Seguiu o mapa que havia encontrado no livro antigo até a floresta, foram horas até finalmente entender o caminho correto, só a deusa sabia o que passou até conseguir chegar ali, esperava do fundo do coração que valesse a pena o que estava fazendo. Esperava finalmente conseguir, esperava finalmente que os benefícios suprissem os riscos imediatos.
Sabia que estava no meio da floresta justamente de madrugada e também sabia que ali poderia ter algum bandido ou sabe se lá o que, mas precisava confiar na sua intuição. Precisava confiar que quando o eclipse ocorresse, quando a fogueira acendesse e o ritual começasse, ele apareceria.
Finalmente, depois de se perder algumas vezes, quase quebrar a bússola e xingar seu celular e sua internet, encontrou a clareira que ficava no centro da floresta, ainda com tempo suficiente para que montasse uma fogueira decente.
Assim que a lua foi coberta iniciou os cânticos. Precisava tomar cuidado com as palavras, mas também seguir o ritmo ou o ritual não estaria terminado a tempo.
Concluiu. Estava feito. Não havia mais onde se esconder, se a promessa de poder fosse real, fosse como os livros e os sites confirmavam, ele sabia o que ela havia feito. Sabia o que ela pretendia conseguir com o ritual. Mas, nem por isso, se assustou menos quando um vulto vestido de branco apareceu na sua frente. A verdade é, teve de se controlar para não correr o caminho de volta para casa, tamanho o seu medo.
— Chamou? – Disse a figura, que agora conseguiu definir sendo uma mulher que trajava roupas que os livros de história afirmavam ser dos puritanos.
— Sempre achei que você fosse homem. – Afirma encarando-a, percebendo que algo na sua figura não demonstrava humanidade.
— Criança. – Diz suavemente, como se estivesse chamando a atenção para uma bronca. — Não há limitações de gênero ou raça que possa ser imposta a mim. Eu sou o que devo ser para quem me chama. Mas, diga-me: Você tem certeza que é isso o que quer?
— Tenho! Eu quero poder. Quero finalmente poder manipular a minha realidade.
— Saiba que concluído o que mandarei você fazer, não há volta. Não importa as consequências. Está tudo bem?
— Sim, diga-me o que devo fazer? – Pergunta animada.
Saí da floresta com pressa, quase não havia percebido que o dia já estava amanhecendo, precisava ainda ir para casa e pegar o seu material, não podia mais faltar aula, estava quase reprovando por faltas. Esperava, que isso fizesse parte da sua realidade que iria mudar.
Teve sorte. Conseguiu tomar o ônibus de sempre rumo a faculdade dentro do horário e aproveitou para pensar no que devia fazer. Precisava encontrar um virgem. Precisava do coração de um virgem para concluir o ritual, mas onde iria o encontrar?
Sentia como se fosse encontrar uma agulha em um palheiro. Seria estranho perguntar para alguém? Claro que seria, quando o cara aparecesse morto poderiam facilmente liga-la a morte, melhor tomar cuidado, quer ao menos aproveitar um pouco os poderes antes de ter de devolver o presente. As aulas passam sem que percebesse, sente a preocupação ainda dominá-la, mas agora vislumbra um jeito. Não sabe ainda contra quem será, mas sabe como não se incriminar.
Foi para o trabalho, talvez estar rodeada de livros e nerds lhe desse alguma chance, ou ao menos facilitasse o que teria de decidir. Olho para o rapaz no balcão, exemplo de nerd, começo da vida adulta, talvez ele venha a servir.
Encaro seus olhos verdes, sorrio de lado e me viro para minha cessão. Proponho-me a fazer isso algumas vezes até que ele se sinta na obrigação a vir falar comigo.
— Oi. – Ele diz se aproximando.
— Oi. – Responde o encarando e voltando a guardar seus livros.
— O que... bem... você sabe... – O homem começa a falar e trava, suor escorre por sua testa e a bruxa tem que se segurar para não sorrir.
— O que você acha de bebermos algo depois do trabalho? – Pergunta finalmente parando de mexer nos livros e sorrindo suavemente ao encará-lo.
— Eu adoraria. – Ele sorri suavemente, e a bruxa percebe que nem havia se dado o trabalho de perguntar o nome.
— Me espere na rua lateral assim que o expediente acabar. Qual o seu nome mesmo? Perdão, tenho uma memória terrível para nomes.
— Thiago.
— Nos vemos logo mais, Thiago. – Sorri novamente, pega livros da pilha que havia separado e ruma para os fundos.
O resto da tarde, seguida do início da noite passou lentamente, levadas de pilhas e pilhas de livros sendo procurados e devolvidos a suas prateleiras e seus respectivos lugares. Trabalho atento e cansativo, mas fazia parte da função. Quando deu o horário do fim do expediente já tinha tudo planejado, sabia exatamente o que fazer.
