AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PE...

By wlangekeinde

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Em um país chamado Kailan, governado por uma ditadura militar, a jovem Kristina Lan Fer está mais preocupada... More

APRESENTAÇÃO
BOOK TRAILER
CAPÍTULO 1 - OS LAÇOS QUE PRENDEM A CORDA
CAPÍTULO 2 - AMIGO DE LONGA DATA
CAPÍTULO 3 - TRÊS MESES DEPOIS
CAPÍTULO 4 - BASTIDORES DA PÁTRIA
CAPÍTULO 5 - DISTÚRBIO
CAPÍTULO 6 - LONGE DEMAIS
CAPÍTULO 7 - OS INCONFORMADOS
CAPÍTULO 8 - O VISIONÁRIO DA COSTA BAIXA
CAPÍTULO 9 - NOSSO ABRAÇO DE AGULHAS
CAPÍTULO 10 - AS TRAMAS OCULTAS DA GUERRA CIVIL
CAPÍTULO 11 - ESBOÇO DE UM CRIME FEDERAL
CAPÍTULO 12 - MEIA DÚZIA DE PROMOTORES DO CAOS
CAPÍTULO 13 - PENSAMENTOS PROIBIDOS
CAPÍTULO 14 - O TERCEIRO-SARGENTO
CAPÍTULO 16 - NO ALBERGUE II
CAPÍTULO 17 - PAZ? SOMENTE AOS SUBMISSOS
CAPÍTULO 18 - O PRIMO
CAPÍTULO 19 - RECOMPOR
CAPÍTULO 20 - O DIA DA DECISÃO
CAPÍTULO 21 - O HOMEM QUE USURPOU A NAÇÃO
CAPÍTULO 22 - PEDRAS NA POÇA DE ÁGUA (final)

CAPÍTULO 15 - NO ALBERGUE I

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By wlangekeinde


Kristina quase não foi capaz de acordar, tamanho seu sono. Dormira por menos de três horas. O céu ainda estava escuro quando Elinor foi ao quarto de Adriana acordar as garotas.

— Comam alguma coisa e arrumem o que tiver pra arrumar — disse. — A gente vai às seis e meia.

A bagagem não foi muita. Cada um levava mochilas com o mínimo de coisas possível, as armas escondidas entre as roupas. Também havia sanduíches, biscoitos, sucos e água para provê-los durante o dia. Às seis, já estava tudo pronto. Adriana foi buscar a van da LanPaker que seu avô concedera a fim de camuflar a viagem. Esteban não iria. Os que iriam combinaram de se revezarem no volante ao longo do caminho. O tempo estimado até Briel era de dezessete horas, incluindo as paradas para abastecer.

Na faixa das duas da tarde, estavam na metade do caminho. Marko dirigia.

— A gente vai cruzar a fronteira — disse ele.

Alguns metros à frente havia um pedágio com uma faixada grande em que se lia FÍGADO – KAILAN, e uma bandeira do país ao lado das palavras.

— Olha aí a integridade nacional que o querido presidente tanto fala — disse Tone. — Um pedágio todo protegido separando os estados.

— Faz parte da nossa "República Federativa" — disse Adriana, fazendo sinal de aspas com os dedos.

Franke tirou de uma das mochilas uma camisa de botão, usada pelos motoristas da LanPaker. Entregou-a a Marko, que a vestiu.

Perto da cabine do pedágio havia dois soldados, um de cada lado da fileira de veículos. Usavam os capacetes e tinham fuzis à mão. Quando chegou a vez do grupo de passar, Marko baixou o vidro escuro e entregou o dinheiro ao homem da cabine. O homem colocou o dinheiro no caixa, olhou para a van de novo, verificou a tela de seu computador. Botou a cabeça para fora da cabine e chamou a soldada que estava daquele lado. Cochichou algo para ela. Ela cochichou algo de volta. Kristina nunca ficara em um pedágio por tantos segundos antes de a cancela se levantar. Viajar de carro para outro estado era sempre assim? Seu coração batia veloz.

A soldada foi até Marko, que a cumprimentou com uma continência. Elinor, no banco da frente, seguiu o cumprimento, mas logo prendeu o olhar na janela ao seu lado. A soldada levantou a viseira do capacete e perguntou:

— São quantas pessoas no veículo?

