei comigo mesma, me agarrando a uma idéia completamente maluca que me atingiu e, mesmo em dúvida se seria boa ou não, resolvi que valia a pena tentar:

    - Vem comigo!

    - O que? - Sua voz saiu em um gritinho estridente - Para onde?

    Não me dei ao trabalho de responder, arrancando de sua mão o resto de sanduíche que ela ainda segurava e arrastando-a para fora do quarto através do curto espaço que separava nossas portas, puxando-a degraus acima sem muita delicadeza - e, por um instante, deixei uma Valquíria completamente confusa sentada sobre a cama enquanto invadia seu closet à procura da caixa azul marinho que, eu sabia, só podia estar em algum lugar ali dentro:

    - Onde você a escondeu? - Praticamente gritei, agitada.

    - O que? - Val gritou de volta.

    - A caixa...

    - Que caixa?

    - A azul!

    - E pra que você a quer?

    Nós estávamos aos berros:

    - Inferno! Por que diabos nós estamos gritando?

    - Foi você quem começou! - Valquíria grunhiu.

    - Argh! Ok! - Me arrastei até a porta para encará-la - Parei!

    - É um ótimo começo... - Minha irmã resmungou, os braços cruzados sobre o peito.

    Eu bufei antes de respirar fundo para prosseguir:

    - Valquíria... Veezinha... Minha irmãzinha favorita... - O olhar debochado que ela lançou na minha direção me fez rir antes de continuar - Será que você pode me mostrar onde está sua caixa de fotos? Por favor...

    As sobrancelhas douradas da menina se franziram:

    - Será que eu posso saber por que você a quer?

    Cerrei o maxilar.

    Ela tinha mesmo que fazer tantas perguntas?

    - Facilita, Vee... - Eu pedi, praticamente entre os dentes.

    Val ainda me encarava com os olhos semicerrados antes de, finalmente, dar ombros, aparentemente desistindo de discutir à respeito, e passar por mim para dentro do cômodo - subindo a escadinha de apoio do closet e retirando a bendita caixa azul da prateleira mais alta antes de empurrá-la em meus braços com ar de desconfiança.

    Sorri em agradecimento, puxando-a pela mão novamente e praticamente a obrigando a se sentar no chão ao lado de sua cama junto à mim, o objeto de papelão repousando entre nós enquanto eu tirava a tampa para virar todo o conteúdo sobre o tapete branco felpudo:

    - Você pode, ao menos, me dizer o que está fazendo? - Ela parecia nervosa, vendo todas as fotografias, suas memórias, espalhadas daquela forma descuidada.

    Mas não me deixei abalar, procurando entre os papéis coloridos uma certa imagem que eu me lembrava de já ter visto antes:

    - Achei! - Comemorei brevemente, mostrando a ela uma foto antiga, em formato 10x15, onde um casal extremamente jovem sorria, ambos bem vestidos para o baile de formatura da escola, exalando felicidade enquanto a menina loira exibia a barriga enorme em seu sétimo ou oitavo mês de gravidez.

    - Meus pais... - Valquíria deu um sorriso vacilante, tomando a imagem entre os dedos de forma carinhosa.

    - Eles formavam um lindo casal...

    - Formavam, não é? - Vee ainda os encarava - Você sabia que ela foi rainha do baile de formatura? Mesmo com esse barrigão... Foi a primeira...

    "A primeira rainha do baile gestante na história da Baylor High"... - Eu completei calmamente - É. Você já comentou sim... Uma ou duas ou umas dez mil vezes...

    Valquíria me deu um empurrãozinho no ombro, parecendo sem jeito:

    - É só... Eu não sei... - Ela deu de ombros - Eu sempre gostei da história dos dois...

    - Você me conta? - Pedi simplesmente, chamando a atenção de minha irmã que ergueu a cabeça franzindo a testa.

    - Você já sabe como tudo aconteceu...

    - Mas eu quero ouvir de novo - Insisti, e consegui ver um sorrisinho pintando seus lábios antes que ela tomasse fôlego para falar.

    - "O Maior Clichê do Século!", era como minha mãe chamava...

