AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PE...

By wlangekeinde

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Em um país chamado Kailan, governado por uma ditadura militar, a jovem Kristina Lan Fer está mais preocupada... More

APRESENTAÇÃO
BOOK TRAILER
CAPÍTULO 1 - OS LAÇOS QUE PRENDEM A CORDA
CAPÍTULO 2 - AMIGO DE LONGA DATA
CAPÍTULO 3 - TRÊS MESES DEPOIS
CAPÍTULO 4 - BASTIDORES DA PÁTRIA
CAPÍTULO 5 - DISTÚRBIO
CAPÍTULO 6 - LONGE DEMAIS
CAPÍTULO 7 - OS INCONFORMADOS
CAPÍTULO 8 - O VISIONÁRIO DA COSTA BAIXA
CAPÍTULO 9 - NOSSO ABRAÇO DE AGULHAS
CAPÍTULO 10 - AS TRAMAS OCULTAS DA GUERRA CIVIL
CAPÍTULO 11 - ESBOÇO DE UM CRIME FEDERAL
CAPÍTULO 12 - MEIA DÚZIA DE PROMOTORES DO CAOS
CAPÍTULO 13 - PENSAMENTOS PROIBIDOS
CAPÍTULO 14 - O TERCEIRO-SARGENTO
CAPÍTULO 15 - NO ALBERGUE I
CAPÍTULO 16 - NO ALBERGUE II
CAPÍTULO 17 - PAZ? SOMENTE AOS SUBMISSOS
CAPÍTULO 18 - O PRIMO
CAPÍTULO 19 - RECOMPOR
CAPÍTULO 20 - O DIA DA DECISÃO
CAPÍTULO 21 - O HOMEM QUE USURPOU A NAÇÃO

CAPÍTULO 22 - PEDRAS NA POÇA DE ÁGUA (final)

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By wlangekeinde


Você não tem noção do que acabou de fazer...

Mas aquilo não tinha sido um Sinto informar que você acabou de me matar. Obviamente, no entendimento de Sarto, Kristina planejara aquilo. Afinal, como alguém podia esfaquear o presidente sem saber que a faca estava envenenada?

Depois da invasão, a parte do grupo que pegara a ambulância tinha voltado para a casa dos Lan Paker, satisfeitos após ouvirem no rádio que nosso grande herói, o destemido Marechal Sarto, após lutar bravamente contra os hediondos terroristas que invadiram o Palácio Presidencial, para a mágoa de Kailan recebeu um perverso tiro infeliz em seu majestoso coração, deixando seu áureo corpo de átomos e seguindo sublime em espírito rumo à magnífica eternidade dos Guerreiros.

Já amanhecia, àquela altura. Ao chegarem, priorizaram os socorros à Marko e Tone, que foram atendidos na casa mesmo, por médicos e enfermeiros discretos como deveriam ser. Ter os dois em um hospital com ferimentos de bala seria perigoso, ainda mais quando noventa por cento das pessoas baleadas que estavam chegando aos hospitais naquela área tinha acabado de sair do Palácio Presidencial.

Depois de resolvida a emergência, foi possível, pelo menos, respirar. Eles se reuniram no quarto onde Marko e Tone repousavam. Briel e Esteban ainda não tinham chegado. Kristina, Adriana e Franke, que ainda estavam sujos e criminosos, sentaram-se no chão como se dissessem em silêncio: agora acabou. Quando Adriana foi pegar uma garrafa de água e copos na cozinha, Kristina se ofereceu para ajudá-la. Foi quando finalmente confirmou aquilo que tanto a intrigava:

— A faca... Ela tava envenenada? — Era a única explicação plausível.

— Todas estavam — disse Adriana, a princípio fazendo careta à pergunta. Só depois entendeu. — Você não atirou?

— Não.

— E aí você achou que não tinha conseguido matar?

Eu não queria matar ninguém! berrou ela por dentro. Ou será que queria, mas tinha falhado? Nem mesmo ela sabia. Porém, querendo ou não, agora era a agente direta do maior ato revolucionário na história recente de Kailan e consequentemente uma assassina.

