Constelação de Gritos Mudos (...

By CarolTeles

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Sinopse: Eles sempre dizem que no interior, as estrelas brilham mais. Em Novo Airão, distrito perdido no meio... More

Apresentação
Protagonistas
O Clube
Prólogo
Capítulo 1: Narrador
Capítulo 2: Sylvia
Capítulo 3: Artie
Capítulo 4: Sylvia
Capítulo 6: Sylvia
Capítulo 7: Artie
Capítulo 8: Sylvia
Capítulo 9: Artie
Capítulo 10: Sylvia

Capítulo 5: Artie

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By CarolTeles

A primeira coisa que Louis me perguntou quando o chamamos para fazer parte do clube, depois de explicar de fato o que fazíamos nele, foi "porque astronomia?".

Essa era uma pergunta recorrente a todos os integrantes que eram convocados para ele. E a verdade era que eu queria ter uma resposta poética para isso, mas tudo o que fui capaz de articular foi "porque dependemos da noite. E quando os gatos dormem, os ratos fazem a festa".

Foi difícil convencer o diretor que deveríamos ter um clube de astronomia na Tenreiro Aranha. Ele alegou que precisávamos de um professor orientador para estar nos encontros uma vez ao mês e avaliar nosso progresso, e isso era complicado por ali. Não tínhamos muitos licenciados em astronomia no Amazonas, e precisávamos de alguém que não nos avaliasse de verdade. Não éramos todos fãs de astronomia. Aquilo era só uma desculpa para estar fora da cama no meio da madrugada.

Eu conhecia um pouco do espaço, como Nico, porque nosso pai sempre gostou do assunto e vez ou outra, quando éramos crianças, sentava conosco e um telescópio, nos ensinando sobre buracos negros, galáxias e estrelas. Mas não podia dizer que Baltazar, por exemplo, entendesse nada ao olhar para o céu além de saber onde encontrar as Três Marias, e isso sendo muito positivo. Não era o conhecimento espacial que garantia alguém a entrar no grupo, mas o quão mentiroso e habilidoso éramos capazes de ser sem nos entregar. E Balta era bom demais com as mãos para ignorá-lo por desconhecer estrelas.

Então Leônidas, como sempre, foi o mestre do plano que trouxe Jony para nossa escola. Chegou aqui com diploma de astronomia pela USP e P.H.D em física de astropartículas pela SISSA, uma escola de estudos avançados na Itália. Se ele havia feito alguma dessas coisas? Que nada! Era formado em física pela UFAL e deu aula no ensino médio de duas escolas particulares em Maceió. Era um hippie maconheiro que gostava de gastar muito e trabalhar pouco, e acabou conhecendo Leo em uma viagem de trem, exatamente nas férias que estávamos caçando o escolhido que ocuparia o papel de professor.

Depois de convencer o cara de que isso seria o pote de ouro dele, e de garantir estoque exclusivo de cannabis da venda de Thomas, foi simples criar documentos falsos e uma vida falsa. A checagem feita pela escola dos antigos trabalhos de Jony caia em um telefone de mentira que era atendido por alguém que pagávamos para dizer o que queríamos.

Então ali vivia Jony: Um magricela de cabelos longos e ar de constante sono que ia aos nossos encontros uma vez por mês e dormia todo o tempo que passávamos no telescópio. Ou não passávamos.

Lecionava uma disciplina de astrofísica como eletiva na escola para quem quisesse, que era quase ninguém. Os poucos alunos que se interessavam pelo assunto a gente costumava dispensar através de provas e trabalhos horríveis, ou de um professor que pegava muito no pé. Como era uma eletiva, ninguém tinha obrigação de cursar. E para a nossa sorte, nenhum aluno chegou por ali realmente bom em astronomia para que não conseguíssemos colocar para correr. Em resumo, só cursava a disciplina quem queríamos, e só participava do clube quem cursava ela e tivesse média geral muito alta, para que as horas perdidas da noite não atrapalhasse o desempenho escolar.

