AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PE...

By wlangekeinde

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Em um país chamado Kailan, governado por uma ditadura militar, a jovem Kristina Lan Fer está mais preocupada... More

APRESENTAÇÃO
BOOK TRAILER
CAPÍTULO 1 - OS LAÇOS QUE PRENDEM A CORDA
CAPÍTULO 2 - AMIGO DE LONGA DATA
CAPÍTULO 4 - BASTIDORES DA PÁTRIA
CAPÍTULO 5 - DISTÚRBIO
CAPÍTULO 6 - LONGE DEMAIS
CAPÍTULO 7 - OS INCONFORMADOS
CAPÍTULO 8 - O VISIONÁRIO DA COSTA BAIXA
CAPÍTULO 9 - NOSSO ABRAÇO DE AGULHAS
CAPÍTULO 10 - AS TRAMAS OCULTAS DA GUERRA CIVIL
CAPÍTULO 11 - ESBOÇO DE UM CRIME FEDERAL
CAPÍTULO 12 - MEIA DÚZIA DE PROMOTORES DO CAOS
CAPÍTULO 13 - PENSAMENTOS PROIBIDOS
CAPÍTULO 14 - O TERCEIRO-SARGENTO
CAPÍTULO 15 - NO ALBERGUE I
CAPÍTULO 16 - NO ALBERGUE II
CAPÍTULO 17 - PAZ? SOMENTE AOS SUBMISSOS
CAPÍTULO 18 - O PRIMO
CAPÍTULO 19 - RECOMPOR
CAPÍTULO 20 - O DIA DA DECISÃO
CAPÍTULO 21 - O HOMEM QUE USURPOU A NAÇÃO
CAPÍTULO 22 - PEDRAS NA POÇA DE ÁGUA (final)

CAPÍTULO 3 - TRÊS MESES DEPOIS

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By wlangekeinde

Seria mais um encontro pequeno do que uma festa, embora os convidados chamassem da segunda maneira. Mas o anfitrião deixara claro como as coisas andariam: sete pessoas, música boa, jogos de tabuleiro, besteiras para comer e muita bebida. Parecia uma ótima comemoração de vinte e um anos.

Tiara estava na casa de Kristina, pois as duas tinham combinado de se arrumarem juntas. Prontas, seguiram até a casa em frente.

No aparelho de som, uma música alta marcada por guitarras, violoncelo e um vocal intenso. Os meninos já estavam lá: Alan e Duke, amigos de Briel desde o colégio, e um garoto que Alan apresentou como Oto, seu irmão mais novo.

— Mesmo ele tendo dezesseis anos — disse Alan —, a paranoica da nossa mãe não deixa mais ele ficar sozinho em casa, porque esses dias o vacilão queimou o micro-ondas e quase começou um incêndio.

— Eu só tava distraído — disse o garoto.

— Pelo menos conheceu seu ídolo, nosso aniversariante ali — implicou o irmão mais velho.

— Ídolo é coisa de menininha! Eu só sou o melhor aluno do colégio em física e fiquei curioso pelo projeto do Briel.

— E cadê o Briel? — perguntou Kristina.

— Na cozinha.

Lá, as garotas encontraram o aniversariante sorridente, ao lado de uma mulher quase tão alta quanto ele, magra, cabelos negros e alisados com uma longa franja caindo sobre um dos olhos. Briel não costumava apreciar garotas com muitas joias espetadas no rosto, mas sempre contava que Lorena, com suas argolas no nariz, na boca e nas sobrancelhas, era uma exceção.

— Meninas — disse ele, depois de receber os cumprimentos e parabéns —, essa é a Lorena. Essa é a famosa Kris, e a Tiara, que faz faculdade com ela.

— Prazer — disse Lorena, dando dois beijos em cada uma.

— Fica à vontade, Tiara — disse Briel. — E Kris já é de casa.