— É — respondeu ela, olhando para baixo.

— Então eles mentiram no rádio. Típico. Uma morte por veneno não seria heroica o bastante.

— Vocês podiam ter me contado do veneno.

— Na correria a gente acabou não falando, já que você ainda tava desmaiada quando a gente começou a arrumar as armas.

Na sala, todos conversaram sobre o que tinham acabado de fazer. Cada um narrou, a partir de seu ponto de vista, os acontecimentos quando estavam separados. Kristina teve que inventar a história de como intencionalmente matara Sarto.

Você não tem noção do que acabou de fazer...

As palavras do Marechal tinham sido uma declaração de perigo. Você não tem noção do que acabou de causar, com a minha morte. De fato, ela não tinha total noção. Não tinha controle do que poderia acontecer. Ninguém tinha. Este era um dos motivos pelos quais Kristina hesitara em matar: por medo das consequências.

Marko, meio grogue de anestésicos, narrava sua noite de homicídios quando Briel e Esteban finalmente entraram apressados pela porta. Já eram seis e pouca da manhã. A primeira coisa que Briel fez foi abraçar Kristina, gesto que se estendeu por um longo tempo sem que nenhum dos dois emitisse uma palavra. Bastava sentir o aperto, as respirações que logo se puseram no mesmo ritmo, o conforto de se terem novamente depois de tudo.

As homenagens acontecem desde as seis horas da manhã, anunciou, na televisão, uma repórter que cobria a cerimônia de despedida de Sarto. O dia inteiro fora reservado para a veneração pública do corpo do Marechal, cinzento em seu traje de passeio. Descansava sobre um altar no jardim do Palácio Presidencial, acompanhado por uma espada e um escudo. Homem e armas iriam para o crematório na manhã seguinte. Sarto, ou melhor, Sama, enfrentaria com a espada os inimigos e defenderia com o escudo os inocentes na próxima encarnação. Era assim que os samistas faziam com seus falecidos Guerreiros e, no caso apenas da cremação, com todos os mortos. Segundo eles, a cremação era o veículo mais rápido para se desfazer de um corpo e, desse modo, libertar o espírito.

O homem que acabara com a liberdade em Kailan agora seria liberto.

Ao fim da tarde, todos na casa já tinham tomado banho e se alimentado, e estavam na sala, semi-desmaiados de cansaço e reflexivos. Até que Adriana disse a Kristina e Briel:

— Acho que é hora de vocês irem pra casa.

E aquelas palavras tornaram nítido que o plano deles era nunca voltarem a se ver.

Fácil. Afinal, Kristina nunca quisera se envolver com nenhum daqueles rebeldes. Mesmo se quisesse, tinha passado apenas cinco dias ao lado deles. Nunca, nesse período, alguém poderia criar algum tipo de vínculo com outra pessoa. Não era como o caso de Briel, que se juntara a eles havia mais de um ano. Para ele, era razoável que a despedida fosse complicada. Já para Kristina, qual era a importância daquela garota de braço tatuado e de seu avô de rosto grave, daquele homem de cabelos sobre a testa e barba malfeita, do musculoso mal-encarado, do cabeludo de covinhas? Qual era o significado daqueles indivíduos, ou daquela que Kristina testemunhara partir no quarto escuro de um albergue? Em pouco tempo, esqueceria todos. Teria sua mãe e Eiden, Tiara e a faculdade, sua vida outra vez, e a memória daqueles dias se limitaria aos fatos vivenciados, dos quais os integrantes do grupo não passariam de pano de fundo. Com os anos, o próprio pano de fundo das memórias se desvaneceria, seguindo a lei natural das coisas conscientes, e eles finalmente se reduziriam a nada. Era fácil se despedir de futuros nada.

Briel o fez primeiro, depois se dirigiu à garagem para pegar a moto de Kristina, que acoplaria ao seu carro para transportar. Em seguida, foi Kristina que se viu frente àquelas pessoas exaustas. Tone e Marko estavam inconscientes no quarto, já com os ferimentos costurados.