    Valquíria esticou o braço, tomando entre os dedos outra imagem de seus pais, agora já coroados, diante de um enorme painel de flores, e então, pelos próximos dez ou quinze minutos, me contou - mais uma vez - a história de Richard e Rosemary... A história de como a garota tímida do clube de teatro da escola se apaixonou pelo inalcançável capitão do time de basquete e, de alguma forma, acabou como sua parceira nas aulas de economia doméstica.

    Eu prestava atenção em suas palavras enquanto aproveitava aquele tempo para olhar todas as fotografias entre nós, procurando qualquer uma que pudesse me ajudar em minhas intenções:

    - Ele me parece o tipo de cara que valeria a pena - Eu comentei, mostrando a ela outra foto; uma onde Richard aparecia em seu uniforme do time, uma bola laranja embaixo do braço direito e o rosto afogueado pelo esforço da partida - O seu pai era um ruivo muito gato!

    Val riu de meu comentário, revirando os olhos:

    - Sim. Ele era gato mesmo... - Ela sorriu saudosa - E realmente valia a pena. Você sabia que ele arrumou um segundo emprego, noturno, só para alugar a limousine do baile de formatura?

    - Não... Essa parte você nunca me contou...

    - Foi o que ele fez - Val parecia orgulhosa - Todos os amigos da mamãe sabiam que ela sonhava com a noite do baile a anos e, quando ele descobriu isso, decidiu que faria de tudo para levá-la em grande estilo.

    - Seu tom era nostálgico - exatamente como eu me sentia quando nossos pais falavam do passado... A saudade de um tempo que nós nem ao menos havíamos vivido.

    - Vamos lá... - Resolvi mudar os ânimos antes que uma de nós caísse no choro novamente - Me conte algo sobre Rose...

    - O que? - Valquíria se sobressaltou, me encarando com olhos arregalados.

    - Rosemary... - Esclareci calmamente - Você nunca fala sobre sua mãe... Quero que me conte algo.

    Minha irmã desviou sua atenção para longe novamente, as mãos torcendo a barra do casaco em um nervosismo repentino:

    - Eu não sei, Bree... Não sei se é uma boa ideia. Ainda dói tanto...

    E, mesmo que eu também não soubesse se era o caminho certo a seguir, decidi que valia a tentativa:

    - Você sabia que quando a nossa tia Brittany morreu, a mamãe não conseguia sequer ouvir o nome dela? - Perguntei em tom baixo, recebendo apenas o silêncio como resposta - Ela também não era capaz de chegar perto de um piano, sem cair no choro imediatamente...

    - É... Eu sei disso... - Vee comentou, e eu percebi que apesar de ainda não me dirigir o olhar, ela prestava atenção no que eu dizia; sendo assim, prossegui enquanto me arrastava pelo chão até estar ao seu lado.

    - Então, você sabe que foram necessários mais de dez anos, e um pequeno Michael absurdamente insistente, para fazê-la voltar à tocar, mais de dez anos longe de uma das coisas que ela mais ama na vida.

    Valquíria respirou fundo silenciosamente, franzindo a testa em confusão:

    - Você pretende me explicar aonde quer chegar com isso?

    Revirei os olhos empurrando-a levemente com o ombro:

    - Quero chegar no fato de que a nossa mãe sofreu como você, Vee. Assim como você, ela perdeu a pessoa que mais amava no mundo e se trancou para tudo que poderia fazê-la lembrar dessa dor e, assim como você está tentando fazer, tão arduamente, ela também preferiu sofrer sozinha...

    - Eu não...

    - Nossa mãe me deu esse nome por um motivo - A interrompi - Foi como uma forma de homenagear a memória de nossa tia, mas, de criar novas histórias também, de se obrigar a dizer esse nome em voz alta, dar à ele um novo significado... Doeu, mas um dia ela voltou a tocar de novo, com Michael, construiu novas memórias sobre isso, cuidou realmente das feridas, ao invés de simplesmente se esforçar ignorá-las... Foi isso o que as fez cicatrizar de verdade, Vee...