— Hei. – Thiago afirma vendo-a se aproximar. Tem longos segundos para admirar a figura pequena, delicada, toda de preto com exceção dos seus longos cabelos laranjas. Sempre a achara bonita, mas parece que dessa vez, ela havia se superado. Ainda não acreditava que teria um encontro com a garota.
— Hei, vamos. Conheço um pub aqui perto. – Afirma andando rapidamente a ponto de passar por seu acompanhante, então se lembra do que precisa e se vira sorrindo suavemente.
Agradeceu a deusa novamente, rindo internamente pela ideia de usar um canto da sereia sobre o rapaz. Era mais fácil atraí-lo assim.
A noite passou rápido, forçou-se a ser agradável mais do que conseguia se lembrar, precisava deixa-lo confortável e meio bêbado para o plano funcionar, além de obviamente limpar a sua barra para que nenhuma culpa caísse sobre si. Lembrou-se de sorrir suavemente quando disse a Thiago que tinha aula no outro dia, o rapaz pareceu entristecer, mas ela o deixou com a promessa que sairiam novamente no final de semana e que havia gostado muito do encontro.
Separaram-se na frente do ponto de ônibus. Thiago insistiu que devia esperar com ela, mas a bruxa não deixou, firmando que se demorasse muito chamaria um uber ou semelhante. O rapaz vai embora, mas pede que ela mande uma mensagem assim que chegasse em casa.
Assim que vê Thiago há três quadras de distância começa a segui-lo. Quando percebe que não há como perde-lo se enfia em uma viela escura, guarda sua bolsa e roupas atrás de uma lixeira e faz o feitiço de transformação, saindo de lá na forma de uma gata rajada. Corre até se aproximar, passando a segui-lo bem de perto.
Agradece a deusa quando ele entra em um pequeno quintal que abrigava um prédio antigo e gasto. Foi aproveitando da distração embriagada do rapaz que conseguiu entrar no apartamento sem problemas, ao mesmo tempo que o questionava por estar pedindo para que seu plano se concretizasse, afinal, qualquer outra pessoa teria visto uma gata a seguindo por aí.
Levou duas horas para ter certeza que ele estava dormindo. Sua respiração calma e ressoante, deixava isso claro. Transformou-se novamente em mulher e se arrependeu por ter abandonado a bolsa na viela, tinha deixado abandonado o instrumento perfeito que necessitava, ainda sustentando esse pensamento, colocou-se a procurar silenciosamente nas gavetas da cozinha do apartamento alguma faca que pudesse cumprir o serviço.
Respira fundo segurando a faca comas duas mãos, confere se está tudo feito, havia o amarrado a própria cama e amordaçado, o rapaz ainda estava dormindo e ela se encontrava nua em cima de seu peito aguardando.
Levaram longos minutos até o rapaz, ainda sonolento, perceber a situação em que se encontrava, tornando o que viria em seguida mais difícil.
— Thiago, eu preciso que você se acalme e me responda chacoalhando a cabeça, você entendeu? – Pergunta autoritária, colocando a faca sob a luz fraca que entrava pela janela para que ele entendesse que não estava participando de nenhuma brincadeira erótica ou algo do gênero.
Prontamente o rapaz acena afirmativamente com a cabeça e sua respiração pesada ecoa pelo quarto.
— Bom garoto. – Sorri para o rapaz, dessa vez não é um sorriso fingido ou algo assim, é um sorriso calmo e verdadeiro para tranquiliza-lo. — Agora vamos para a parte que faz isso valer ou não a pena. Thiago, você é virgem?
O rapaz prende a respiração e provavelmente grita, mas não há o que ser ouvido com o pano em sua boa, se mexe furiosamente para parar abruptamente. A bruxa apenas aguarda, sabia que teria de ter paciência, logo ele entenderia a posição em que estava.
— Então? – Pergunta o encarando com uma sobrancelha levantada.
Um suspiro audível é ouvido, seguido de um acenar positivo de sua cabeça. A bruxa quase explode de felicidade e não consegue segurar um sorriso.
— Obrigada, Thiago. – Declara ainda com o sorriso nos lábios, pegando a faca firmemente com as duas mãos e cravando com força no peito do rapaz.
Novamente um grito é abafado, mas dessa vez podia perceber a diferença que a dor significava. As pernas se debatiam na tentativa de se soltar. A cabeça não parava quieta. A bruxa teve de segurá-lo firmemente com as pernas para que pudesse outro golpe. E depois mais outro, outro e outro. Até que perdesse a conta e estivesse martelando com aquele grande cutelo um cadáver. Olhos aterrorizados e abertos a encaravam. Sangue respigado por todo o lugar. Os lençóis antes claros, agora estavam pintados de vermelho. O sangue fluía, viscoso, pingando no tapete.