— Foi... — disse ela. — Foi... — Foi o quê? O que tinha sido? Bom? Ruim? Uma honra, como falavam os militares? — Foi isso — completou.

— Foi isso — concordou Adriana.

Franke fez um aceno de cabeça. Esteban apertou a mão dela.

Então, Adriana a abraçou.

— Obrigada por ter ajudado a gente, flor. Vamos sentir sua falta.

Kristina retribuiu o aperto com mais vigor do que tinha planejado. Em seguida, foi até o quarto onde os recém operados dormiam. Tocou de leve o rosto de Tone, em uma cama, e o de Marko, na outra. Se ela tivesse previsto que sua inação perante àquele soldado no Palácio Presidencial resultaria naquilo, teria apertado o gatilho?

Não. Continuaria sem apertar.

— Se cuida — disse Kristina.

Ela e Briel só chegaram às suas casas à noite. Aquela rua já era quase uma estranha. A casa de Kristina... Ela não atravessava aquele portão havia séculos, e o sentimento pareceu uma vertigem.

Entrou pela garagem. O som da televisão chegava até ali, acompanhado por uma voz inconfundível: sua mãe. Kristina passou pela porta que dava para a sala de estar. Lá estavam Laisa e Eiden, enrolados no mesmo cobertor, assistindo ao Jornal de Kailan. Os dois se viraram para ela.

O abalo entorpeceu Kristina, e pelo visto o irmão e a mãe sofreram o mesmo efeito. Os dois estavam boquiabertos. Então Eiden começou a chorar, tapando a boca escancarada com as mãos, se livrando do cobertor e correndo ao encontro da garota para abraçá-la. Ela se ajoelhou à altura dele e fechou os olhos para absorver melhor o toque, o calor, os braços curtos em volta de seu corpo e o corpo pequeno dentro de seus braços, os dois corações palpitando com a mesma ferocidade, um quase colado no outro de tanto que os irmãos se apertavam.

— Eu achei que você nunca ia voltar — soluçou Eiden quando eles se afastaram.

— Eu nunca ia te deixar — disse ela. Em seguida, voltou-se para a mãe, que, para sua surpresa, também tinha o rosto coberto de lágrimas. A única vez que Kristina testemunhara aquele fenômeno fora quatro anos atrás, durante a briga das duas. Agora, a garota continuava sendo o motivo do choro, mas dessa vez isso era algo bom. — Eu nunca ia deixar vocês.

Laisa se levantou e as duas se aninharam em um abraço que guarneceu Kristina de uma serenidade indescritível. Ela aderiu ao choro, acalentada por uma mão em sua cabeça enquanto descansava o rosto no ombro da mãe.

— Desculpa — disse Kristina. — Eu sei que você tem um monte de perguntas. — Era a primeira vez que falava com a mãe sem se sentir na defensiva.

— Tenho — disse Laisa. — Ah, filha, seu rosto! Eu sabia que você ia se machucar. Kristina, eu fiquei com muito medo. Nunca mais faz isso! Não quero que você nunca mais pense em sumir assim. Eu te amo, minha filha.

— Eu sei, mãe. Eu sei. Eu também te amo.

Eiden se juntou ao abraço, e Kristina não saberia dizer por quanto tempo os três ficaram daquele jeito.

— Desculpa, Kristina — murmurou Laisa, quando eles se afastaram. — Por não saber conversar contigo.

— Eu posso te ensinar — disse ela. — E você me ensina a conversar com você.

Laisa abriu um sorriso tímido e Kristina soube que nenhuma delas jamais seria perfeita, mas que era possível se aprimorarem, juntas.

Fragmentos de claridade atravessaram sua pálpebra fechada. Ela acordou com o sol invadindo o quarto como fazia toda tarde. O corpo doía por inteiro, dos arranhões aos hematomas aos músculos e ossos. A mãe dormia toda torta na escrivaninha, a cabeça entre os braços dobrados sobre a mesa. Devia ter passado a noite lá, de vigília.