— Seis — respondeu Marko.

— Alguma carga?

— Não. Só umas bolsas de viagem.

— Posso pedir pra baixarem todos os vidros?

Marko virou para trás, buscando com certa agonia o olhar de Adriana.

— Abre aí, flor — pediu ela a Kristina, que ocupava o banco da janela ao seu lado. Tone, na fileira de bancos atrás, também baixou seu vidro, e Franke foi até a última fileira para fazer o mesmo.

Quando a soldada foi examinar a primeira fileira, Adriana chamou:

— Com licença. — E a saudou com uma continência. Kristina imitou o gesto, depois baixou a cabeça, sentindo o peso de estar literalmente no meio daquele diálogo. — Boa tarde, eu me chamo Adriana Lan Paker. Tem algum problema aqui?

A mulher fardada arregalou os olhos ao ouvir aquele nome.

— Senhorita. De maneira alguma. Eu só tava checando o veículo.

— E precisa dessa checagem toda pra um veículo com o logo da LanPaker?

— Bem... — Ela olhou de relance para o homem da cabine, que parecia receoso. — Eu sei, mas são as regras.

— Sim, entendo. As regras. Então, eu e alguns funcionários estamos em uma viagem de negócios, carregando só a bagagem pessoal e o equipamento necessário. Apesar das regras, eu não acho que isso seja uma situação pra se preocupar. Mas é claro, soldada, que se a senhora quiser revistar meu carro, meus funcionários e até mesmo eu, a senhora tem toda a liberdade. Só que aí eu teria que ligar pro meu avô e dizer que vou me atrasar pro meu compromisso porque fiquei muito tempo no pedágio da fronteira pra uma checagem de veículo.

— Não precisa de nada disso, senhorita. Perdão por tomar seu tempo. Que o espírito do Guerreiro te acompanhe na viagem. — Ela fez um sinal para o homem da cabine. A cancela se levantou.

— Obrigada — disse Adriana, sorrindo, e eles seguiram, e Kristina voltou a respirar.

Faltando pouco mais de uma hora de viagem, pararam em um albergue, pois já era quase meia-noite. Nem mesmo os carros de empresas aliadas ao governo podiam burlar o toque de recolher se não tivessem permissão formal, que seria difícil conseguir sem enfrentar riscos extras.

Pegaram dois quartos: um para as meninas e outro para os meninos.

O quarto tinha três camas, lado a lado, com os espaldares encostados em uma das paredes. Na parede oposta havia dois pufes pequenos, um tapete e a porta para o banheiro; na parede de frente para quem entrava, uma janela com cortinas grossas e uma mesa logo abaixo, com um computador. Ao lado do computador descansava um porta-retratos com uma foto do Marechal Sarto em seu uniforme de passeio, com infinitas medalhas no peito, o quepe artisticamente desalinhado sobre a cabeça calva, uma expressão séria. Apesar de seus sessenta e seis anos, o homem quase não tinha rugas em sua pele escura.

Adriana foi a primeira a tomar banho, depois Elinor e finalmente Kristina.

A água morna passeava por seu corpo de um jeito quase terapêutico e o vapor se amontoava nas paredes de azulejo para escorrer em seguida. Pela primeira vez desde a despedida de Briel, a garota tinha um momento para pensar, para mastigar os acontecimentos, para confirmar que tudo era real. Ela estava no meio de uma viagem com mais cinco pessoas para buscar Briel de sua deserção, quando ele lhe dissera que apenas ela poderia ir atrás dele. Ela brigara com sua mãe logo depois do pai ser trancafiado em uma cela por culpa das mesmas pessoas. Pessoas às quais, entretanto, ela se unira. Todos em quem Kristina confiava jaziam perdidos e aqueles em quem ela não confiava eram seus aliados. Na prática, ainda era uma menina solitária, obediente e sem controle da própria vida. Talvez este fosse um fardo eterno: ser exatamente a mesma pessoa que sempre havia sido.

Se ao menos fosse boa em pensar por si mesma e tomar decisões. Se ao menos pudesse ter as pessoas ao invés de sempre pertencer a elas.