Chamando da sala, Duke convidou:

— Peguem logo as cervejas e bora continuar o jogo. É Banco Imobiliário, meninas. Começou agorinha, nem deu tempo de comprar muita coisa.

Briel pegou um engradado na geladeira, colocou em um isopor e levou até a roda em volta do tabuleiro. Tiara, que decidiu tomar o lugar de Duke como banqueiro, distribuiu a si mesma e a Kristina o dinheiro inicial mais dois pró-labores de duzentos mil reais, para compensar as rodadas disputadas antes de elas chegarem. Pouco tempo depois, Tiara tinha três propriedades, incluindo uma Companhia, carta valiosa. Briel tinha duas Companhias, e o pino de Tiara parou em uma delas.

— Opa! — disse Briel. — Pode ir pagando. Trezentos mil!

— Vai ter volta, hein — disse a devedora. — Mas primeiro me passa mais uma cerveja.

— Meu Deus! — gritou Alan de súbito, atraindo os olhares. — Eu adoro essa música. E os meus olhos vão brilhar quando você voltar...

Todos riram.

— Eu também adoro — disse Lorena. — É ótima.

— Eu já toquei ela com minha banda — disse Tiara. — Eu toco guitarra e teclado.

— Eu já tentei aprender violão — disse Briel.

Kristina não tocava nenhum instrumento nem conhecia a música, por isso ficou em silêncio, apenas ouvindo o diálogo.

A conversa e o jogo se estenderam por horas. O primeiro a falir foi Alan, que acabou hipotecando a maior parte de suas posses. Briel adquiriu alguns títulos do amigo por um preço bom. Em seguida, quem precisou se esforçar para se manter operante foi Kristina. Lorena, vendo seu aperto, ofereceu:

— Eu te dou um milhão pela Companhia de Petróleo.

Kristina refletiu enquanto levava uma garrafa de cerveja à boca.

— Humm... Se você deixar a proposta de pé, talvez mais tarde.

— Agora ou nunca.

Ela bebeu outro gole.

— Então não.

— Não vai arriscar?

— Não.

Lorena deu de ombros e o jogo continuou. A certa altura, Tiara perguntou:

— Não vai beber não, Lorena?

— Eu não bebo... Religião.

— E que religião que não deixa beber? — perguntou Duke.

— O Divino Guerreiro Sama criou a nossa consciência já do jeito como ela tinha que ser. Logo, qualquer tipo de droga contribui pro desequilíbrio do espírito, o que traz o desequilíbrio do corpo, depois das sociedades... enfim.

— Mas você é samista ortodoxa, não é?

— Sou.

— Porque, tipo, eu também sou samista, mas não ortodoxo, não. Sabe, eu não frequento mais nenhuma Casa, mas eu ia com minha mãe quando eu era pequeno e nunca ouvi ninguém dizendo isso das drogas. Interessante, até. Mas acho que comigo não ia dar certo.

— Eu nunca entendi direito o mito do Sama — disse Tiara. — Meus pais são ateus e meu colégio era laico, e honestamente nunca cheguei a pesquisar sobre.

Oto, o irmão de Alan, tomou a dianteira, com o peito estufado:

— O Divino Guerreiro Sama é um dos vários deuses que vagam no espaço criando planetas e seres. Bom, eu não gosto de chamar de "deus". Ele é um ser, também. Ele criou nosso planeta, os humanos, os animais, as plantas e os microrganismos. Mas também criou outros planetas, por isso tem um monte pra administrar, e ele não é perfeito e todo-poderoso como o Deus absurdo dos monoteístas.

— Como o Deus absurdo? — interrompeu Duke, com uma careta.