Kristina contara à mãe todo o necessário: que se envolvera com um grupo militante, que não falaria muito para não expor ninguém, a não ser Briel, que sim, estivera com ela, mas não, não a havia induzido. E que sim, eles tiveram relação com a morte de Sarto. Não importava como, só importava que ela tivera mesmo a ver com aquilo. Laisa teria que entender que as outras pessoas envolvidas confiavam em Kristina para manter o segredo do qual a segurança de todos eles dependia. Por fim, ninguém obrigara ela a nada, e ela sabia que fora extremamente perigoso, e prometia nunca fazer de novo.

— E o Keiton? — Laisa tinha perguntado. — Ele não fez mais contato desde quando eu mandei ele te buscar.

— O Keiton tava com outros soldados, que obrigaram ele a me levar pra uma câmara de tortura. Por isso é que eu tô machucada. — Será que era completamente mentira? Se os colegas de Keiton não o tivessem mandado recuar, se tivessem sobrevivido e matado os rebeldes, o primo de Kristina teria a levado para a câmara de tortura? — Mas depois ele me ajudou a fugir de lá.

Os olhos e a boca de Laisa se escancararam.

— É, mãe, a gente vive em uma ditadura. Eles oprimem o povo, mentem e, sim, torturam e matam pessoas, sem nem terem provas de que elas fizeram coisas ilegais.

Isso deve ampliar seus horizontes, pensou Kristina, deitada na cama, olhando para a mãe. É o que eu mais quero. E, para isso, Laisa não precisava receber toda a verdade sobre o envolvimento de Keiton, nem saber o motivo pelo qual ele se afastara cinco anos atrás. Por que Kristina infligiria mais dor à mãe quando tinha a oportunidade de poupá-la? Sobre Ronan, buscaria confirmações com Tiara.

Rolou na cama, ainda embaraçada ao cansaço. A impressão era de que, no momento, podia fazer qualquer coisa e a melhor opção era não fazer nada. Porque ela não precisava fazer mais nada: estava de volta ao lar. Assim, manteve-se deitada, de olhos abertos, até sua mãe despertar.

— Que horas são? — perguntou a mulher. — Você acordou agora? Já devem ter cremado o Marechal.

Já o tinham feito. Kristina, Laisa e Eiden assistiram pela televisão aos acontecimentos posteriores: os discursos emocionados de todo o país e a incerteza geral. Quem assumiu a presidência foi o vice de Sarto, o General Artur Gaisel.

Pouco mais tarde, Briel e os pais apareceram a fim de que todos juntos discutissem uma justificativa para dar a quem perguntasse sobre o sumiço de Briel e Kristina. A história ficou sendo: Briel fugiu de casa porque brigou com os pais e decidiu que precisava tirar folga deles. Kristina foi atrás porque eles estavam apaixonados. Depois, com a confusão da morte do Marechal Sarto, os dois acharam melhor retornar a suas famílias. Kristina só precisava esconder os machucados e ninguém a perturbaria. Maquiagem daria conta de seu rosto. A queimadura na bochecha poderia ter sido qualquer coisa.

Decidido.

Foi essa história que Kristina contou a Tiara por telefone. Alguns minutos depois, a amiga foi lá para que elas conversassem pessoalmente. Disse que pediria a seu pai para conseguir informações a respeito de Ronan, e foi embora à tarde. Kristina passou o resto do dia com Briel.

À noite, Tiara ligou, confirmando a morte de Ronan. Executado três dias depois da prisão. Kristina já estava preparada para aquilo, e pelo visto Laisa também. Até mesmo Eiden já parecia conformado. Mas nenhum conhecimento prévio jamais tornaria aquele tiro menos doloroso, e lágrimas caíram em peso no velório familiar em tributo ao marido, pai e professor.

No dia seguinte, uma segunda-feira, Kristina e Briel voltaram a estudar. Voltar a ter coisas com as quais se ocupar fazia tudo parecer normal de vez em quando. O semestre letivo já estava no fim e as provas perdidas na semana anterior eram passíveis de serem recuperadas.