Tínhamos Jony e a diretoria da escola nas nossas mãos habilidosas, graças aos planos mirabolantes de Leo. Hoje o clube era considerado elitizado pelos outros alunos da Tenreiro, e uma quantidade considerável daqueles garotos tentavam entrar justamente por sermos tão exclusivos. Gente rica apreciava exclusividade. Mas quando percebiam que não tinham lugar conosco, simplesmente abriam espaço para a gente nos corredores da escola e criavam seus próprios clubes com suas próprias regras, como se aquilo fosse nos causar inveja. Eles não tinham a mínima ideia do que fazíamos e de como era babaca passar na nossa cara um clube de polo aquático ou de Jenga.

Naquela noite, enquanto andava pelos corredores em direção a saída dos fundo da escola, eu levantei a aba do casaco sobre meu pescoço. O Amazonas não era um estado frio, muito pelo contrário, mas justamente por isso quando esfriava um pouco o tempo, eu já estava me cobrindo inteiro. Falta de costume era uma merda.

Meu sapato fazia eco com a pisada firme no assoalho bem conservado, que misturado ao barulho da chuva fina do lado de fora, gerava uma sinfonia estranha pelos ambientes vazios. Ivan, um dos monitores, me acompanha um pouco atrás.

Era regra geral que cada um de nós fossemos acompanhados quando caminhávamos pela noite na escola, com exceção de finais de semana e feriados. Então eles nos deixavam no portão principal, e as três da manhã nos pegavam no mesmo lugar. Se alguma vez acharam estranho voltarmos por vezes descabelados ou sujos, nunca falaram nada. E se falassem, a nossa desculpa padrão era brincar que olhar estrelas poderia ser um trabalho perigoso.

Avistei os meninos já parados embaixo do portal enorme de pedra. Louis sentado no chão, de olho na chuva, Vince mexendo no celular ao lado dele, Balta com uma expressão sonolenta pouco atrás. Nico cochilando em uma poltrona antiga, Etienne encostado na parede, de braços cruzados e parecendo um galã francês metido, Leônidas batendo o pé, com as mãos no bolso da calça, os olhos vidrados no lado de fora e Thomas meio perdido no meio deles, o que chamou minha atenção de imediato. Thomas jamais parecia perdido em lugar nenhum. Era o cara mais adaptável que eu conhecia. Franzi minha testa para ele, que desviou de mim e acenou para os monitores quando eles se juntaram e foram embora

Não foi preciso que nada fosse dito entre a gente. Nunca era. Ou outros simplesmente ficaram de pé, subindo a capa de chuva pela cabeça e fechando os casacos por cima das roupas. Formamos uma linha em frente ao portal, mantendo-me ao meio, como sempre havia sido. Uma confirmação muda de que aquilo havia sido formado por mim, e que eu quem comandava o jogo.

Quando assobiei para eles, saímos correndo porta afora, respingando lama em nossas calças arrumadas e nos sapatos engraxados. Eu ri. Adorava aquela sensação de liberdade de quando corríamos nos jardins da escola no meio da noite. De alguma forma parecia uma quebra das regras, uma violação de todo o método retrógrado de educação que nossos pais impunham para a gente durante anos, nos colocando naquela merda de lugar. Ao correr feito loucos no meio da mata, e às vezes acompanhado pela neblina, era assim que sentíamos: garotos além da ordem. Ousados ousando em viver. Como dizia meu poeta predileto, Thoureau: "Indo a floresta porque queríamos viver livres".

A cabana de observação espacial, que era como chamávamos a sala onde estavam os telescópios, ficava uns duzentos metros afastada da escola, em cima de um pequeno morro e perto do portão de descarga de mercadorias. Havia sido uma posição estrategicamente pensada para facilitar nossa saída. De acordo com a desculpa esfarrapada de Jony para o diretor, aquele era o melhor lugar das redondezas para colocarem as máquinas. Não era de todo mentira, já que as árvores ao redor dos prédios fechavam a mata e tornavam impossível o uso de telescópios, a não ser que fosse no telhado da escola. E como o diretor não confiava o suficiente em nós em um telhado, preferiu a cabana em cima do morro.

Quando chegamos eu abri a porta usando minha chave, e os outros me empurraram para dentro, na intenção de fugir da chuva. Entramos aos tropeços, pendurando meticulosamente as capas nos ganchos atrás da porta, fazendo os pingos contínuos que caíam delas molharem o chão, que já não estava seco pela nossa presença. E quando por fim desabamos ao redor da mesa grande, desatamos a rir de nada em específico. Só porque correr na chuva era gostoso e engraçado.

