AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PE...

By wlangekeinde

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Em um país chamado Kailan, governado por uma ditadura militar, a jovem Kristina Lan Fer está mais preocupada... More

APRESENTAÇÃO
BOOK TRAILER
CAPÍTULO 1 - OS LAÇOS QUE PRENDEM A CORDA
CAPÍTULO 2 - AMIGO DE LONGA DATA
CAPÍTULO 3 - TRÊS MESES DEPOIS
CAPÍTULO 4 - BASTIDORES DA PÁTRIA
CAPÍTULO 5 - DISTÚRBIO
CAPÍTULO 6 - LONGE DEMAIS
CAPÍTULO 7 - OS INCONFORMADOS
CAPÍTULO 8 - O VISIONÁRIO DA COSTA BAIXA
CAPÍTULO 9 - NOSSO ABRAÇO DE AGULHAS
CAPÍTULO 11 - ESBOÇO DE UM CRIME FEDERAL
CAPÍTULO 12 - MEIA DÚZIA DE PROMOTORES DO CAOS
CAPÍTULO 13 - PENSAMENTOS PROIBIDOS
CAPÍTULO 14 - O TERCEIRO-SARGENTO
CAPÍTULO 15 - NO ALBERGUE I
CAPÍTULO 16 - NO ALBERGUE II
CAPÍTULO 17 - PAZ? SOMENTE AOS SUBMISSOS
CAPÍTULO 18 - O PRIMO
CAPÍTULO 19 - RECOMPOR
CAPÍTULO 20 - O DIA DA DECISÃO
CAPÍTULO 21 - O HOMEM QUE USURPOU A NAÇÃO
CAPÍTULO 22 - PEDRAS NA POÇA DE ÁGUA (final)

CAPÍTULO 10 - AS TRAMAS OCULTAS DA GUERRA CIVIL

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By wlangekeinde


Totalmente desagradável, determinou Kristina sobre a Costa Baixa de Orlestan. Não havia casas, apenas um amontoado de prédios baixos, mas, ao contrário do que se via no centro da cidade, aquelas construções eram antigas e malconservadas. Por trás da fila de barcos atracados ao porto, o mar poluído exalava sua fetidez, carregada em direção à terra pela brisa oceânica. Apesar disso, muitas pessoas andavam por perto, entrando e saindo das embarcações, carregando redes abarrotadas de peixes até caminhões e caminhonetes que esperavam, estacionadas, para fazer o transporte. Cães vira-latas também transitavam à vontade pelo local. Um carro militar passava de vez em quando, fazendo a ronda.

Kristina andava a pouca velocidade em sua moto, os olhos à procura de alguém com aparência minimamente confiável para quem pedir informações. Passou por dois garotos de no máximo doze anos, ambos de bermuda, camiseta e descalços. Deviam ser filhos de algum pescador, acompanhando o pai no trabalho. Kristina parou ao lado deles:

— Ei! Meninos! Sabem onde é que fica a Rua da Brisa?

— Logo ali, moça — respondeu um deles, apontando. — Tá vendo aquela esquina de frente praquele barco azul? Vira ali, depois a segunda direita.

— Tá.

— Bom passeio, moça — disse o outro garoto.

— Ô, moleques! — chamou um homem ao longe. — Para de perturbar e volta pro serviço!

Tanto os garotos quanto Kristina tomaram seus rumos.

A Rua da Brisa era uma rua comercial com calçadas largas e um fluxo médio de pessoas vestidas de malha e acessórios baratos. Quando Kristina chegou ao número que Marko lhe dera, não se admirou que se tratasse de uma peixaria, um local pequeno no primeiro piso de um prédio. Um ventilador girava na parede de azulejos desgastados, mas o odor da mercadoria dominava o ambiente. Apesar de mergulhados no gelo, os peixes ficavam expostos, sem vidros de proteção, ao contrário do habitual nos centros de cidade. Um balcão separava os clientes dos dois funcionários que lá se encontravam: um homem na faixa dos trinta anos, com uma camisa de botão aberta até a metade, ocupado atendendo uma mulher, e um velho de cabelos brancos e barriga saliente, que se dirigiu a Kristina:

— Pois não?

— Eu tô procurando o Marko Danton.

O mau cheiro e a pobreza enjoavam Kristina, e a todo instante ela relanceava para trás, para a entrada do estabelecimento, onde estacionara sua moto com o capacete e a jaqueta na mala. O velho deitou o olhar nela por algum tempo.