Saiu do banheiro, vestiu-se, deitou-se de lado na cama. As outras mulheres tinham saído. Só quem continuou lá foi a foto de Sarto, que a observava. Seu olhar a condenava. Assassina, ele dizia. De mim, de você, de tudo que você tinha. Ela foi ao computador e pesquisou em vídeos: Marechal Sarto. O primeiro resultado era o discurso do presidente no 19º Dia da Decisão.

Como em todos os seus discursos no Palácio Presidencial, Sarto aparecia na varanda que dava para o pátio lotado de pessoas. Todos aplaudiam e faziam festa. Depois de um tempo, o presidente fazia uma continência e todos se silenciavam instantaneamente, respondendo ao cumprimento. Sarto dava o sinal para descansar e o hino nacional começava. Todos cantavam alto, incluindo o presidente. O hino acabava, todos aplaudiam de novo e Sarto se aproximava dos microfones, provocando silêncio na plateia outra vez.

— Houve uma época em que o povo de Kailan vivia apreensivo, sempre correndo riscos contra a sua vontade. A corrupção do governo era tremenda e os ataques de terroristas eram constantes e matavam inocentes sem misericórdia. Eles causaram a ira da polícia, até que a própria polícia também se tornou terrorista. A violência assombrava Kailan. Foi uma época perigosa e injusta, e o povo de bem ansiava por um herói que os defendesse. Seus pais, ou vocês, imploravam e rezavam por um Guerreiro que pudesse salvá-los daquela situação.

"Então, vinte e cinco anos atrás, eu atendi ao chamado do povo, tomando para mim uma difícil responsabilidade. — Aplausos. — Eu atendi ao chamado de Kailan. Eu atendi ao seu chamado. Eu escolhi carregar esse fardo porque era necessário carregá-lo para que nós pudéssemos viver uma vida digna e alcançar o progresso. Em cinco anos, do estado de ruínas em que nosso país se encontrava, eu lutei para nos reerguer, mas não como o antigo Kailan. Nos reerguemos como um Kailan que prometia ser mais seguro, que prometia ser melhor, que prometia ser mais feliz. — Aplausos. — Depois desses cinco anos, o povo entendeu e aceitou minha promessa, e o povo me elegeu presidente por meio de um plebiscito. E desde essa época eu mantenho minha promessa: transformarei Kailan em um lugar irreversivelmente seguro! — Aplausos. — E vocês vão me ajudar, como têm ajudado desde aquela época.

"Vocês vão me ajudar denunciando qualquer atitude suspeita e sempre respeitando as leis. Vocês vão me ajudar sendo bons cidadãos e não quebrando a ordem nem a paz. Porque juntos nós podemos lutar contra nossos inimigos! Contra as pessoas que promovem a violência e a desordem! Contra os terroristas! — Aplausos. — Com todos fazendo sua parte, viveremos em paz e seremos felizes! — Aplausos. — Um Guerreiro luta pelo seu povo! Eu luto por Kailan! — Aplausos. — Eu luto por vocês!"

Aclamação geral. Fim do vídeo. Kristina desligou o computador e voltou a olhar para a foto sobre a mesinha.

Subitamente, uma batida na porta a sacudiu de suas reflexões.

— Entra — chamou ela.

Era Marko.

— A gente arrumou uma janta. Eu vim te chamar, se você tiver fome.

— Tô sem apetite.

— Tem certeza? — Ele a observou com um pouco mais de calma. — Você tá bem?

Droga. Por que ele tinha que prestar tanta atenção nela? Àquela altura, Kristina já percebera o interesse de Marko por ela, algo que ela jamais corresponderia. Ao contrário, desejava que ele simplesmente a deixasse em paz e voltasse para Elinor, ou arrumasse alguma outra garota a quem pudesse se apegar.

Ele continuava parado na soleira da porta, a observando.

— Você acha que eu tô bem? — disse ela sem conter a rispidez.

— Hm... Quer conversar?

Marko achava mesmo que, se alguém fosse fazê-la sentir melhor, seria ele? A garota fez que não com a cabeça, respirando fundo, soltando o ar com barulho. Mas e se fosse? E se Marko fosse justamente o que Kristina precisava para se sentir no controle da situação?