— Desculpa — disse o garoto com um ar de "tanto faz". — Continuando, o Sama é obrigado a ficar um tempo fora, deixando a gente sozinho, e só pode voltar de tempos em tempos, que ele reencarna pra trazer a paz de volta pra gente. Porque vocês têm que entender que uma sociedade é um sistema, e todo sistema, pelas leis da física, tem uma tendência natural à desordem. O grau de desordem a gente chama de entropia. Meu professor falou que a gente só aprende isso mais a fundo na faculdade, mas eu pesquisei. A entropia se refere ao número de possibilidades possíveis como as partículas de um sistema podem se organizar. — Olhou para Briel, e o silêncio do rapaz foi confirmação suficiente para que o pirralho prosseguisse. — Se a gente aplicar isso a uma sociedade, que é um sistema de pessoas organizadas, a gente vê que a tendência é à desorganização, ao caos. — Aí sim Briel franziu o cenho. — Pra vocês entenderem: se você tem uma única ordem X de como a sociedade pode funcionar, você tem estabilidade. Por isso o exército tem leis rigorosas de comportamento, pra manter a ordem. Mas quando você dá liberdade pra existir outro jeito da sociedade funcionar, você já diminui a ordem. Você aumenta a desordem, a entropia. Agora, se você deixa a sociedade se organizar tanto na ordem X quanto na Y quanto na Z e indo por aí, você tá aumentando cada vez mais a entropia, porque daqui a pouco cada um vai simplesmente fazer o que quer. Imagina! Os moralistas chamam isso de liberdade, mas é só uma porta aberta pra um milhão de conflitos.

— Achei que a gente tava falando de religião — cortou Briel, frio.

— É, eu me empolguei.

— As pessoas não são máquinas. Você não pode aplicar as leis da física em sociedades humanas. Talvez você aprenda isso quando chegar na faculdade.

Lorena se inclinou para beijar o namorado e cochichou perto de seu ouvido. Kristina, que estava do outro lado de Briel, conseguiu ouvir o murmúrio aflito:

— E talvez aprenda a não usar uma religião pacifista pra defender uma ditadura.

É... talvez ela e Briel tivessem mesmo muita coisa em comum.

— A gente pode voltar a jogar? — disse Briel, e o jogo prosseguiu.

Lorena e Tiara eram as mais ricas em notas, mas Briel tinha o monopólio de um dos cantos do tabuleiro, de modo que Tiara logo teve que lhe pagar uma quantia que não possuía. Falindo, retirou-se para o banheiro. Na vez de Oto, seu celular tocou e ele se afastou para atender.

— Deve ser o moleque lá da escola dele de novo — disse Alan —, que não para de ligar pra falar dos preparativos da apresentação pro dez de novembro.

— A gente ainda tá em maio — disse Duke.

— Pra ter noção do que é essa lavagem cerebral do governo.

— Pois é. O dez de novembro! — disse Briel, satírico. — O tão esperado Dia da Decisão, quando nós, os escravos obcecados, comemoramos o glorioso dia em que colocamos nosso querido ditador no poder pra proteger a gente dos terroristas que a polícia já tava dando conta. Ah, espera, ele também quis proteger a gente da polícia.

— O mundo tá de cabeça pra baixo — concluiu Alan enquanto Tiara voltava para a roda.

No jogo, Briel e Lorena continuaram a enriquecer. Sem demora, a situação de Kristina ficou insustentável e ela teve que desistir. Entregando seu pino, suas posses e seu dinheiro ao banco, disse:

— Vou ao banheiro.

— O Alan acabou de ir lá — avisou Duke.

— Então eu vou lá em cima.

Subindo as escadas, o som da música, das conversas e das risadas ficou mais distante. De algum modo, Kristina também se sentia distante, como se não devesse estar ali naquele dia. Não se divertia tanto quanto os outros, isso era evidente. Enquanto passeava pelo segundo andar, pensou que talvez fosse porque não se encontrava com os amigos de Briel havia pelo menos quatro meses. Aliás, com o próprio Briel a última interação satisfatória fora dois meses atrás, quando ele estivera na casa da garota para assistir a um filme e comer sardinha frita. Entretanto, Tiara, que não costumava conviver com aquele grupo, estava se dando bem com todos, conquistando-os facilmente. Não era a primeira vez que Kristina desejava ser como a colega nesse sentido.