— Você não é daqui, né não, menina? Nem do centro, né não? Você é de subúrbio. Eu conheço essa cara de menina de subúrbio. Não fica com medo de assalto nem do que for. Aqui é tranquilo, hoje. Antigamente que era osso, antes do Marechal, que ninguém tava nem aí pra nós. Vocês reclamava de terrorismo, de ataque em estádio de jogo, em shopping, em escolinha particular, mas aqui na redondeza, mesmo não tendo terrorismo, o ataque era da polícia. Aparecia por aqui não era pra proteger ninguém não, era pra dar porrada. Pra eles todo pobre era bandido e terrorista. Nosso Marechal fez bem em acabar com eles. O exército sim respeita e protege todo mundo, sem olhar pra renda.

— Eu tô procurando o Marko Danton — repetiu Kristina, um pouco mais alto.

— Markinho tá lá em cima, de folga. Você sai e aqui do lado tem uma escada, só subir e bater na primeira porta lá dentro. Quer que eu te leve?

— Não.

Ao lado da peixaria, havia uma porta de vidro translúcido com uma escada atrás. Kristina subiu dois lances estreitos e mal iluminados até chegar a um minúsculo corredor com uma porta de um lado, mais degraus do outro e uma parede consumida pela umidade à frente. Bateu à porta. Dez segundos depois, Marko estava ali.

— Oi — disse ele.

— Adorei esse lugar que você escolheu. Tudo lindo, cheiroso e eu nem tô tentando entender qual é a daquele velho na peixaria.

— O Sal tá meio doente — disse ele, olhando para baixo, a face enrubescendo. — Ele é só um amigo, nem sabe de nada do nosso grupo. E... né... eu também ia gostar de morar no subúrbio, mas não é pra todo mundo.

Foi como se o constrangimento em pessoa esbofeteasse Kristina, arrancando-lhe como dentes as palavras. Marko deu de ombros.

— Se não for insuportável pra você entrar, fica à vontade.

Ele abriu a porta.

Era um apartamento pequeno com paredes manchadas e móveis por consertar. Sentada em um sofá, fumando um cigarro, havia uma garota poucos anos mais velha que Kristina. Tinha um braço todo tatuado sobre a pele cor de amêndoa e os cabelos cacheados na altura dos ombros. Suas roupas eram melhores do que as das outras mulheres da Costa Baixa. Ela certamente não pertencia àquela ralé. Após soltar a fumaça de um longo trago, perguntou a Marko:

— É ela?

— Sim. Adriana, essa é a Kris. Kris, essa é a Adriana.

— Kristina — corrigiu a própria, revirando os olhos.

Adriana apagou o cigarro em um cinzeiro e se levantou para cumprimentar a nova conhecida com dois beijos. Suas mãos foram primeiro aos ombros de Kristina, mas depois foram descendo à cintura com apalpadelas. Kristina a afastou.

— Você tá me revistando?

— Claro — disse Adriana. — Desculpa, flor, mas eu preciso saber se você veio com as intenções certas.

Kristina abriu os braços e as pernas para que Adriana terminasse a vistoria. Não encontrando nada, a inspetora disse:

— Certo. Então vamos.

— Pra onde?

— Conhecer o resto do grupo.

Era uma satisfação ver que eles se aproximavam do subúrbio de Orlestan. Tinha mais movimento do que o de Almar e as casas eram maiores. No banco de trás do carro, Kristina manteve-se colada à janela, os olhos na rua, enquanto Adriana os conduzia pelo caminho. A moto de Kristina ia na mala.

— Aqui os militares não perturbam — disse Marko, no banco da frente. — Lá na Costa, juntar sete jovens numa casa é pedir pra ser pelo menos investigado.

Eles chegaram a uma casa de muro alto. Do porta-luvas, Adriana sacou um controle remoto, clicou em um botão e o portão se abriu para eles entrarem.

O lugar era bem maior do que a casa de Kristina, a de Briel e até a de Tiara. O caminho para a garagem passava ao lado de uma piscina, uma quadra de vôlei, uma horta de temperos e muitas árvores. Ao fundo, via-se a casa em si: larga, com dois andares e várias janelas.

Adriana estacionou ao lado de outros dois carros que já estavam na garagem, e eles entraram. Chegando a uma sala com sofás e poltronas, deparam-se com mais quatro cabeças, que se viraram ao mesmo tempo para Kristina. Entre elas, uma surpresa. Pensando bem, mesmo que Marko tivesse negado, já era de se esperar a participação de Lorena naquela história.

— Eu sabia — disse Kristina. — Foi você que arrastou o Briel pra isso, né?

Lorena fez que não. Dessa vez seus cabelos estavam presos e ela tinha um par de óculos escuros por sobre a cabeça.