— Vem cá — disse ela. — Fecha a porta.

Ele a obedeceu. Ela o beijou. Os braços de Marko se fecharam ao redor da cintura da garota, e nessa união os dois caminharam até a cama, enquanto Marko usava os próprios pés para se libertar dos sapatos. Kristina tirou sua blusa, ficando de sutiã, e a dele, revelando um peitoral forte, aparado, e um abdome mais ou menos musculoso. Os beijos dele foram parar no pescoço dela. Uma mão aventureira passeou por suas costas, subindo. Nesse momento, encontrou a cicatriz. Em um movimento involuntário, Kristina se retraiu levemente, porém Marko notou.

— Eu te machuquei? — disse ele.

— Não. — Mas seu incômodo poderia estar mais visível? — Não dói. Sei lá. Não importa.

Ela voltou a beijá-lo e começou a desabotoar a calça dele, mas os dedos de Marko voltaram para a cicatriz. Ele tentou olhar por cima do ombro de Kristina.

— Isso tá te incomodando?! — disse ela, empurrando Marko.

— Tá te incomodando? É uma parte do seu corpo. Eu não posso ver, tocar...?

— Não se eu não quiser.

Marko a olhou por um instante, quieto. Depois, disse:

— Tem razão.

Os dois ficaram parados. Ele estragara tudo! Por que tinha que ser tão impositivo? Era só ter ignorado a cicatriz. Agora Kristina, que deveria se sentir melhor, só queria voltar a ficar sozinha e nunca ter tido aquela ideia estúpida. Marko levou a mão à face dela, na tentativa de acariciá-la, mas ela se esquivou.

— Por que é que você não tira essas luvas?

Ele não disse nada, apenas abriu um sorriso artificial e voltou a erguer a mão, que Kristina afastou com mais agressividade.

— Tira isso — ordenou ela.

— Por quê?

Revirando os olhos, ela pegou sua blusa e fez menção de se levantar, mas então Marko tirou as luvas. Deixou-as cair ao pé da cama. Estendeu os pulsos para Kristina. Em cada um havia uma larga cicatriz horizontal, perto de onde começava a palma da mão. Não era difícil saber o que aquilo significava.

— Eu também tenho as minhas — disse ele.

Outro jeito de estragar tudo.

— Você tem isso desde a época da Isabela? — perguntou Kristina, agora com mais amenidade na voz.

— Desde um ano antes. Eu tinha dezesseis.

— Me conta.

Ele apertou os lábios, o olhar fixo nos pulsos, reflexivo. Fez que não com a cabeça. Ela permaneceu ali, examinando aquela figura, aguardando. Até que:

— Eu tenho que começar falando que eu nasci no Coração, e o meu pai era policial. Quando a minha mãe tava grávida de mim, meu pai morreu na guerra civil. Ela ficou com o trabalho de me criar sozinha. Só que a economia do país tava uma merda, ela tava desempregada e achou que nunca ia conseguir um emprego com uma criança de colo. Ou seja, se ela ficasse comigo, não ia poder nem me sustentar nem se sustentar. Daí ela me deu pra irmã dela, minha tia.

"A minha tia levava uma vida mais tranquila com o marido dela numa cidade perto da minha mãe, e ela sempre tentou me dar as melhores coisas. Pelo menos as melhores coisas materiais. Ela não era uma pessoa boa. Desde que eu era pequeno, ela... Ela me olhava diferente. Me tocava diferente. Me dizia pra fazer algumas coisas com ela. Cada vez que eu crescia, isso piorava. Eu fui uma criança e um adolescente do mais triste.

"Quando eu tinha uns dez anos, a gente se mudou pra outra cidade. Daí nessa época que a minha tia me falou o motivo porque minha mãe tinha me deixado com ela. Antes disso, ela só dizia que a minha mãe não podia cuidar de mim, mas nunca dizia o porquê. Nesse dia ela disse, daí eu perguntei quando a minha mãe ia melhorar de vida pra me buscar. A minha tia falou que ela não me queria mais, que ela tinha esquecido de mim e ido viver a vida dela sem nunca me procurar. Em algumas épocas eu acreditei nisso, em outras não, mas até hoje eu não sei se é verdade. Talvez essa mudança de cidade foi pra se afastar da minha mãe. O que eu tô dizendo é que eu não acho que minha tia ia me devolver pra minha mãe nem se ela pedisse. Mas o fato é que eu nunca conheci minha mãe. Aos quatorze, quinze anos, eu pesquisava o nome dela na internet, e nunca achei nada. Até que um dia eu vi o nome numa lista de mortos de um acidente numa fábrica.