Em casa, Laisa tinha uma notícia. De manhã, Gregor, o tio de Kristina, pai de Keiton, tinha ido até lá comunicar que o filho fora dado como desaparecido. Um militar tinha lhe entregado a única coisa que Keiton deixara: uma mensagem em um gravador, endereçada ao pai, à tia Laisa e a Kristina. Gregor fizera uma cópia para as duas.

— Acharam o carro dele na entrada duma trilha pra cachoeira, aqui em Almar — disse Laisa. — A mesma pra onde tua tia Teresa levava ele quando ele era criancinha. Os documentos todos tavam no carro. O gravador também tava, e a camisa do uniforme dele, o fuzil e o coldre da pistola. Mas a pistola não tava lá. Os soldados suspeitam de suicídio, mas não tem corpo nem vestígio de morte. Teu tio acha que ele fugiu... Eu também acho. Deserção. A mensagem não deixa claro, mas pra mim é isso. Falta você ouvir a mensagem.

Entregou um pen-drive a Kristina. Ela foi até seu quarto e ligou o computador, sem saber o que pensar por enquanto. Abriu o arquivo de áudio:

Acho que a primeira coisa que eu preciso fazer é me desculpar. Quando eu percebi isso, pensei que fosse me desculpar por ter deixado de ser eu mesmo e por ter feito coisas que eu nunca pensei que faria. Afinal, muita coisa mudou. Mas é fácil dizer que não era eu. Fácil dizer que quem fez as coisas terríveis não era o mesmo Keiton que eu sempre fui. Tudo isso é muito fácil, e por ser tão fácil eu descobri que é tudo mentira.

As coisas mudam, as pessoas não. Eu ainda sou ingênuo, ainda sou confuso. Mas as pessoas se descobrem, e eu descobri que posso ser muito egoísta. Descobri... Eu não sabia disso antes. Eu achava que tudo que eu fazia era justificável. Na verdade, sempre menti pra mim mesmo. No fundo eu sempre pensei em mim antes de pensar nos outros, até mesmo em quem me ama, pessoas com quem eu tenho laços.

Eu não gosto desse Keiton. Eu não confio em mim, e ninguém deveria confiar. Eu não quero mais ser assim. Não posso, nem tenho mais condições de ser. Então, eu decidi não ser mais. E uma das coisas pelas quais eu preciso me desculpar é por ter decidido isso sozinho. A outra coisa é por ter causado dor a vocês.

Pai, tia Laisa, Kristina: fazer vocês sofrerem nunca foi minha vontade. Mas eu sei que foi minha culpa, e não tem como apagar esse fato. Eu queria que vocês soubessem disso. Entre todas as coisas na minha cabeça agora, essa é a mais importante. O resto é só um aglomerado de infinitos inúteis.

Depois, alguns segundos de silêncio e fim da gravação. Fim de Keiton. Kristina ouviu de novo. Era isso, só isso.

Era bem a cara dele morrer assim, com tanto mistério e tanta arte. Para Kristina, pelo menos, ele tinha se matado. Não com aquele ato: aquilo era apenas o final de um processo de perdê-lo. O processo não tinha se iniciado no albergue, nem no longínquo fevereiro do ETeCK, mas quando ela tinha treze anos e ele dissera tchau antes de ir ao quartel pela primeira vez.

Ela ficou um tempo no quarto, parada no mesmo lugar, com o computador aberto à sua frente, repetindo a gravação.

No dia seguinte, na faculdade, Tiara passou o dia ao seu lado. Embora não soubesse da verdade, devia estar preocupada com Kristina, ou talvez fosse só saudade. De qualquer modo, sua companhia constante foi tranquilizadora. À noite, Kristina se dividiu entre estudar para a prova de Estatística e jogar videogame com Eiden. O garoto também não tinha conhecimento dos fatos. Laisa e Kristina lhe contaram uma versão alternativa, mais amena. Ele era novo demais para incorporar o mundo da violência e da política, e elas não queriam o confundir.