— Cara, estou me sentindo um pinto molhado. — Falou Vincent tirando a blusa de baixo e pendurando no encosto da cadeira. — Vai, Louis, faça algo útil e pega nossos macacões no armário.

Ele jogou as chaves do armário para o caçula do grupo, que saiu trotando com empolgação. O menino ainda estava naquela fase de achar tudo o que fazíamos muito estoico e puro. Não havia percebido como também era tão errado. Mas iria. Uma hora a gente sempre sentia.

— Essa chuva vai atrapalhar a visibilidade. — Pensei alto enquanto também tirava minha roupa úmida. — Não gosto disso.

— A previsão do tempo continua dizendo que é passageira. — Conferiu Nico pelo celular. Já estava de cueca. — Acho que não vai atrapalhar.

— Ainda não tenho certeza. — Peguei meu macacão das mãos de Louis e enfiei meus pés rápido. O frio fazendo minha boca tremer involuntariamente. — O que você acha, Thomas? A estrada não é das melhores e ultrapassagem com chuva não é muito seguro.

Thomas era nosso primeiro motorista. Só quatro de nós já tínhamos idade para dirigir, mas Leo se encarregava da estratégia, ficando na van com Vince e Balta era nosso melhor lutador. Então a direção de fuga sobrava para mim e Thomas.

Vez ou outra apostávamos corrida nas estradas vazias de Airão. Ele sempre saía vitorioso, mas porque Thomas era um motorista traiçoeiro e mestre das ilusões quando segurava um volante. Quando eu achava que ele estava atrás de mim, Thomas surgia do nada ao meu lado, me empurrando fora da estrada. O susto era um dos motivos pelos quais eu odiava estar à frente dele. Nunca sabia de onde ele viria nem quando me ferraria quando viesse. A única certeza era que ele viria. Sempre vinha. E me ferraria de qualquer jeito.

— Thomas? — Etienne perguntou com cautela e eu parei de fechar o macacão, levantando a cabeça na direção de Thomas.

Em dias de missão fora da escola, Thomas era o ativo do grupo. O primeiro a colocar a roupa, o primeiro a pegar o mapa e recapitular o plano. Era concentrado e seguro. Muito diferente do cara que via ali na minha frente.

Ainda vestia as roupas molhadas e estava sentado na cadeira, com um olhar vago em direção ao nada. Cutucando a cutícula do polegar esquerdo e pingando o cabelo molhado em cima da mesa, Thomas parecia muito longe dali.

Olhei para Nico e Leônidas, que era sempre para onde olhava quando tínhamos problemas, mas eles deram de ombros, tão confusos quanto eu. Por isso sentei-me lentamente na cadeira ao lado de Thomas e belisquei sua mão com delicadeza.

— Ei, cara, o que houve? — Perguntei baixo e, discretamente, acenei para que os outros continuassem seus afazeres e nos desse privacidade, o que eles fizeram sem pestanejar.

Thomas levantou a cabeça e me fitou por um longo tempo. Foi quando enxerguei em seus olhos a agonia que estava sentindo. A agonia que achei ter visto no portal da escola e que agora tinha certeza de que não era ilusão minha.

— Não deveria tocar nesse assunto hoje. — Sua voz saiu fraca. — Estamos prestes a entrar em missão e preciso estar concentrado, mas é que... — Ele passou a mão no cabelo molhado. — uma bomba do caralho caiu nas minhas costas e não estou conseguindo lidar com ela como deveria. Porra, eu vendo cocaína para professores! Eu deveria aguentar pressão, não é?

Suspirei.

Não tinha coisa para me causar mais aflição do que ver um daqueles meninos sofrendo. Constantemente eu queria arrancar o que lhes causava mal ou dar um tiro bem na testa do que fosse o agouro.

As pessoas tinham mania de achar que gente rica não tinha as próprias dores e lamúrias, ou que não merecíamos ter porque havia o dinheiro para contornar isso. Às vezes elas esquecem que sempre queremos o que não temos. Se o sonho da sua vida é viajar para África e você realiza, o seu sonho passa a ser criar um unicórnio. Assim funcionava conosco também. Não tínhamos muitos sonhos envolvendo dinheiro, mas tínhamos diversos envolvendo afeto, por exemplo. Era o caso dos oito membros do nosso clube. Esse era um dos requisitos necessários para estar ali: o sofrimento silente.