    Minha irmã respirou fundo lentamente, os olhos úmidos quando os desviou para longe mais uma vez, sua mão subindo rapidamente para secar as bochechas - e eu, que jurava que ela me daria outra resposta atravessada, ou que sairia correndo novamente, me surpreendi quando Val se aproximou ainda mais, repousando a cabeça em meu ombro suavemente:

    - Ela tinha uma risada ridícula... - Sua voz soou pouco mais alta que um sussurro.

    - Como? - Eu não sabia se tinha ouvido bem e decidi confirmar.

    - Minha mãe... - Vee suspirou - Ela tinha uma risada ridícula, do tipo que fazia as pessoas pararem o que estavam fazendo e rirem também. Era impossível não rir.

    Senti o alívio inundar meu peito ao perceber que Val sorria:

    - Eu não sabia disso...

    - Combinava com ela, sabe? Mamãe era tão desastrada que era capaz de tropeçar nos próprios pés. Várias vezes por dia...

    Não pude segurar uma risada:

    - Acho que eu nunca te vi tropeçar... Nem ao menos uma vez.

    - Devo ter herdado as habilidades motoras do meu pai - Val deu de ombros - Era o que mamãe sempre dizia...

    - Faz sentido - Eu acenei com a cabeça.

    - Ela também era um horror na cozinha.

    - Sério? Então, Rose é a responsável por te fazer uma Pierce perfeita? - Perguntei em tom divertido, pensando em como as mulheres na nossa família eram conhecidas por suas aventuras culinárias fracassadas e me espantando quando minha irmã começou a rir, aparentemente, sem motivo algum - O que foi? - Eu me afastei para encará-la - Nosso fracasso não é tão divertido assim...

    - Não. Não é isso. Eu só... me lembrei de algo... - Ela inspirou fundo, tentando regular a respiração novamente, enquanto eu esperava para ouvir a história - Uma vez, a professora do Jardim de Infância decidiu fazer uma venda de doces em um evento da escola... Eu não me lembro muito bem o que era, ou pra que queriam o dinheiro mas, eu lembro que acabei encarregada de levar os cupcakes - Ela riu novamente.

    Franzi o cenho, pensando ter perdido alguma parte da história:

    - E...? - Insisti, franzindo o cenho.

    - Eeee... que nós começamos a cozinhar, tentando seguir alguma receita que nem ao menos tenho ideia de onde mamãe arrumou - Valquíria prosseguiu - Algumas horas depois era como se uma bomba tivesse explodido no meio dos ingredientes...

    - O que? Como assim?

    Vee procurou por alguns instantes antes de conseguir resgatar uma das fotos na pilha à nossa frente, me apontando uma Polaroid levemente desbotada na qual ainda era possível ver Rose, um sorriso lindo nos lábios, os olhos castanhos brilhando enquanto posava ao lado de Valquíria - que segurava uma batedeira de mão lilás com um sorriso extremamente empolgado no rostinho rechonchudo infantil:

    - Nós terminamos com farinha e chocolate em pó espalhados por cada centímetro da nossa cozinha minúscula. Eu me lembro de mamãe lutando para lavar os restos de ovos das pontas do cabelo, e posso jurar que havia massa até mesmo no teto - Ela gargalhou sonoramente, comigo a acompanhando, nossas cabeças se inclinando para trás.

    - E os cupcakes? - Perguntei, realmente curiosa - Venderam bem, pelo menos?

    - Nem ao menos conseguimos provar. Acho que estavam tão duros que poderiam ser usados como arma!

    Nós duas rimos ainda mais - o rosto de Val ficando vermelho:

    - Não acredito nisso!

    - Na segunda... - Val tomou um fôlego antes de ser capaz de continuar - Na segunda de manhã eu seguia para a escola com duas caixas de cupcakes de uma padaria qualquer, muito bem disfarçados para parecerem caseiros...

    Ela secava os cantos dos olhos, respirando fundo ruidosamente e eu já segurava minhas costelas doloridas:

    - Oh, meu Deus! - Abanei o rosto com as mãos, sentindo minhas bochechas quentes - Rose era das minhas!