Os irmãos se entretinham em um jogo de naves espaciais quando o interfone tocou. Kristina atendeu:

— Oi?

— Oi. Sou eu, Marko.

Aquilo não fazia parte do plano.

— Já volto — disse ela a Eiden.

O céu estava limpo, farto de estrelas, e a lua era um crescente fino. Ventava. O coral da noite fazia seu barulho, com grilos, sapos, cães e, no fundo, as vozes das TVs da vizinhança. Quando Kristina abriu o portão, foi saudada por um dos rostos que ela imaginava terem sumido para sempre.

— Oi — disse ele. Um gorro cobria seus cabelos, não havia nenhuma luva e ele se apoiava em um par de muletas. — Eu vim pela última vez.

— Por quê? Aconteceu alguma coisa?

— Não, não. Primeiro eu queria dizer que eu e o Tone vamos ficar bons... O dele foi mais grave, mas ele vai ficar bom... E eu queria me despedir de você, já que não deu na hora. E me desculpar. Eu não consigo ficar tranquilo se eu tiver algum rancor, e eu tô ligado que ficou um rancor entre a gente. Olha, não tem como eu me desculpar pelo seu pai, tem? O que eu fiz foi horrível, você não precisa me perdoar. Eu só queria que você soubesse que eu me sinto mal, que se eu te conhecesse antes de tomar qualquer decisão que te afetava, eu nunca tinha feito isso, e que eu quero demais que fique tudo bem com você.

Ela o olhou nos olhos, dura.

— Marko. O que é que te incomoda de verdade nisso tudo? Ser responsável pela morte do meu pai ou ter me magoado por causa disso?

Ele franziu o cenho.

— Onde você quer chegar?

— A morte te perturba? Quer dizer, a da Elinor é claro que sim. A da sua mãe também. Mas e quando é com alguém de fora dos seus laços?

— Quando é assim, você se perturba? — disse ele, carrancudo. — Eu não gosto da morte, ninguém gosta. Mas na minha vida toda eu sempre fiz o que eu precisava.

— Não fez não. Você fez muita coisa desnecessária. Já que você tá aqui, falando tudo isso, eu também não vou ficar com remorso nem me arrepender de não ter dito a verdade. — E, diminuindo a voz a um sussurro: — Eu não ia matar o Sarto. Se você tivesse entrado naquele quarto, eu não ia te impedir nem ia querer que você fizesse alguma coisa diferente do planejado, mas quando eu tive que entrar... Tudo começou a borrar na minha mente. O que era certo, o quer era errado, o que era melhor ou pior pro país e pra mim e pra vocês e pra todo mundo que eu conheço... Eu já não sabia de mais nada. Tudo tinha borrado. Mas na hora que eu e ele ficamos frente a frente, eu senti que tinha descoberto o que eu devia fazer. E eu fiz. Eu falei com ele e tentei convencer ele a renunciar. — Ela mordeu o lábio de baixo antes de contar o desfecho. — Não deu certo. Ele ia me matar e eu esfaqueei ele, mas não sabia do veneno.

Marko ficou dois segundos com a boca aberta antes de reagir:

— Quê?!

Kristina deu um tempo para ele compreender que aquilo era sério.

— Eu passei por coisa suficiente em uma semana — disse ela — pra ter noção da minha escolha e pra achar, agora, que seria a coisa certa. A renúncia seria um caminho pro fim da ditadura. A morte dele é um caminho pra mais guerra. Você pode gostar de guerra, mas eu não.

O peixeiro ainda estava boquiaberto. Quando enfim se refez, disse:

— Eu não gosto de guerra.

— Você matou todo mundo. Você atirou em um monte de gente caída, imobilizada.

— E eles não fazem a mesma coisa, Kristina? Ou a Elinor teve chance de se defender antes do seu primo atirar nela? Ou você teve chance de se defender na câmara de tortura? Se eu atirei, quem você acha que me ensinou a ser assim? Eu sou filho dessa indecência, não é assim que eles queriam? A Elinor não foi cobaia disso pelas minhas próprias mãos, no passado? E foi só a minha primeira.