— Você quer que eu peça para os rapazes saírem, para a gente conversar?

Era uma pergunta idiota, e constatei isso quando vi o olhar de Leônidas para mim. Ele não sairia dali nem por decreto, como Vince também não iria. Eles matariam e morreriam por Thomas. Sendo bem justo, todos nós faríamos qualquer coisa um pelo outro.

Thomas ponderou a questão por alguns segundos, e então negou com um balançado ritmado de cabeça.

— Preciso contar isso para alguém ou vou enlouquecer. Melhor que seja para todos vocês juntos. — Ele levantou e deu um tapa barulhento no topo da mesa. Ficou andando de um lado para o outro, em frente ao nosso quadro branco, concentrado e pensativo. Por fim virou para onde estávamos, completamente imóveis, esperando que ele dissesse alguma coisa, e jogou sua bomba na gente também — Donna está grávida.

O silêncio que se seguiu só não foi maior porque a chuva do lado de fora não deixou.

Minha visão periférica percebeu quando Vince sentou lentamente em uma cadeira, quando Etiénne soltou um "putz" ao meu lado e quando Leônidas respirou fundo, parecendo que tinha dez quilos naquele simples gesto. Eu estava apenas tentando processar.

Depois do que pareceu uma eternidade, ouvi a voz de Balta, forte e amedrontadora, falar com cuidado.

— Ela tem certeza?

— Fez um ultrassom hoje. — Thomas explicou com aquele olhar distante. — Não quis me contar até confirmar. Nem imagino há quanto tempo vinha guardando isso de mim.

O sofrimento dele pareceu intensificar por pensar em Donna passando por isso sozinha. Aquela era uma das grandes certezas que eu tinha na vida: Thomas era absolutamente maluco pela namorada. Invejei isso por anos, enquanto o relacionamento deles ia solidificando. Esse amor desmedido. Que te faz pular pontes e passar vergonha. Isso eu ainda não tinha vivido, mesmo com todo dinheiro do mundo. Novamente aquela questão de querer o que não se tem.

— Porra, Thomas, ela não tomava a porcaria do remédio? — Leônidas praguejou ao meu lado. Ele sempre se comportando como um pai ou irmão mais velho de maneira agressiva. — E onde está aquele monte de camisinhas importadas que sempre trago para vocês quando viajo? Não comprei para você deixar de enfeite na merda da gaveta, garoto!

Thomas abriu a boca para falar, mas nada saiu. Então ele abaixou a cabeça.

— Isso não vai ajudar agora, Leo. Ela já esta grávida e você passar um sermão nele não é solução.— Falei contido, de olho em Thomas. Ele parecia ter encolhido generosos centímetros em poucos minutos.

— Sei que não ajuda, mas se eu não reclamar não seria eu. — Leo retrucou furioso. — Caralho, não somos crianças. Ninguém aqui começou a transar ontem e todos sabemos os riscos. Só engravida hoje em dia quem for burro demais para ignorar tudo o que sabe. Qual o problema de Donna? Perdeu as aulas de educação sexual ou morou em uma caverna a vida toda?

— Para com isso, Leo! — Nico também sentou em uma cadeira, a expressão de sono indo embora completamente do seu rosto. — Você sabe que Donna não detém toda a culpa disso. Ela não engravidou com o dedo.

Etienne engoliu uma risadinha e pigarreou quando o olhei sério.

— Olha, eu não acho que Leônidas está completamente errado. — Ele explicou depois do pigarro.

Eu sei, está bem? — Thomas gritou, o que nos assustou. Ele raramente gritava. Era calculista demais para isso. Mas, pelo visto, até os calculistas tinham um limite. — Eu errei, ela errou, mas como Artie já disse, ela já está grávida e isso não vai mudar.

Ficamos calados por um tempo, absorvendo o que essa novidade já estava fazendo com ele. Algo assim poderia facilmente enlouquecer alguém, principalmente alguém que não tinha um bom histórico mental. Nenhum de nós tinha.