"Era horrível. Viver daquele jeito era horrível. Eu quis fugir daquilo".

— E por que você escolheu o suicídio?

— Porque é fácil e rápido. Porque não dá pra se arrepender depois. Isso, claro, se eles não te "salvarem". Já que a minha tia apareceu a tempo de me levar pro hospital, depois de volta pra casa. E eu fiquei com medo de sair dali, porque o que eu ia fazer? Um de menor sozinho na rua? Eu não queria morrer sem nada, que nem a minha mãe. Daí eu fiquei lá até os dezoito anos, depois me alistei na Cabeça e fiquei morando no quartel. Meu plano era seguir a carreira militar pra vida. Mas depois de um ano eu vi tanta coisa... daí eu saí e fui morar na Costa Baixa.

Ele se calou, pensativo. Depois, com um sorriso acanhado:

— Eu não costumo contar nada disso pras pessoas.

— Tudo bem — disse Kristina. E, sem saber direito por que, acrescentou: — Obrigada por me contar.

Marko sorriu daquele jeito novamente. Arrastou-se para trás e apoiou as costas no espaldar da cama, encolhido.

— Eu acho que a coisa mais útil que a minha tia fez por mim foi uma coisa que ela dizia, que até hoje me faz pensar. Ela dizia que, durante toda a nossa vida, a gente só ama uma vez. Um amor de casal, ou amor por um filho, por um amigo... Mas amor mesmo é só uma vez, só por uma pessoa, e o que você sente pelas outras não é amor de verdade. Desde quando ela falou, eu sempre fiquei pensando nisso.

— E você acredita nisso? Por exemplo, se uma mãe tiver dois filhos, ela só vai amar um, em todos os casos? — Em todos os casos ou só no meu? terminou em pensamento.

— Não sei. Eu não sei se eu acredito. Acho que eu ainda tenho que viver mais pra tirar uma conclusão.

Uma nova calmaria encheu o ar. Kristina encarava as próprias mãos.

— Você quer falar alguma coisa? — disse Marko. — Porque eu tô me sentindo, não sei, um pouco vulnerável, e você podia falar alguma coisa sua.

Ela deveria parar por ali, deixar Marko com aquele sentimento e ficar feliz por, pela primeira vez, ser a única pessoa íntegra em um lugar. Deveria sorrir de lado esboçando desprezo e se levantar sem uma palavra. Mas, por algum motivo, decidiu desabafar:

— Minha mãe nunca quis me ter. Ela tinha perdido o marido e a irmã de uma vez só, em um atentado terrorista durante a guerra civil. Menos de um ano depois, em uma noite de consolo, ela engravidou de um cara qualquer, que virou meu pai. Eu nem tinha nascido e já era um fardo. Por isso e por outras coisas eu nunca tive um relacionamento bom com minha mãe. Na verdade, nem com minha mãe nem com meu pai, mas principalmente com ela.

"Quando eu tinha quatorze anos, eu tava naquela fase da escola em que eles mandam a gente ler O fim dos tempos hostis. Antes disso, eu não tinha nenhum posicionamento sobre o governo, mas tinha o Briel que ficava sempre dizendo como a gente era oprimido e como os militares falavam um monte de mentiras. E, lendo o livro, eu comecei a perceber que muita coisa escrita ali não condizia com o mundo à minha volta, e que talvez o Briel estivesse certo e os meus pais, meus professores e o resto do Kailan que eu conhecia estivessem errados.