— E quantas outras você quer que existam? A Elinor, eu, meu pai, quem mais você quer que seja vítima? A violência estraga as pessoas, e isso só tende a aumentar. Eu não quero isso. É por isso que eu queria uma renúncia, e não um assassinato.

— Como se ele fosse te obedecer. Ia ser muito foda se a vida se resolvesse com um "por favor", mas não é assim. Não é com "por favor" que se faz uma revolução. Revolução é luta, e é claro que toda luta tem um preço, mas pelo menos eu tô disposto a pagar. Se você não tá, sai de cena!

Foi vez de Kristina fazer uma careta estupefata.

— Esse preço tem que ser violento?

— Precisa ser.

— Então não existe revolução sem guerra?!

— Não.

— Ah! Ótimo! — disse ela, sem conseguir se manter presa ao murmúrio. Deu um empurrão em Marko que quase o derrubou das muletas. — Ótimo! Sabe quem mais me disse isso? Adivinha! Adivinha, Marko, quem é que me disse isso! — Ele estava assustado. — Vocês são iguais! Você realmente aprendeu direitinho!

— Para com esse escândalo — disse ele em voz baixa. Mas pelo visto ainda não entendera o que ela queria dizer. Kristina apenas encarou o idiota até ele se tocar.

Marko respirou fundo e olhou para os lados. Não parecia haver nenhum terceiro prestando atenção neles.

— Olha — disse ele —, é isso, tá? Seu jeito de ver as coisas é bonitinho, mas a verdade é outra. Tem gente se preparando pra fazer manifestações. É o que você já ouviu: não tem mais ninguém pra manter a ordem nesse país agora. Não vai ser tipo pedra na poça de água, que faz as ondas mas depois a água volta a ficar parada. Essa onda não vai acabar. A ditadura é que vai, logo mais. Eu vou sempre continuar lutando pra isso, e você, se não acredita na revolução, não luta. Que seja. Fica em casa fazendo de conta que você não passou pelo que passou.

— É justamente por ter passado por isso que eu prefiro ficar em casa do que voltar a lutar do seu lado. Talvez você esteja certo: talvez eu não acredite na sua revolução.

— Então a gente não tem mais nada pra conversar.

Os dois ainda se encararam por alguns segundos, seus olhos trocando tiros calados, antes de Marko lhe dar as costas. Dessa vez Kristina o deixou partir, esperando não ver dele mais nenhum vestígio.

Mesmo tendo discordado do peixeiro na hora, a conversa ricocheteou na cabeça de Kristina por um tempo. Eles agora concordavam que lutar por direitos era o único jeito de obtê-los quando um governo impositivo os esmagava e que o poder de mudar existia e residia no povo, que precisava agir e realizar, de fato, a mudança. Mas a luta deveria ser violenta, como Marko defendia? A possibilidade de uma luta pacífica era autêntica ou ilusória? Kristina não sabia. Talvez nunca soubesse.

E qual seria, afinal, o futuro de Kailan? De fato, os acontecimentos eram lentos. O General Artur Gaisel não era Sarto, não era um Guerreiro nem um símbolo tão forte, e isso gerava certo estranhamento por parte da população. Mas era um militar e um ditador, e por hora parecia dar conta do governo.

Quanto a Kristina, dava conta como podia de seus assuntos. Às vezes, sobretudo quando estava sozinha, suas piores lembranças a assaltavam. No entanto, ela aprendeu que podia recorrer às pessoas que amava e que a amavam, pessoas com quem mutuava um pertencimento. Não era como se dependesse deles, mas sabia que, se algum dia passasse a depender, sua sobrevivência estaria garantida. Ou, mais do que isso, sua vida, pois quando estava com eles e quando pensava neles, conseguia sorrir, longe da solidão, da angústia e de todas as sombras. Afinal, em paz.




Obrigada por ler até o fim! Espero que tenha gostado :)

Até a próxima!

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