Foi Leônidas quem quebrou o silêncio.

— Com quantas semanas Donna está? — Ele perguntou puxando o celular do bolso. Parecia afoito.

— Seis. — respondeu Thomas ainda ofegante, do grito que havia nos dado. — Me disse que estava com seis.

— Maravilha. Consigo fazer algo até com doze semanas. — Leo respondeu no automático, mandando uma mensagem freneticamente. — Liga para Donna e diz para ela me encontrar amanhã de manhã no Centro. Manda ela inventar para a avó que vai passar o final de semana na casa de uma amiga.

Vince escancarou a boca para ele e Nico ficou mortalmente sério. Eu podia ver o julgamento em seu olhar. Até Etienne, que era totalmente a favor de resolver esse tipo de coisa rapidamente e na baixa, pareceu meio zonzo com a rapidez com a qual o cérebro de Leônidas trabalhava para proteger Thomas daquela forma um tanto cruel. A mim aquilo não afetava, estava acostumado com ele dizendo e fazendo coisas semelhantes. Então foi o olhar de Thomas que me fisgou. Ele pareceu tentado na ideia, mas logo em seguida balançou a cabeça em negação.

— Não vou pedir para Donna fazer um aborto, Leônidas. Se ela falar que quer, então a gente faz. Mas eu dizer? Nunca. O que Donna quiser fazer, vai ser feito.

Leo suspirou, frustrado, e então passou a discar um número no celular.

— Deixe-me falar com ela. Tenho certeza de que posso convencê-la. Vai ser melhor para os dois e... ei!

Baltazar pegou o celular das mãos dele e colocou nas minhas, uma ação rápida oriunda de uma das conversas silenciosas que eu era capaz de travar com ele. Balta sempre entendia meus pedidos, mesmo que não os explanasse, e os cumpria nem sem parar para pensar se faziam sentido.

— Você não vai se meter nisso, Leo. — Falei enfiando o telefone dele no bolso. — Eles tem que resolver sozinhos. Tenho certeza de que se a escolha de Donna for um aborto, eles vão te procurar.

— Mas que merda de situação! — Leo passou a mão no rosto, impaciente. Virou de costas e ficou olhando por um tempo a chuva através da janela. — Ok, mas prometa que vão me procurar mesmo. Sei todo o procedimento necessário e menos indolor para Donna.

— Você já fez? — Thomas perguntou para ele com a voz fraca. — Já levou alguém que você engravidou para fazer um aborto?

Três segundos, foi todo o tempo que Leônidas passou sem nada dizer, perdido em algum lugar distante das lembranças dele. Por fim também desabou em uma cadeira.

— Você não precisa saber disso. — Respondeu igualmente fraco, e todos soubemos que aquilo era um sim. Nem sempre nossos segredos era confidenciados em grupo. Aquela era uma novidade de Leo que eu desconhecia, e ainda assim não foi exatamente uma surpresa. Com a vida que ele levava, muito me impressionava que não houvesse uma fila de pequenos Leônidas na porta dele.

— Foi difícil? — Thomas voltou a questionar, atento na resposta do outro.

— Não o tanto que seria ter um filho. Eu tive um péssimo pai e sou um péssimo cara. O que eu poderia dar para uma criança além de dinheiro e lembranças tristes? Não quero replicar quem sou. — Confessou de cabeça baixa, para logo em seguida levantá-la com superioridade, porque era assim que Leônidas funcionava. Jamais entregava suas fraquezas por tempo suficiente para alguém ter algo contra ele.

— É bom ver você vulnerável de vez em quando, Leo. — Nico falou alto o que todos estávamos pensando.

— Não se acostume, seu porrinha! — Leônidas respondeu lançando um sorriso despreocupado que eu sabia ser uma farsa.

O silêncio voltou, e eu quase podia ouvir o maquinário funcionando nos cérebros de todos eles, porque também funcionava no meu. Mas infelizmente era uma situação que nem todos os planos possíveis de Leônidas poderiam dar um jeito, porque nada daquilo dependia das nossas habilidades com carros, estratégias, espadas ou parkour.