"Um dia, eu fui falar disso com minha mãe. Em pouco tempo a gente já tava gritando, xingando, se ameaçando... Foi aí que ela disse: 'Eu nunca devia ter transado sem proteção, porque aí eu não teria que te aguentar, sua ingrata'. Ela disse isso, me empurrou e eu caí em cima de uma mesinha onde ficava um vaso de cerâmica. O vaso quebrou e um pedaço dele cortou minhas costas. Eu levei oito pontos. Depois disso, ainda no hospital, meu pai veio me falar como minha mãe tava arrependida. Que ela valorizava tanto a ditadura porque acreditava que o Marechal Sarto podia mesmo trazer a paz e que eu não deveria ser contra isso. Eu nunca mais dei minha opinião sobre isso. Ninguém nunca mais falou sobre aquela briga, e minha mãe nunca se desculpou pessoalmente.

"E a vida foi seguindo do mesmo jeito que antes. Pra mim, só as ordens, pro meu irmão o carinho. Meu irmão é dez anos mais novo que eu, e meus pais planejaram ele, provavelmente porque eles queriam um filho pra amar. Eu também amo ele, e ele merece tudo isso, apesar de não dar tanto valor quanto eu acho que deveria."

— Você tem inveja dele?

— Não. Eu não me importo com isso. Talvez eu me importasse se eu não tivesse o Briel. Depois desse incidente, eu e o Briel, a gente meio que foi se aproximando mais, porque eu descobri definitivamente que ele era a única pessoa que eu podia conversar. Ele me entendia, concordava comigo, sempre me fazia sentir melhor, e eu também comecei a entender ele melhor. Aí, mais do que nunca, a gente ia pra todos os lugares juntos, contava tudo um pro outro, sempre apoiava um ao outro, e por aí.

— Você ama o Briel?

Ela ficou calada. Também gostaria de saber a resposta.

Vestiu sua blusa, e Marko também se vestiu.

— Hoje — disse Kristina —, o Briel é uma incógnita pra mim. Ele quebrou o que a gente tinha, ele mentiu pra mim. Por culpa dele meu pai foi preso, e eu espero que esteja mesmo só preso.

Marko de repente ficou mais taciturno do que durante toda a conversa. Cabisbaixo, parecia sentir dor.

— Kristina, eu tenho que te falar uma coisa. O Briel não sabia... a gente forçou ele. Eu e a Elinor. A gente sabia.

— Sabia o quê? O que é que você tá falando?

— Desculpa. Desculpa mesmo. A gente mentiu pra você. Seu pai nunca participou do nosso grupo, ele sempre apoiou o governo e agora é quase certeza que ele tá... que ele tá morto.

Ela franziu as sobrancelhas. Claro que já considerara aquela possibilidade, repleta de pavor. Mas não gostou do "quase certeza", não gostou da propriedade de Marko ao dizer aquilo, não gostou dos pedidos de desculpa, nem um pouco.

— Como assim?!

— O Briel lutou muito pra não ter que enfrentar o Ronan. A gente que convenceu ele a plantar a arma. Mas é uma arma, Kristina. Eu já fui soldado, a Elinor já foi presa, e ela é militante tem quase dez anos. A gente sabia que isso quase sempre era morte. Mas a gente enganou o Briel, se não ele não ia fazer.

Kristina estava boquiaberta. Então era aquele o verdadeiro tipo de gente com quem estava lidando. Viviam alegando fazer "o que fosse preciso", mas eram simplesmente assassinos, cruéis, dissimulados.

— Se você sabia que meu pai ia morrer se fosse pego com uma arma, por que é que não colocaram outra coisa, por que não arrumaram outro jeito?!

— Pra garantir que ele ia sair de cena — murmurou o peixeiro em uma angústia decerto fingida.

Kristina se levantou.

— Ele é meu pai! Você é uma aberração! Ele é meu pai! Vocês não tinham nenhum direito de fazer isso!

— Você disse que era indiferente sobre ele! — Ele também aumentou a voz. — Na casa da Adriana. Você disse que você e seu pai nunca foram próximos.

— Você tá usando isso pra se justificar? — A incredulidade era tão grande que o corpo todo dela era um queixo caído e um punho cerrado. Cuspiu pausadamente: — Vocês. Assassinaram. Meu pai.

De repente, a porta do quarto se abriu. Adriana já ia entrando, mas parou ao colidir com aquela atmosfera. Logo atrás, parou Elinor. Kristina passou pelas duas sem olhá-las e fazendo questão de trombar nelas.

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