— Primeiro: meu nome verdadeiro não é Lorena e eu não moro no Coração, apesar de ter vindo de lá. Segundo: eu nem conhecia o seu amigo. O Marko foi até a casa do Briel e perguntou se ele queria fazer parte do nosso grupo. Foi um pouco depois disso que a gente inventou a Lorena, como um motivo pro Briel ficar tão engajado em alguma coisa sem parecer suspeito. — Adotou um tom de escárnio: — Ué, Marko, você não contou isso pra ela também?

O peixeiro revirou os olhos:

— Eu não vou discutir de novo. Se minha tática não funcionasse ela não tava aqui agora.

Kristina franziu o cenho. Olhou para as outras pessoas em volta, e... Não era possível! Também reconhecia o homem mais velho dali, que tinha uma barba branca em contraste com o rosto escuro. Já o vira em algum lugar, com certeza. Percebendo o olhar da garota, o homem virou o rosto. Mas Kristina já se lembrara.

— Você é o Esteban Lan Paker. Da LanPaker S.A. Isso não faz o menor sentido. Você é o maior fabricante de armas pro governo.

O empresário permaneceu calado.

— E pra gente também — disse Adriana. — Não vai dar pra mentir pra ela, vô.

— Olha só, galera — disse um dos dois homens desconhecidos, com uma voz suave. Tinha longos cabelos cacheados e covinhas que se faziam visíveis ao sorriso mais discreto, como o que ele exibia agora —, a menina já tá confusa, e vocês ainda enfiam tudo isso nela de uma vez, assim, sem nem passar pelas preliminares.

— Por que você não senta? — disse Marko. — A gente vai te explicar algumas coisas.

Kristina se dirigiu a uma poltrona, sob os olhares da falsa Lorena, de Adriana e Esteban Lan Paker, do cabeludo e do outro desconhecido, um musculoso de expressão mal-humorada.

— Esses são o Tone e o irmão dele, Franke — apresentou a falsa Lorena, apontando para o cabeludo e para o musculoso, respectivamente. — E meu nome é Elinor.

— Eu não sei nem por onde a gente começa — disse Tone-o-cabeludo.

Mas Esteban Lan Paker, pelo visto, sabia.

— Você conhece a história da guerra civil? Não a que tá nos livros da escola, mas a verdadeira.

— Eu conheço uma história. Sei lá se é a que você quer.

— Pelo que o Marko disse sobre suas origens, certamente não. Mas você não pode fazer parte da nossa luta sem saber.

Ela fechou a cara, sentindo-se ignorante. Esteban começou:

— Kailan foi, por vários anos, governada por um mesmo grupo político, revezando só a pessoa que assumia a presidência. Durante os mandatos, esses políticos afundaram o país em uma crise econômica sem precedentes, e ainda começaram a aparecer vários escândalos de corrupção. A criminalidade aumentou absurdamente e todo mundo foi ficando desesperado.

"Foi aí que surgiu o primeiro grupo terrorista, que atacava o governo a partir de ataques à população mais rica, principalmente aos empresários e banqueiros. Eles diziam que o governo só se preocupava com a morte dos ricos, porque o que se via da polícia era chegar nos bairros pobres atirando primeiro e perguntando depois. Desse, foram aparecendo outros grupos terroristas. E foi aí que se terminou de confirmar como a polícia era um poço de incompetência pra impedir o país de virar um caos. Respondiam violência com violência e o terrorismo não acabava. Havia empresas financiando os terroristas pra acabar com a concorrência. 'Te dou tanto de dinheiro e algumas armas pra você destruir aquela empresa que tá concorrendo com a minha'.

"Eram tiroteios e explosões todo dia. Os terroristas queriam matar os policiais pra conquistarem espaço. A polícia se preocupava mais em matar os terroristas do que em proteger os civis. Muita gente morreu.

"Até que o exército foi convocado, mas o Sarto viu a oportunidade de dar um golpe de Estado. Ao invés de obedecer ao governo, ele rompeu com eles e colocou o exército a princípio contra a polícia e o governo. Se aliou aos cidadãos que não aguentavam mais viver naquele cenário, que demandavam uma salvação, e colocou a própria imagem como a da pessoa que deveria assumir o governo do país. Até alguns terroristas também concordaram com isso e passaram a lutar por isso, porque acima de tudo eles eram contrários ao governo anterior. Foi assim que o Sarto derrubou aquele governo e aboliu a polícia, e assumiu a presidência nos braços do povo. Essa foi a primeira parte da guerra civil.