— Como está Donna com isso? — A voz baixa e delicada de Louis nos alertou para o mais sério da situação: Donna. Por mais que ficássemos preocupados com Thomas, era Donna quem estava carregando aquele problema. Literalmente. A preocupação de Louis com a namorada do amigo pareceu sensível e totalmente destoante do conjunto de quem éramos. Prova de que ainda tinha esperança para o garoto.

— Perdida. — Thomas disse num suspiro pesado. — Não tem com quem conversar sobre isso, porque logicamente não vai dizer para a avó. E eu estou preso nessa escola sem poder consolá-la por achar que vou começar a chorar na frente dela se tentasse, e isso seria uma bosta.

— Você precisa estar forte para ajudá-la. — Falei mantendo a calma. — E para aceitar qualquer decisão que ela tomar.

— Isso é tão egoísta. — Etienne extravasou indignado. — A garota quem escolhe se vai fuder com a vida do cara e ele nem pode opinar sobre isso?

É, nunca disse que Etienne era rei do bom senso. Por isso eu existia, a balança da justiça, para lembrá-los que nada era tão preto no branco, e que era preciso ter equilíbrio em tudo.

— Isso tudo começou porque, para início de conversa, Thomas fudeu ela. — Completei lançando meu olhar mais severo para Etienne. — E Thomas tem todo direito de opinar sobre isso, só que a decisão final não é dele.

— No final das contas ser pai não significa merda nenhuma, não é? — Vince disse em um tom distante — Olhe para a gente! Viramos bandidos no meio da noite porque detestamos muito nossos pais e não sabemos dizer isso para eles. Os psicólogos recomendaram um jeito de extravasar a raiva, e descobrimos que somos bons de Robin Hood e que isso ajuda a não colocar alguns psicotrópicos nos nosso cafés e torcer pescoços.

Baltazar soltou uma risada alta e sonora, e aquilo deu um certo alívio ao ambiente.

— Eu poderia torcer um ou dois pescoços mesmo assim. — Falou alto. — Mas entendo onde você quer chegar. Por experiência própria, se há alguma esperança em uma criança, fica a cargo da mãe. O pai só vai estragá-la.

— Mães também podem não ser a salvação. — Louis se arrepiou e eu ri dele. A mãe de Louis era pessoalmente um terror em seu papel materno. Ele tinha razão, mesmo que as estatísticas apontassem as mães como melhores educadoras, algumas delas simplesmente não tinham talento algum para isso.

— As chances maiores ainda estão com elas. — Nico completou, também sorrindo. Ele sabia disso. Nossa mãe tinha tido muito mais colhões do que meu pai teve em toda a vida.

E então voltamos ao silêncio barulhento, quebrado, novamente, pelos pingos de chuva através da janela, que já começavam a diminuir. O problema de Thomas pesando em cada um dos ombros daquela sala. Como disse, éramos uma unidade estranha e com um mecanismo insistente de auto preservação. Ainda estávamos pensando em um modo de salvá-lo.

Levantei do meu banco e fui até o nosso armário, que normalmente era trancado à chave, para que os faxineiros não soubessem que escondíamos tudo de mais importante que fazíamos ali dentro, apesar de saber que eles eram discretos. Ninguém jamais perguntou porque havia tanta poeira e teias de aranha nos telescópios que deveriam ser usados semanalmente.

Peguei uma garrafa de vodka russa que escondíamos atrás dos mapas e alguns copos de plástico do frigobar e levei até a mesa.

— Pensei que isso só fosse ser usado em comemoração a um grande trabalho. Ou uma grande mancada. — Disse Louis confuso. Ninguém deixava ele beber, logo o garoto tinha um verdadeiro fascínio por bebida. Não éramos puritanos nem nada assim, só que Louis conseguia ficar completamente embriagado com meio copo de qualquer coisa com alcool, e ele embriagado era um chute no meio das pernas.

Eu ri e fui distribuindo os copos entre eles.

Isso é uma grande comemoração. Thomas pode ser pai. E também uma grande mancada, Thomas pode ser pai.

Foi quando Thomas caiu na gargalhada. Pela primeira vez desde que o vira na escola naquela noite, ele estava rindo. E eu me senti aliviado por estar proporcionando isso a ele. Era meu trabalho... fazer aqueles caras felizes, mesmo que por um curto espaço de tempo.