Foi difícil abrir a caixa torácica, quando fez o plano não achou que seria tanto. Levou vários minutos até conseguir fazê-lo e pegar o coração. Por alguns segundos teve medo de tê-lo danificado com os golpes, mas à primeira vista estava tudo bem.
Limpou o suor de seu rosto sem perceber que o sujará de sangue, precisava pensar em como se livrar da arma do crime. Sabia que quando o corpo fosse encontrado sem o coração o desespero e o sensacionalismo tomariam conta do bairro e da cidade, precisava escondê-la em um lugar que acabaria com as evidências e ainda não deixaria suspeitas para si.
Vai até a cozinha lembrando-se de uma reportagem que lerá há pouco tempo sobre como limpar sangue de roupas, e torce para que o princípio funcione com objetos. Abre a torneira com o cotovelo e lava as mãos, coloca a faca em baixo da água e olha ao seu redor, procurando algo que pudesse auxiliar. Encontra uma garrafa de coca-cola e a pega com um pano de pia, abre-a e despeja parte do conteúdo sobre a faca, o resto coloca na geladeira. Fecha a torneira, seca a faca e a guarda onde pegou, ainda com o auxílio do pano, finaliza o dobrando e o deixando onde encontrou.
Novamente se transforma, mas dessa vez abocanha o coração e começa a correr para a viela onde havia deixado suas coisas, precisava finalizar o ritual ainda naquela noite, do contrário precisaria de um novo coração.
Não se lembra como chegou na floresta. Ainda estava transformada em gata e com o coração literalmente na boca. Se transformou em humana, não se preocupando com o sangue ainda grudado em sua pele ou em estar nua, tinha seu foco apenas na fogueira que tinha de construir.
Terminou a fogueira, mas não sabe como o fez. Era algo instintivo. Algo a dominava. Algo sussurrava em seu ouvido como deveria ser feito. Como tudo deveria ser organizado para a conclusão do ritual. Repetiu o feitiço três vezes, enquanto segurava o coração roubado perto do próprio, tentava respirar calmamente, mas a tensão era palpável e a fazia sugar o ar de forma irregular.
Quando a mulher negra com roupas de outra época surgiu como se as chamas viessem de si, era estranho, como a mulher podia fazer isso? Encarou-a por longos segundos até que percebeu que estava trancando a respiração.
— Você trouxe o coração? – A mulher perguntou, voltando seu olhar para as chamas.
— Depende, foi você com quem tratei da última vez? – Questiona incerta, não sabendo se confia naquele rosto desconhecido, apertando o coração mais perto de si.
— Ocasionalmente quando sou conjurada eu apareço com a forma de uma de minhas servas, é quase uma forma de homenagear o sacrifício que fizeram por mim, mostrando o quão grande e extenso é nosso laço a ponto de transcender o tempo, a vida e a morte. Mas, diga-me jovem bruxa, trouxe? – Novamente a mulher a encarava como se visse algo além, a voz calma e quase sussurrante, teve de controlar o arrepio.
— Está aqui. – Afirma estendo o coração na direção da mulher.
A mulher de semblante pensativo segura o coração o encarando, parece ver algo a mais ali, algo que transcendia a ideia de aquilo ser apenas o coração de um morto e que a outra mulher na sua frente estava repleta de sangue seco e nua.
— Você sabia que ele a amava?
— Isso faz alguma diferença? – Pergunta tentando ver o mesmo que a outra quando encarava o coração, mas só enxerga o mesmo órgão imóvel de antes.
— Depende de o quão interessada em poder você está, e quão preparada para as consequências pode ficar. Lembre-se de minhas palavras, jovem bruxa, tudo tem um preço, você está disposta a pagá-lo?
Sentiu sua respiração acelerar, filetes de suor escorrendo pelo seu rosto e corpo misturando-se ao sangue e terra que grudaram em seu corpo. Não havia sentido remorso quando matou Thiago. Havia o matado e esfaqueado a sangue frio, e não se sentiu arrependida em nenhum momento, os fins tinham justificado os meios para si.
Havia perdido a consciência enquanto vinha para a floresta, tinha noção disso, mas acreditava que era um apagão por sua mente estar cansada e ansiosa pelo que havia a seguir. Que se dane se ele a amava, se realmente foi amor, ela tirou o melhor proveito que pode do coração dele.
— Eu estou disposta. – Afirmou com a voz firme, encarando a outra mulher nos olhos.
Juntamente com a ligação dos olhares e a confirmação do contrato, pode sentir algo forte, algo vivo e volátil fluir por suas veias e, então soube. Havia finalmente conseguido o que sempre quis. Havia conseguido poder.
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Curtiram? Qualquer dúvida ou algo do tipo vocês podem deixar nos comentários. Se gostaram deem estrelinhas e panfletem por aí, eu agradeço. ^^
Se gostarem de bruxas, eu tenho outro conto chamado: Um Conto de Magia e Aço aqui no Wattpad com a temática.
É isso, galeres, valeu.