"Depois o Sarto, já na presidência, mas ainda inconstitucionalmente, ele fez um pacto com as empresas que antes financiavam os terroristas e rebeldes. Ele deu uma recompensa a essas empresas, com dinheiro, vantagens, essas coisas, pra que elas parassem de financiar. Assim, os terroristas e rebeldes enfraqueceram. Foi aí que o Sarto acabou com eles, acabou com a chance de um dia eles se rebelarem contra esse novo governo também. Nessa época, o exército aproveitou pra incriminar muita gente da oposição que nem eram terroristas de verdade. Jornalistas, políticos, muita gente. O Sarto exterminou a parcela da população que seria contrária à ditadura que ele queria instalar. Isso foi a segunda parte da guerra civil.

"E foi assim que o Sarto 'apaziguou' o país. Quando a ordem já tava mais ou menos restabelecida, ele fez o famoso plebiscito, no dez de novembro, perguntando pra população se ele deveria ser oficialmente o presidente por um período indeterminado. Como só quem tinha sobrado vivo no país era gente que o apoiava e gente que tinha medo de ser contra, ele foi super bem-sucedido, com noventa por cento de aprovação."

É, realmente Kristina nunca ouvira aquela face da história. A verdadeira, como dissera Lan Paker. As tramas ocultas da guerra civil do ponto de vista de um empresário. Aquilo era bastante crível. Para as empresas, era mesmo vantajoso financiar o terrorismo para acabar com o antigo governo, que não sustentava a economia. Depois foi útil se unir a Sarto para acabar com os rebeldes, afinal as revoltas causavam instabilidade, afastando investidores de outros países, e tinham começado entre os pobres, ou seja, os trabalhadores; sempre era ruim para um empresário ter seus trabalhadores revoltados. Agora, a escolha de auxiliar Sarto ou de lutar pelo fim da ditadura parecia uma questão de valores para Lan Paker e, se houvesse, para outros empresários que também financiassem a oposição.

— O que é que a LanPaker fez na guerra civil? — perguntou Kristina.

— A LanPaker fez o que foi necessário — disse Esteban.

— O que é obviamente um eufemismo pra...

— Financiou os rebeldes — disse Adriana. — Depois fez o pacto com o governo e ajudou a acabar com os rebeldes. Isso talvez pareça errado pra você, mas foi como a nossa família conseguiu se proteger no passado e até hoje, mesmo hoje sendo uma situação diferente. O dinheiro que a gente ganha vendendo pro Sarto é o que nos permite financiar a inteligência da nossa luta, e a confiança que ele tem na gente é uma parte essencial disso tudo. Nosso caminho pode ser mais torto do que seria ideal, mas é necessário pro nosso objetivo.

— E o objetivo de vocês — disse Kristina. — Matar o Marechal Sarto...

— Tu tem que entender o que a gente diz quando fala em objetivo — disse Franke-o-musculoso, com certa antipatia na voz. — Acabar com o Sarto não um objetivo final. É um processo.

— É — disse Marko. — Eu falei com você naquele dia que Kailan, pra mudar, precisa do primeiro passo. A gente precisa eliminar esse canalha que quer acabar com a violência usando mais violência ainda, igualzinho a polícia fazia e ele fingia que abominava. Só que a violência dele ele diz que é "castigo", uma palavra bonita pra fazer o povo aceitar os assassinatos e tortura. Ele diz que a tática é controlar os criminosos por esse castigo, e diz que assim vai revolucionar a gente pra uma sociedade pacífica. Só que o castigo não muda a cabeça de ninguém. Não cria consciência, só cria medo. Como se faz uma revolução assim?

Não se faz, pensou Kristina. Disso até ela sabia. Uma revolução só poderia acontecer caso as pessoas parassem de se conformar com o presente e começassem a pensar no futuro.

— Se a cada vez que você me bater — disse Elinor-Lorena — eu te bater de volta com o dobro da força, você vai parar de me bater porque vai ficar com medo de apanhar, e não porque você aprendeu que bater é errado. Você vai se comportar como eu quero por medo de sofrer as consequências. Esse é o plano do governo pra controlar não só os criminosos, como eles dizem, mas toda a população que pense diferente deles. É só você olhar pras leis que eles criaram desde que assumiram o poder. A gente vive num país onde a lei permite condenar alguém se o Estado suspeitar que essa pessoa esteja envolvida em um ato terrorista, sem nenhuma evidência concreta. Na prática, o governo faz de alvo quem ele quiser.