No corredor, parou em frente a um espelho. Sua mão seguiu o hábito de encontrar a cicatriz das costas, coberta pela blusa. A existência daquela deformidade só deixava tudo pior. Uma risada alta de Lorena veio do andar de baixo. Briel parecia feliz com ela e com a nova vida que ela o fizera começar. Por mais estranho que aquilo fosse. Afinal, quem era Lorena, o que ela queria, no que ela pensava? Não parecia uma pessoa ruim, mas era tão indecifrável, e cada vez mais levava Briel para lhe fazer companhia em sua névoa.

Alguns passos adiante, Kristina entrou no quarto de Briel. Não cruzava aquela porta desde antes do ETeCK. Um espaço amplo, tapetes brancos sobre chão de madeira escura, pôsteres cobrindo as paredes azuis, um computador na escrivaninha, almofadas na cama de casal. O quarto dele sempre fora mais organizado que o dela, desde que ambos eram crianças.

Entre os livros de uma estante, Kristina avistou a lombada cor de marfim com letras vermelhas do inconfundível O fim dos tempos hostis, do Marechal Aldo-Eriko Sarto. O mesmo livro que tinha lugar em uma prateleira no quarto de Eiden, sendo que o exemplar de seu irmão já fora dela. Todos os meninos e meninas em Kailan que tinham passado pelos quatorze anos após o primeiro Dia da Decisão já tinham lido a autobiografia do presidente a mando de suas escolas. O livro contava uma história perfeita sobre como o pequeno Sarto, magro e antissocial, superara as dificuldades da vida, sempre com muito trabalho, até se tornar o Marechal do exército. Além disso, era um ensaio sobre como a violência arruinava a felicidade das pessoas, como Sarto trouxera a paz e como a paz tornava a vida dos cidadãos de Kailan mais fácil, tornando mais fácil seu caminho para a felicidade. Kristina não abria aquele livro desde que o lera, mas ainda se lembrava da epígrafe, por tê-la visto em várias outras obras:

O Guerreiro é o único a quem cabe atacar, e só ataca para defender. Defende primeiro seu povo e depois a si mesmo, e só defende a si mesmo porque, se não o fizer, não poderá, futuramente, voltar a defender seu povo, e o Guerreiro só vive para defender seu povo.

A citação era de Kailo, o primeiro herói de Kailan.

A História começava com o Império de Torlan, fundado doze séculos atrás por um guerreiro chamado Tore, que uniu vários povos sob seu reinado oferecendo proteção em troca de trabalho e lealdade. Séculos depois da fundação, dois descendentes do fundador chamaram atenção: os irmãos Bonso, mais velho, e Kailo, mais novo.

Bonso, o imperador na época, era arrogante e se achava um guerreiro melhor do que o irmão. Um dia, querendo provar isso, convidou Kailo para um duelo. No entanto, Kailo venceu, e Bonso, humilhado, baniu o irmão de suas terras.

No comando do império, Bonso travava inúmeras guerras por território, sendo uma delas mais marcante: a Guerra Geral. Esta começou quando vários grupos sob comando do Império de Torlan se separaram dele e se agregaram a outro império crescente. Bonso, achando inaceitável tal ousadia, declarou uma guerra que durou anos, levando morte, pobreza, fome e doença ao seu povo. Até que, durante um ataque a Torlan, quando Bonso e a população já tinham perdido as esperanças, surgiu no horizonte um guerreiro em uma armadura brilhante, comandando um exército de um milhão de soldados. Era Kailo, que, com seu grande exército, venceu a guerra, levando a paz de volta a Torlan. Assim, como a maior parte da população de Torlan era samista, ficaram certos de que Kailo era uma encarnação do Divino Guerreiro Sama. Não um mero guerreiro, mas um Guerreiro. Então a população enforcou Bonso e proclamou Kailo seu novo imperador.