— Então vamos cancelar hoje? — Leo perguntou com o olhar preocupado. Ele não gostava de ter que mudar os planos. — É um grande carregamento para perdermos assim.

— Eu posso ir. — Thomas olhou para mim. — Posso me concentrar, estou me sentindo melhor. Juro. Iríamos ajudar muita gente com essa mercadoria de hoje.

— Não, você não está bem. — Respondi enchendo um copo de vodka e entregando nas mãos trêmulas dele. — E não vamos conseguir ajudar ninguém se não conseguirmos ajudar a nós mesmos.

— Mas... — Leo voltou a falar e eu levantei uma sobrancelha para ele, o suficiente para calá-lo.

— Thomas precisa da gente bem aqui, e é onde ficaremos.

— Os vigias da noite já foram pagos. — Etienne falou pegando um copo cheio e bebendo tudo de uma única vez. — Poderíamos ao menos levá-lo para ver Donna.

— Não é uma ideia ruim. — Louis deu de ombros, pegando também um copo.

— Não vamos sair daqui hoje. Thomas não está em condições de enfrentar isso agora, e acho que Donna não precisa dele emocionalmente perturbado. Já tem coisa demais para pensar.

— Não pode dizer a ele o que fazer, Artie. — Leônidas olhou duro para mim, o que ignorei por completo. — Se quiser ir ver Donna, nós vamos ajudar.

— Ok. — Falei bebendo do meu próprio copo e fazendo uma careta quando o líquido desceu pela garganta. — Thomas, você quer ir ver Donna agora?

Eu nem havia acabado de perguntar e ele já estava negando, envergonhado por negar. Olhei para Leônidas e entortei a boca em um sorriso convencido que o fez revirar os olhos para mim.

— Estou aqui por algum motivo. — Falei entregando o copo de Leo. — Todos temos habilidades, e a minha não é só dirigir um carro, Leônidas. Sou bom em observar vocês e sou bom em lidar com essa merda que a gente faz. — Dei mais uma golada. — Se estou dizendo que hoje não é bom dia para sair, é porque não é um bom dia. Se estou dizendo que Thomas não está em condições de ver Donna, é por pensar sobretudo nela. Jamais diria a vocês o que fazer de suas vidas, mas ainda assim, por algum motivo ilógico, vocês as confiam a mim. Então confiem em mim. Nunca coloquei nenhum de vocês em problemas que não pudesse tirar, e jamais os joguei no cercado dos lobos.

Eles ficaram em silêncio, se olhando. Sabiam que eu nunca os colocaria em uma missão se um de nós não estivesse concentrado o suficiente, e Thomas não estava. Eles me colocaram no cargo de presidente desse clube porque eu era bom em premeditar problemáticas humanas e reagir a elas. Às vezes fazíamos birra, afinal éramos jovens rebeldes, mas no final das contas eles me ouviam. Sempre me ouviam e faziam o que eu dizia. Eu era a bússola desses caras, e achava isso de uma responsabilidade sem tamanho.

Etienne levantou, colocou mais vodka em seu copo e redistribuiu o restante entre os outros. Por fim ergueu sua bebida e lançou aquele sorriso sedutor que enlouquecia as garotas.

— Brindemos a isso, então. Ao que podemos mudar, e as coisas que não podemos e que nos embebedamos para esquecer.

— Saúde! — Nico sorriu e bateu seu copo com o dele, e todos imitamos em um brinde silencioso.

Não podíamos beber muito, afinal os monitores nos pegariam as três da manhã e estarmos caindo de bêbados e cheirando a vodka não seria agradável, mas nada que muita coca cola do frigobar, Doritos e balas de menta da estante não disfarçassem. Nos embriagaríamos disso, e de todo o cuidado que tínhamos um com o outro, independente do outro querer ou não ser cuidado. Isso era o que nos mantinha de pé.

Naquela noite, quando o céu abriu, tão limpo que parecia um espelho, usamos o telescópio e eu mostrei para eles onde ficava Orion. O guerreiro de espada e escudo empunhados que destronava reis no espaço. Era assim que nos sentíamos diariamente em nossas vidas... destronando pessoas para continuar inteiros em galáxias distantes. 

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