— Sim — reforçou Adriana. — Algumas pessoas ainda acreditam naquele mito do início da ditadura, de que esse é realmente o caminho pra paz em Kailan, mas a maioria só se submete às restrições que o governo impõe porque têm medo. Quem impõe o medo são os militares, que são liderados pelo Sarto. E o Sarto só lidera porque ele é um símbolo, que une todos os militares e os civis que apoiam os militares. Destruindo o símbolo, a união acaba. Acabou o apoio da população e acabou a estabilidade entre os militares. Você não deve saber disso, mas antes do Sarto virar Marechal o exército era uma instituição quase tão falida quanto a polícia se tornou depois. Então, acabando com a união dos militares, só sobrou a população que tem medo de ser punida. Mas, agora, vai ser punida por quem? Sabe... Com a morte do Sarto, o sistema fica desordenado.

Como aquele menino dissera no aniversário de Briel. Algo sobre aumento de entropia, grau de desordem...

— Um sistema desordenado é um convite pra uma revolução de verdade, com mobilização do povo — disse Tone-o-cabeludo.

— Pensa em um futuro — disse Franke-o-musculoso — onde tu é livre pra fazer tuas escolhas, pra seguir tuas ideias, e não existe nenhum Estado totalitário pra controlar tua vida. Ninguém pra te fazer uma cidadã modelo ignorante e medrosa. Esse é nosso objetivo final.

Kristina anuiu com a cabeça, mas não teve certeza se cidadã modelo ignorante e medrosa se referia diretamente a ela.

— Isso é muita informação de uma vez — disse a garota.

— Teu amigo Briel falou a mesma coisa, antes de pôr o rabinho entre as pernas e fugir — disse Franke.

— Não fala assim dele.

A resposta de Franke foi uma risada zombeteira. Kristina jogou o corpo para trás, afundando-se no encosto da poltrona. Olhou em volta, para a casa de decoração minimalista e para as pessoas ao seu redor.

— Se quiser perguntar mais alguma coisa, vai em frente — disse Tone.

— São só vocês?

— Oposição armada aqui na Cabeça somos só nós — confirmou Adriana.

— E o meu pai.

— E o seu pai.

Ela tentou imaginar Ronan sentado ali com eles, falando sobre o fim do totalitarismo, mas sua mente não conseguiu cristalizar a cena. Só se lembrou da notícia no Jornal, das acusações... E nasceu uma ruga entre as sobrancelhas da garota, um fomento nas batidas do coração. Algo estranho ao qual ela deu voz:

— E as pessoas que meu pai tava conversando quando ele foi flagrado? Na faculdade. Na faculdade onde tem câmeras, soldados e um monte de gente que apoia o governo.

— Seu pai... — disse Marko, e Kristina se perguntou se aquilo no rosto de todos era tensão. — A gente não sabe direito o que aconteceu, mas a gente desconfia que ele não tava falando nada com ninguém. Ele devia ter algum inimigo pessoal na faculdade e a pessoa descobriu que ele tinha uma arma. Daí fez uma denúncia falsa, mas apontando uma evidência verdadeira. Mas seu pai não vai dedurar nada, a gente não precisa se preocupar com isso.

— Eu só queria entender por que é que ele deixou uma arma na gaveta.

— Porque essa vida é da mais perigosa — disse Elinor. — É um erro não andar armado e, depois de ser denunciado, não faria diferença ter uma arma na gaveta ou na calça, porque os soldados iriam revistar tudo e achar de qualquer jeito. Você já reparou como essa vida é perigosa, não já?

— É, eu sei.

— Flor, nós só queremos que você entenda esse mundo onde você acabou de entrar — disse Adriana. — Você não tá mais em casa, segura. Agora sua segurança depende de coisas completamente diferentes. Agora quem pode te dar segurança não são as leis, nem os soldados, nem a sua família governista — Kristina conteve uma careta de dor ao se lembrar da discussão com a mãe algumas horas atrás. — Vir pra cá significou se voltar contra todos eles. Quem vai te proteger a partir de agora somos nós, nosso grupo, nossa união. E união quer dizer confiança. Por isso, antes de te dizer qual é o nosso plano pra matar o Sarto, nós precisamos saber: podemos confiar em você?

Para a segurança geral, precisamos da união de todos os cidadãos contra os inimigos da nação, lembrou-se Kristina. Denuncie qualquer atitude suspeita. Kailan confia em você. Era uma propaganda constante do governo. O discurso de Adriana fazia lembrar aquele. Contudo, parecia que a fala dela carregava uma verdade feroz. Kristina acabava de entrar em uma vida oposta às condições confortavelmente regulares em que costumava viver. Com alguém dizendo isso para ela, era como se a realidade fosse mais forte.

— Sim — respondeu ela.

— Então fala pra gente o endereço do Briel — disse Elinor —, daí a gente te fala o nosso plano.    

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