Para manter a harmonia que conquistara, Kailo aceitou a segregação dos territórios que queriam se juntar ao outro império, afirmando que a não-aceitação causava mais mazelas do que benefícios. Desse modo, a área de Torlan se reduziu ao que era atualmente. Kailo separou essa área em sete divisões que chamou de Grandes Províncias, cada uma comandada por um Senhor de Província abaixo do imperador na hierarquia de poder. Ele próprio, o imperador, ficou sendo o Senhor da Província Central — que mais tarde se tornaria o Estado da Cabeça. O novo império foi chamado Império de Kailan, e marcou o limite entre a Primeira e a Segunda Idades do Império.

Depois disso, Kailan passou por uma Idade das Províncias Independentes, uma Idade do Reino, iniciada após a reunificação das províncias, e duas Idades da República, a segunda se prolongando até a época presente (pelo menos em teoria), na qual o país se estabilizou como a República Federativa de Kailan. De acordo com o livro de Sarto, todos aqueles doze séculos de História foram períodos cruéis intercalados por ápices de paz, quando os Guerreiros chegavam para controlar a situação. Sarto, considerado por muitos como outra encarnação de Sama, alegava-se no dever de ser o Guerreiro Absoluto, responsável por oferecer uma nova era ao povo de Kailan. Uma era de paz que, após instalada, não teria mais condições de regredir. Seria o definitivo "fim dos tempos hostis".

Teoricamente, eu não peguei a parte mais hostil, pensou Kristina, sentada na beira da cama de Briel. Teoricamente, eu deveria viver cada vez mais tranquila e feliz.

Desviou a atenção do livro e deixou os olhos vagarem pelo quarto. Eles pararam sobre a mesinha de cabeceira, onde descansava um porta-retratos com uma foto de Briel e Isabela mais novos. Na época da foto, Briel ainda era menos do que um amigo. Um vizinho, um colega.

— Kris?

Sobressaltada, ela olhou para o lado. Briel estava parado no vão da porta.

— Oi — disse ela. — Eu... Eu tava me sentindo mal, até lá embaixo mesmo, por isso eu saí. Eu procurei aspirina no banheiro, na gaveta, e não achei, aí eu vim ver aqui.

— Relaxa — disse ele, rindo, enquanto Kristina abria a gaveta da cabeceira, onde Briel costumava guardar os remédios. — Não precisa tomar isso, deixa aí.

Kristina hesitou, mas, como Briel não caíra em sua farsa, resolveu abandoná-la. Devolveu a cartela de aspirinas à gaveta.

— Você sempre foi péssima em mentir, Kris. Mas se falasse a verdade eu duvido que você ia gaguejar assim.

Briel a observava, o corpo encostado no vão da porta, um sorriso no canto da boca. Kristina levantou as sobrancelhas e perguntou, com uma risada curta, incerta:

— Que foi?

— Que foi o quê?

— Por que é que você tá me olhando assim?

— Eu não tô te olhando de nenhum jeito — disse ele, embora continuasse a olhá-la daquele jeito.

— Ah, sério? Então tá, se você diz.

— É sério. — Ainda restava divertimento em sua feição. Tomou lugar ao lado dela, na beira da cama.

Aquele parecia a Kristina o instante perfeito para dizer algumas coisas. No entanto, antes que resolvesse por onde começar, Briel falou, agora mais sério:

— Tem um tempo que a gente não faz nada juntos, né?

— É, tem um tempinho.

— É que é meio difícil me programar agora que eu tô lá na Horizonte, e com a Lorena e tudo.

— Eu sei.

— Mas eu acho que depois... Tipo, depois de novembro, eu acho que vai ficar melhor. Só que por enquanto é muita pressão. Olhando de fora não deve parecer tão ruim.

— Então você não tá gostando de trabalhar lá?