    - Sim - Minha irmã concordou com um gesto, as íris brilhando - Vocês teriam se dado muito bem - Ela enfatizou, o sorriso saudoso de volta ao rosto mas, dessa vez, acompanhado de um olhar mais tranquilo, feliz até - Obrigada!

    - O que?

    - Obrigada! - Val repetiu - Eu nem ao menos me lembro qual foi a última vez em que pensei neles sem que doesse... Sem que eu sentisse como se estivesse prestes a sufocar.

    Diante de suas palavras, era como se uma sensação agridoce de tristeza e felicidade tomasse meu peito:

    - Não precisa me agradecer por nada... - Afirmei, apertando sua mão gentilmente - Eu só quero... eu espero, que você entenda que não precisa guardar tudo para si. Que, compartilhando as boas memórias, você pode tornar as coisas mais leves, entende? Criar novas lembranças à partir das antigas...

    Valquíria acenou com a cabeça em concordância novamente, um sorrisinho pintando os lábios rosados enquanto encarava mais uma imagem dos pais:

    - Acho que você tem razão...

    - Eu sempre tenho razão! - Rebati, empurrando-a com o ombro.

    - Vai sonhando... - Val debochou, revirando os olhos com ar divertido antes de direcioná-los à pilha de fotografias novamente, sua expressão se tornando pensativa e concentrada de um instante para o outro - Você me ajuda? - Ela perguntou em um tom brando, ainda sem me encarar.

    Eu franzi o cenho, um pouco perdida:

    - À guardar?

    - Não - Val negou com a cabeça, se pondo de pé novamente - À fazer um mural com elas... - Ela juntou algumas imagens nas mãos impacientes, se movendo de um lado para o outro sem parar - Foi você quem disse que eu não posso esconder o meu passado em uma caixa e torcer para que ele pare de me machucar, certo?

    - Certo... - Acenei lentamente com a cabeça, um tanto quanto espantada com sua mudança repentina de postura - Mas... Vee... - Tentei começar, quase gaguejando diante de sua agitação - Isso não quer dizer que você precise ser tão radical. Quer dizer...

    - Eu preciso! - Valquíria interrompeu minhas palavras bruscamente, enfim parando para me olhar nos olhos, sua expressão parecendo, de alguma forma, confusa e determinada ao mesmo tempo - Eu sei que isso vai doer, ok? - Ela inspirou profundamente, trocando o peso do corpo sobre as pernas enquanto falava, os ombros tensos - Eu sei que parece loucura e que talvez eu não seja capaz de dormir aqui sozinha por dias... Mas, eles são meus pais, Bree. E eu não posso esquece-los.

    Não havia muito mais que pudesse ser dito à minha irmã naquele momento, simplesmente por que eu sabia o quanto ela podia ser teimosa quando tomava uma decisão sobre algo:

    - Você tem certeza? - Eu perguntei, só por garantia.

    Val negou com a cabeça, sorrindo timidamente:

    - Certeza é tudo que eu não tenho... - Ela encolheu um pouco os ombros - Mas, eu sei que preciso tentar.

    Acenei uma afirmativa enquanto me levantava do chão, meu sorriso se abrindo diante de sua coragem - se ela precisava de ajuda nisso, eu queria que soubesse que me teria ao seu lado:

    - Eu vou buscar minhas fitas adesivas... Você me espera aqui?



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¹ - ginger shots são nada mais que shots de gengibre concentrado, muito usados - não só por cantores - no tratamento/manutenção da qualidade da voz.

² - It girl é um termo utilizado para se referir a mulheres, geralmente muito jovens, que, mesmo sem querer, criam tendências, despertam o interesse das pessoas em relação ao seu modo de vestir, de andar, pensar ou ser.

³ - A "Ivy League" (Liga de Hera) é uma conferência desportiva daNational Collegiate Athletic Association de oito universidades privadas do nordeste dos Estados Unidos.


MÚSICAS DO CAPÍTULO:
Photograph - Ed Sheeran
Livin' La Vida Loca - Ricky Martin

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