— Não é exatamente isso.

— Então é exatamente o quê?

Briel comprimiu os lábios.

— É que é meio diferente de como eu imaginava. Todo mundo lá tem muita certeza do que tão fazendo. Eu também tenho, mas às vezes sinto como se eles estivessem muito mais dispostos que eu. Mais dispostos a se entregar por inteiro, enquanto meu medo e meu apego a outras coisas só deixam eu me entregar parcialmente. Porque tem certas coisas que eu acho muito difícil sacrificar em prol... da empresa. Eu já sinto que tô sacrificando coisas demais. Mas por enquanto eu vou levando, tentando contribuir com o máximo que eu puder.

— Pra que tanto sacrifício? De fora não parece mesmo tão ruim assim. É só um emprego.

— É.

Pelo tom de Briel, ele queria ouvir algo mais motivador. Kristina disse:

— Mas é tipo, sei lá, qualquer coisa na vida: o mais importante é saber se vale a pena.

— Vale. — Ele olhava para suas mãos juntas, o corpo inclinado para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos. — Eu passei anos da minha vida pensando se isso valia a pena ou se era suicídio, mas uma hora a gente tem que tomar uma decisão de como a gente vai agir, porque ficar sem agir não traz nenhum resultado. De qualquer jeito, depois de novembro tudo vai melhorar. Eu só tenho que aguentar mais seis meses.

— O que vai acontecer em novembro?

— Eles vão transferir um pessoal pro meu setor... Kris, vamos descer?

— Vamos.

Quando voltaram ao primeiro andar, o tabuleiro de Banco Imobiliário estava abandonado e os ex-jogadores assistiam a um truque de mágica com cartas realizado por Alan. Com a aproximação dos dois, Lorena se virou para eles, e Kristina achou que ela pudesse ficar irritada por ciúmes. Entretanto, para alívio geral, seu olhar era tranquilo. Quando Kristina namorava Dilan, a amizade com Briel fora diversas vezes motivo de ciúmes e até brigas. Ela não queria que isso se repetisse no relacionamento de Briel.

A festa acabou à noite, com cada convidado se recolhendo à sua respectiva moradia, exceto por Lorena, que dormiria na casa de Briel.

Quando Kristina entrou, sua mãe estava na sala, assistindo a um documentário qualquer, e seu pai na cozinha, preparando o jantar e vez ou outra lançando olhares para a TV através do balcão que separava os dois cômodos.

— Oi — disse a garota.

— Oi — disse a mãe.

— Oi, filha — disse o pai.

Chegando ao seu quarto, sem acender a luz, Kristina se jogou na cama, de bruços, afundando o rosto entre os lençóis eternamente desordenados. Quando não conseguia mais respirar, virou-se de costas e passou a encarar o teto através da escuridão.

Não se lembrava de algum dia ter se sentido tão solitária.

Enquanto ele tirava um colchão de debaixo da cama e o revestia com uma fronha, ela ficou na cadeira da escrivaninha, folheando um raro exemplar de um dos livros de sociologia proibidos pela ditadura. Tinha sido difícil conseguir aquele, mas ela quis agradar o aniversariante, ainda mais depois de ele dizer, abatido, que o traficante com quem costumava negociar não confiava em funcionários de empresas governistas. Mas mesmo com os presentes e a festa, Briel parecia incomodado. Durante o processo de esticar lençóis e arrumar travesseiros, relanceou para ela algumas vezes, parecendo indeciso sobre dar voz ou não a seu problema.

— O que você tem, Briel? — perguntou ela, para facilitar as coisas.

— Eu não sei se a gente foi perfeito essa noite — confessou ele, roendo a cutícula de um polegar.

— Eu acho que deu certo. — Ela foi se sentar na cama de casal.

Briel terminou de arrumar a cama no chão e se dirigiu à gaveta de meias. Deixou os óculos em cima da cômoda.

— É que a gente não precisa se beijar tanto — disse ele. — E na frente da Kris... Não foi muito eu.

— Ué, você me beijou primeiro. Achei que tava me dando liberdade pro meu papel de namorada apaixonada.

— Pra falar a verdade eu não sabia direito o que fazer. Não tô acostumado a enganar as pessoas que eu gosto. Mas entendi a liberdade que você viu. — Franziu o cenho. — Arg! Agora até essa palavra já me faz pensar de novo naquele moleque. Eu amo o Alan, mas o irmão dele é um reacionário metidinho.

— Total, né? Quase que eu dei uma resposta. Mas se estressar com esse tipo de gente não leva a nada. O melhor é ignorar e fazer nossa parte.

— Quem dera se fosse só ele o motivo do meu estresse. — Ele mordeu a pele em volta do dedo mindinho, mas logo fez uma careta e um movimento com a mão, passando a encarar o dedo que agora sangrava. — Elinor, a cada dia que passa eu sinto que vou explodir.

Briel deitou de bruços na cama improvisada. Seu tom demasiado sincero preocupou Elinor.

— Você... você não vai dar pra trás, né? — disse ela. — Você falou que não se importava em se sobrecarregar desse jeito.

— Eu sei.

Talvez ele precisasse ter mais certeza de que era importante e não estava sozinho. Elinor desceu da cama e puxou Briel para um abraço forte.

— Você tá sendo ótimo, Briel. É claro que a luta é difícil, mas a gente vai mudar esse país e você tá sendo uma grande parte disso.

— É. Eu não vou dar pra trás — declarou ele. — Seguir em frente, não foi? Eu lembro do seu tom de ameaça quando me disse isso da primeira vez.

Elinor compartilhava da lembrança, e não se orgulhava. Violência, mesmo verbal, era repugnante, mas ela precisara ser um pouco dura com Briel depois de Marko revelar tantas informações ao garoto sem sequer consultar alguém antes. Nesse caso, a ameaça fora necessária.

Elinor soltou o abraço, dizendo:

— Ué, a gente ainda não sabia se podia confiar em você.

— Numa boa. Eu faria o mesmo no seu lugar.

— Só o idiota do Marko gosta de brincar com fogo.

Idiota do Marko, é? — Briel soou mais animado. — Você ainda fala tanto nele que eu acho que esse "idiota" quer dizer outra coisa.

Elinor sorriu. Conseguira trazer Briel para cima.

— Olha só, o senhor tá muito novato pra querer insinuar alguma coisa, tá? — A risada dele foi outro bom sinal. Ter Briel desmotivado seria perigoso. — Não, a gente terminou, eu e ele. De vez.

— Sei...

Ela voltou para a cama de casal e já estava embrulhada no cobertor quando lembrou:

— E a velha, Briel?

— Ela é estranha. Sabe aquelas pessoas meio "foda-se"? Mas eu tô muito grato por isso, pra falar a verdade. Só por isso eu tô conseguindo dar conta.

— Não é só por isso. Eu percebo que você é bom com as pessoas. Sabe ver do que elas precisam e dar isso pra elas.

— Em todos os sentidos — completou ele, retornando àquele ar cansado. — Pode ser que você tenha razão... Pelo menos ela também tá me dando o que eu quero. Mas sabe no que eu penso...? Não, acho que isso não vem ao caso.

Briel era um ser curioso. Com certeza Elinor gostaria de desvendá-lo, mas precisava o manter confortável, justamente por não o conhecer bem. Confiava em seus ideais, que, apesar de diferentes dos dela em vários aspectos, haviam levado a uma convergência de objetivos; mas não confiava em sua personalidade.

— Boa noite, Briel.

Quase ao mesmo tempo ele comentou:

— Eu tô preocupado com a Kris. Com o que ela tá pensando de mim.

— Você fala tanto nela.

Ele ficou quieto. Só depois de uns cinco minutos, disse:

—Boa noite.

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